Herança Perdida

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O empregado disse-lhe e ele sentou-se ao nosso lado para discutir o assunto numa mesa ao lado da entrada.

Serviram-nos uma garrafa de vinho e quatro copos. Quando James ia encher o meu, eu disse-lhe que não beberia nada naquele antro por nada neste mundo.

— Quantas pessoas compõem o grupo? — Esteban perguntou com um forte sotaque indígena.

— Apenas três, — respondeu James. Mas temos muita bagagem.

— A Bagagem não é problema, amigo. Só abranda um pouco o caminho,— acrescentou ele enquanto esvaziava o seu copo de vinho. A maior desvantagem de momento é a rota.

— A rota?

— A estrada principal está infestada de bandidos. Desde que os espanhóis partiram, o exército luta contra eles sem grande sucesso.

— E não há outra alternativa?

— Há outra rota pelo interior que uma parte atravessa a selva amazónica. É mais lenta e tem os seus perigos, mas é muito mais seguro.

— Quanto dinheiro quer para nos levar lá?

Ele tirou o chapéu e começou a abanar-se.

— Eu e o meu compadre contentamo-nos com quatro mil pesos. As mulas e as ferramentas devem ser adquiridas separadamente.

— Planeamos viajar mais vezes por aquela área. Se você baixar um pouco o preço, chegaremos a um acordo.

James encheu-lhe uma vez mais o copo de vinho e Esteban bebeu-o de um só gole. Ele aceitou sem pedinchar, parecia precisar do dinheiro com urgência.

— Tem um mapa da rota que possamos ver?

O guia assentiu.

Ele levantou-se e tirou de um alforje vários mapas que havia guardado.

— Estudarei as duas opções com os meus companheiros e amanhã dar-lhe-emos uma resposta.

— Vão com Deus, amigos, — disse ele despedindo-se com um aperto de mão.

Naquela tarde, começamos a estudar os mapas que nos foram fornecidos no quarto do hotel. Eram os mesmos que os espanhóis usaram durante séculos. Alguns eram-nos familiares, enquanto outros eram mais abrangentes do que os da Sociedade Geográfica.

A estrada principal era a que os espanhóis usaram durante séculos para transportar ouro e mercadorias por terra do Planalto à América Central.

— Devíamos seguir a rota através da selva, — disse James enquanto colocava o mapa numa pequena mesa de madeira. — A estrada principal é mais curta, mas muito arriscada. O que acha, professor?

— O que decidirem, por mim, está ótimo, — respondeu ele, bocejando. Não dormia há dois dias.

Ele tirou o tabaco do bolso e enrolou um cigarro.

— E tu, Margaret?

— Atravessar a selva é muito arriscado, — comentei, surpresa com a rapidez com que tomei a decisão. — Se há bandidos na estrada principal, na selva há todos os tipos de tribos, fauna selvagem e um calor insuportável.

— Há alguma coisa que seja do teu agrado? — Ele acrescentou, distorcendo o gesto.

— Estás a insinuar que coloco sempre problemas? — Exclamei, ofendida.

— Há dias que não contribuis com nada positivo.

— Vejo que já tomaste a decisão. Tu é que mandas, — eu respondi com ironia.

Levantámo-nos cedo e voltámos a encontrar-nos com Esteban. Informámos-lhe o roteiro que havíamos escolhido e ele acompanhou-nos até ao mercado onde conseguimos suprimentos e ferramentas. Em seguida, foi a uns estábulos localizados nos subúrbios e comprou as mulas necessárias para enfrentar a jornada. Não havia muito o que fazer e decidimos passar a tarde a conhecer aquela cidade movimentada.

Ao entardecer voltámos ao hotel. Um grupo de canadianos despachava a sua bagagem na receção; quando vimos as malas e as roupas, imediatamente percebemos que era o grupo enviado pela Universidade do Quebeque. Eles haviam desembarcado naquela mesma tarde.

— Planeava partir em alguns dias, — disse James, cobrindo a boca com a palma da mão para que ninguém pudesse ouvi-lo. — Mas agora tudo muda. Partiremos amanhã.

— Temos tempo para preparar tudo? — Perguntei incrédula.

— A expedição será uma corrida contra o tempo daqui para frente.

Eu bufei enquanto assentia. Se já era uma expedição complicada em condições normais, daquele momento em diante, cada minuto contaria.

Subimos para o quarto a pensar que os canadianos não nos tinham reconhecido. Em princípio, não havia nada para nos denunciar, enquanto eles não ouvissem o nosso sotaque, não precisariam saber que éramos britânicos. Depois de alguns minutos, descemos para jantar. Tínhamos planeado ir para a cama cedo e sair cedo na manhã seguinte.

Quando entrámos na sala de jantar, encontrámos os canadianos a jantar. Aqueles tipos começavam a transformar-se nos nossos piores pesadelos. Decidimos sentar-nos do outro lado da sala de jantar para sermos impercetíveis. Não havia muitas pessoas a jantar naquela noite; era a estação das chuvas e havia menos estrangeiros do que o costume.

O grupo era formado por cinco homens, o mais velho que parecia ser o chefe, estava na casa dos cinquenta anos e tinha vastos cabelos grisalhos. Os demais eram mais jovens, mais ou menos da nossa idade e, como no meu caso, alguns fariam parte de uma expedição pela primeira vez.

Serviram-nos o primeiro prato sem dizer uma palavra.

— Tenho uma ideia, — James sussurrou ao meu ouvido. — Não vou sair daqui sem saber o que sabem sobre a expedição.

— E o que pretendes fazer? Levantar-te e ir para a mesa deles? — Eu respondi ironicamente.

James sorriu.

— Ao descer as escadas, vi os seus quartos. Não teremos melhor momento para despachar as suas bagagens.

— Estás maluco, James Henson?!

— Não levantes a voz, — respondeu ele, tentando acalmar-me.

— Se eles nos descobrirem, teremos um problema sério.

— Porque nos descobririam?

— Achei que fosses mais sensato. Sem mim não conseguirás transcrever nenhum documento — acrescentei a piscar-lhe o olho.

Levantámo-nos e deixámos o professor na mesa a jantar sem dizer uma palavra. Os eventos aconteciam tão rápido que ele estava sobrecarregado.

Quando subimos as escadas, as minhas pernas começaram a tremer e senti gotas de suor escorrerem pela minha testa. Aquilo foi uma nova sensação para mim, senti como a adrenalina percorria o meu corpo e me fazia sentir viva.

Ao chegar ao primeiro andar, fomos em direção aos quartos dos fundos, tentando fazer o mínimo de barulho possível.

— Como pensas abrir a porta?

— Aprendi o estranho truque para abrir qualquer tipo de fechadura por mais anos que tenha sido fechada.

Aquela técnica de que me falava acabou por ser um canivete que tinha no seu bolso. Ele inseriu-o na fechadura e em alguns segundos houve um clique e a porta abriu-se.

Quando entrámos, vimos como os canadianos haviam transportado uma grande quantidade de bagagem do Quebeque. Aquilo podia significar que eles sabiam mais sobre a investigação do que nós, mas era um grande inconveniente, pois eles teriam que contratar mais carregadores e animais de carga para carregar a bagagem. A jornada deles seria muito mais lenta do que a nossa.

Começámos a remover tudo. Numa das mochilas encontramos uma pasta com mapas da região andina e as plantas de dois pisos de escavação que a Universidade havia realizado em cidades pré-colombianas nos últimos anos. Aqueles mapas seriam úteis para contrastá-los com os nossos.

Enquanto isso, na sala de jantar, o professor observava alarmado um dos canadianos a levantar-se da cadeira, dirigir-se à receção e começar a conversar com o concierge. Ficou lá por vários minutos e depois começou a subir as escadas. O professor assistia da sua mesa aterrorizado sem saber o que fazer.

Após inspecionar tudo, saímos do primeiro quarto e, após verificarmos que não havia ninguém no corredor, decidimos entrar no quarto seguinte. Continuámos a vasculhar a bagagem e descobrimos que a maior parte era roupas e ferramentas. Mas no armário, sob um casaco, encontrámos uma mochila muito interessante, que continha dois manuscritos: o primeiro era uma transcrição de inscrições pré-colombianas para o espanhol, era uma espécie de pedra de Roseta pré-colombiana. Um grande sorriso se espalhou pelo meu rosto quando a guardei. Não havia informações sobre esse documento na Universidade de Oxford e parecia que o Quebeque não tinha intenção de divulgá-lo à comunidade científica.

O segundo manuscrito, entretanto, não diferia muito da pesquisa que havíamos feito na Inglaterra: detalhava o lugar exato onde poderia ser a cidade para a qual estávamos indo.

De repente, começámos a ouvir murmúrios no corredor.

O professor decidiu levantar-se da mesa e subiu as escadas o mais rápido que pôde até chegar ao canadiano momentos antes de chegar ao seu quarto.

— Desculpe, amigo, — ele chamou-o. — Ouvi-o a conversar com os seus compatriotas. Você é canadiano?

O norte-americano acenou com a cabeça.

— Em que posso ajudá-lo?

— Estive vários anos a dar aulas em Montreal. Quando ouço o seu sotaque, não consigo parar de lembrar-me daqueles anos maravilhosos.

— Montreal. Uma grande cidade. O que o traz à Colômbia?

— Vim numa viagem de negócios com o meu sócio e a sua esposa. Existem grandes oportunidades de expansão nesta área.

— É verdade. Se me dá licença, preciso recolher alguns documentos antes de continuar o jantar.

— Claro. Desculpe pela interrupção.

O canadiano continuou em direção ao seu quarto enquanto que o professor ficou bastante preocupado. Ele virou-se e decidiu voltar para a sua mesa para não levantar mais suspeitas.

Ouvimos o clique da porta assim que James saiu pela janela do quarto; graças ao professor, pudemos ouvir parte da conversa no corredor e tivemos tempo de escapar. O quarto ficava no primeiro andar e a altura não era um inconveniente para descermos para a rua.

 

A tarde havia começado mal, mas acabou sendo a mais frutífera. Pudemos contrabalançar a vantagem com que os americanos começaram, descobrimos que eles estavam muito mais avançados do que nós no estudo da área. Além disso, sairíamos com pelo menos um dia de antecedência daquela cidade.

Antes que os primeiros raios de sol despontassem ao amanhecer, partimos em direção às montanhas que rodeavam o litoral da costa colombiana.

Apesar da inclinação do terreno, movemo-nos com determinação por trilhos estreitos. A temperatura começou a cair drasticamente à medida que subíamos a exuberante cordilheira. Numa manhã de muito vento, finalmente coroamos o cume e iniciamos a descida que nos levaria à savana.

Ao entrarmos no território amazónico, as ervas daninhas ficaram muito mais densas à medida que passávamos.

O grupo organizou-se numa longa fila à frente da qual o guia marchava, acompanhado em todos os momentos por James, depois pelos carregadores e mulas carregados de bagagem e, finalmente, o professor e eu, sempre a ficar para trás.

— Está um calor sufocante, — disse o professor enquanto descíamos um amplo vale.

Ele parou por um momento, enxugou o suor da testa com um lenço e bebeu água do cantil.

— Repeti-lhe isso várias vezes em Cartagena, — comentei com raiva. — Devíamos ter seguido a estrada principal. Tem que ser sempre tudo como o Henson quer.

— Cuidado, pode ouvir-te.

— A esta distância, é impossível ouvir qualquer coisa. Além disso, eu já lhe disse no hotel.

Os carregadores abriam caminho com os seus facões constantemente. Em algumas áreas, as copas das árvores eram tão extensas que os seus galhos se cruzavam sem deixar passar a luz do sol. Em alguns dias, mal podíamos ver o céu. A diversidade da fauna e da flora era infinita.

— Veja estas cores, professor, — disse eu, apontando para as copas das árvores.

— São tucanos tricolores, — respondeu com um grande sorriso. — Neste momento, seríamos a inveja de qualquer ornitólogo.

— São maravilhosos. Mas o barulho é insuportável. É como ter um martelo a martelar-lhe na cabeça o tempo todo. Nem mesmo à noite há silêncio neste lugar.

O professor assentiu tristemente.

— Já observou aqueles primatas a pular pelos galhos? Estão a seguir-nos desde que entrámos no vale.

— Estão apenas curiosos. Mas vigie-os bem, ao menor descuido eles roubam toda a nossa bagagem.

Parámos na beira de um pequeno riacho. Quando os carregadores tentaram atravessá-lo, a água cobriu-os até ao pescoço. Tivemos que tirar a bagagem das mulas e carregar os fardos sobre a cabeça para evitar que se molhassem.

— Cuidado, há crocodilos nesta zona, — alertou o guia.

Ouvindo isto, apressámos o passo. Felizmente, a corrente não era muito forte naquele troço.

— Viram isto? — James comentou, apontando para a outra margem. — Nunca vi plantas deste tamanho.

— São plantas aquáticas, — acrescentou Esteban. — Podem ter mais de um metro de diâmetro.

Quando chegámos à outra margem, atravessámos uma área pantanosa e o ritmo diminuiu ainda mais. Esta viagem estava-se a transformar num verdadeiro pesadelo.

James deixou o guia por um momento e aproximou-se de nós para sussurrar no meu ouvido que não nos afastássemos do grupo. Observavam-nos há muito tempo.

— Quem nos segue? — Perguntei, alarmada, olhando em todas as direções.

— Acho que eles fazem parte de alguma tribo. Mantém a calma. Se nos quisessem atacar, já o teriam feito.

Naquela ocasião ele estava certo. Estiveram a observar-nos por um bom tempo até que atravessámos o seu território.

As noites eram igualmente difíceis. Mal podíamos dormir. Só uma boa fogueira mantinha cobras, escorpiões e, o que era mais preocupante, a aproximação de um puma longe.

Uma tarde, acampámos perto de uma pequena caverna rochosa e naquela noite comecei a ficar doente. A febre não parava de subir e o quinino que me injetaram mal fez efeito. Na manhã seguinte notei uma pequena melhora e decidimos continuar a viagem. Mas, algumas horas depois, comecei a ficar estonteada, a minha testa ardeu como na noite anterior e acabei por desmaiar aos pés do professor.

É a última coisa de que me lembro até que acordei dois dias depois numa pequena cabana de junco. Quando abri os olhos, a minha cabeça ainda girava, virei-me para a direita e vi o professor sorrir.

— Parece que a febre baixou. Sentes-te melhor?

— Estou muito cansada. Mas já não sinto a testa a arder.

— É bom sinal, — respondeu ele, colocando a mão sobre a minha testa. — Foi o que o xamã disse.

— Xamã? — Repeti, surpresa.

— Estamos há dois dias numa aldeia indígena. Era o único lugar onde eles podiam curar-te.

— Do que está a falar?.

— Contraíste malária, — respondeu ele solenemente.

— A culpa é toda do Henson. Devíamos ter seguido o outro caminho. Ele nem sequer está presente quando é mais necessário.

— Isso não é verdade, Margaret. Ele passou os últimos dois dias sem sair do teu lado. Ele mal conseguiu dormir.

Não esperava ouvir aquelas palavras e fiquei em silêncio.

— Se eu não te tivesse trazido para a aldeia, não terias sobrevivido a mais um dia. Devias resolver as vossas divergências.

— Mas ele não ouve ninguém. Ele quer ter sempre razão. É insuportável.

— Está apenas a fazer o seu trabalho. Se te pusesses no lugar dele, compreendê-lo-ias melhor.

Naquele momento James entrou pela porta sussurrando uma música..

— Vejo que estás melhor.

— Estou recuperada, — assegurei com um leve sorriso.

— Vou trazer-te o pequeno-almoço. Algumas frutas frescas e chá. O xamã garantiu-me que com esta mistura de ervas e uma semana de repouso sentir-te-ás como nova.

— Não podemos esperar uma semana! — Exclamei alarmada. — Os canadianos vão ganhar vantagem sobre nós e a expedição vai afundar.

— Esquece-os. Há um longo caminho a percorrer.

— Eu queria agradecer-te por cuidares de mim estes dia.

— Não tens de fazer isto. Foi um prazer.

— Podes trazer a minha bagagem? Devo estar horrível.

— Como queiras, Maggie, — ele respondeu com um sorriso largo. — Embora não precises disso.

Foi a primeira vez que ele disse aquelas palavras, mas fê-lo com tanta ternura que não pude responder. A partir daquela manhã a minha opinião começou a mudar a respeito dele.

Dias depois partimos. Nos primeiros dias fui montada no lombo de uma mula tentando não ser um fardo para o resto do grupo. Sentia-me exausta.

Certa tarde finalmente avistamos as montanhas íngremes no horizonte, deixámos para trás os últimos vestígios da floresta amazónica e entrámos no Planalto. Tivemos que atravessar montanhas altas com vales profundos onde a vegetação quase não crescia.

A estrada era marcada por pequenas aldeias onde grande parte da população dedicava-se à mineração. O calor e a humidade deram lugar ao calor seco durante o dia e ao frio intenso à noite. Aos poucos fui percebendo como o meu estado de saúde melhorava a uma velocidade assustadora.

Numa manhã fria chegámos a Potosí, o epicentro mineiro daquela região. Ao lado da mina, os espanhóis haviam construído uma cidade para explorar os depósitos de prata. Os indígenas trabalhavam por um salário mínimo em condições tão desumanas que muitos deles não conseguiam sobreviver. O serviço nas minas durava um ano e eles foram novamente proibidos de trabalhar lá por mais sete anos, mas muitos índios voltaram a trabalhar como trabalhadores livres.

Deixámos para trás as casas precárias onde os mineiros viviam com as suas famílias e atravessámos o centro da cidade. Aquele lugar havia-se tornado um espaço de lazer repleto de cantinas e bordéis noturnos onde os mineiros iam gastar o seu dinheiro após longos e exaustivos dias de trabalho. Pararíamos apenas o tempo suficiente para carregar suprimentos e passar a noite.

Naquela tarde, James foi às compras. O professor e eu ficamos numa pousada cheia de pulgas e baratas sobre as quais prefiro não falar. Depois de descansar um pouco, o professor saiu para respirar enquanto eu observava da janela do meu quarto como o que chamavam de progresso havia perfurado as encostas de uma montanha, deixando-a quase oca por dentro. Um forte cheiro a mercúrio e enxofre atingiu o meu rosto e tive que fechar a janela.

O professor estava encostado na longa ponte que atravessa o rio a fumar o seu cachimbo quando, de repente, apareceram uns tipos que o agarraram com força e o carregaram pela rua abaixo. Tentei gritar, mas estava com tanto medo que não conseguia falar. Fiquei num canto a chorar até que James apareceu.

— Ele foi sequestrado em plena luz do dia?

— Quase não havia gente na rua, — respondi angustiada.

— Qual era o aspeto deles? — Ele perguntou, colocando o chapéu numa cadeira.

— Não pareciam ser desta zona. Um deles lembrou-me um canadiano que jantava em Cartagena.

— Mas com que tipo de gentalha estamos a lidar? — Ele exclamou com raiva.

— Vamos à polícia, — sugeri desesperadamente.

— Não vai adiantar, — respondeu ele, abanando a cabeça. — Tentarão suborná-los facilmente.

— E então?

— Vamos aguardar o próximo passo.

Depois de três horas, finalmente ouvimos os canadianos. Enviaram o guia que haviam contratado em Cartagena com uma proposta:

Eles devolver-nos-iam o professor são e salvo se lhes entregássemos o documento que lhes roubámos no hotel. Mas havia algo que não estava nos nossos planos: devíamos abandonar a expedição e voltar para Londres.

Não foi do nosso agrado, mas não tivemos escolha senão aceitar a proposta. Fizemos a troca naquela noite e o professor voltou ileso.

Na manhã seguinte, pegámos nos nossos pertences e voltámos pela estrada que levava a Cartagena. Dois carregadores, pagos pelos canadianos, escoltaram-nos até à costa colombiana, onde embarcaríamos no navio de volta à Europa.

Eles apenas se esqueceram de um detalhe. Ao meio-dia, o James falou com eles e chegou a um acordo pagando-lhes uma quantia maior do que haviam recebido. O negócio foi bom, receberam dinheiro dos dois lados e foram embora sem hesitar.

Demos meia volta e voltámos pela mesma rota. Eles tinham um dia de vantagem em relação a nós, mas ainda havia um longo caminho a percorrer.

Num profundo vale entrelaçado por entre várias montanhas, finalmente avistámos a cidade de Cusco, a antiga capital do Império Inca.

A entrada da cidade era ladeada por uma muralha tripla em ziguezague, formada por grandes blocos de pedra que a envolviam por completo.

Após passarmos a movimentada porta, subimos a rua principal, deixando ao nosso lado, antigos edifícios coloniais de dois andares e inúmeras igrejas. Durante a viagem pudemos constatar que aquela cidade quase não tinha semelhanças com Cartagena das Índias. A maioria dos seus habitantes eram descendentes dos Incas e a sua cultura estava profundamente enraizada.

Quando chegámos a uma pequena praça, atravessámos um mercado muito concorrido onde os nativos caminhavam com vários pacotes nas costas, abatidos pelo enorme peso que suportavam. Os mercadores transportavam as suas mercadorias em carrinhos precários carregados e as mães carregavam os seus filhos recém-nascidos em lenços amarrados ao pescoço enquanto os mais velhos caminhavam ao seu lado.

A estrada era ladeada por barracas improvisadas de madeira com toldos precários onde vendiam as suas mercadorias: roupas de alpaca, couro curtido que teciam à mão, todo o tipo de frutas e vegetais, e algumas peças de artesanato adquiridas principalmente pelas elites locais. Alguns falavam em espanhol, enquanto outros continuavam a manter viva a língua inca.

O mais marcante eram as suas roupas coloridas; as mulheres usavam saias largas das mais diversas cores, vestidas com os seus pitorescos macacões pretos, e os homens usavam largos ponchos que os protegiam do frio com enormes chapéus de abas largas.

Embora a maioria da população fosse indígena, ainda eram governados como o resto do país pelas elites crioulas, os antigos descendentes dos espanhóis.

Em Cusco tínhamos previsto um encontro com o arqueólogo Néstor Domínguez, que comunicou à Sociedade Geográfica a descoberta feita a cerca de cento e trinta milhas da capital por alguns camponeses. Quando perderam o seu rasto, tiveram que atravessar uma extensa área montanhosa onde encontraram os restos de uma cidade soterrada pela selva.

 

Ele trabalhava no arquivo municipal próximo à Catedral de Cusco, uma das mais antigas de toda a América do Sul, localizada na imensa Praça Anasen, o centro nevrálgico da cidade, cercada por prédios antigos com belas arcadas.

Assim que entrámos no edifício Cabildo, entrámos num claustro magnífico que me cativou assim que o vi pela sua enorme beleza. Era um antigo palácio barroco de origem espanhola adquirido pela Câmara Municipal a um preço baixo.

Foi construído num pátio retangular de dois andares que se apoiava em arcos semicirculares com colunas dóricas.

Após cruzar o pátio, encontramos várias salas transformadas em bibliotecas repletas de volumes clássicos em belas estantes góticas. O andar superior era acedido por uma escada em espiral coberta por uma bela balaustrada.

Quando chegámos, não havia ninguém na receção e estivemos à procura no piso térreo, mas sem sorte. Por fim ouvimos barulho no andar de cima e decidimos subir.

— Você é o senhor Domínguez?

O peruano virou-se e assentiu com a cabeça.

— Suponho que você seja o Sr. Henson — ele respondeu com um grande sorriso. — Bem-vindos à antiga capital do Peru. Espero que tenham feito boa viagem.

— Não tanto quanto esperávamos, — respondeu ele, fazendo uma careta.

— Não devem estar acostumados a este calor na Inglaterra. Imagino que a viagem tenha sido difícil, — acrescentou. E apertou-nos a mão.

— Essa foi a menor das inconveniências, — James apontou enquanto colocávamos as nossas mochilas pesadas no chão. — A Margaret adoeceu com malária, o professor Cooper foi sequestrado e temos uma forte concorrência na expedição.

— Deixou-me sem palavras, — disse ele, surpreso. — Vamos para o meu escritório, deixo estes documentos e depois saímos.

Atravessámos a sala de arquivo, saímos pela porta dos fundos e entrámos por um corredor que levava à outra ala do prédio.

— Sabe se mais alguém foi informado da descoberta?

— Os camponeses notificaram as autoridades locais. Em seguida a notícia chegou à capital.

— Então não somos os únicos a procurar a cidade.

Estávamos a passar por um corredor estreito decorado com belas tapeçarias espanholas que representavam a evangelização das Índias.

— Existem muitos caçadores de tesouros nesta área. Mas ninguém tem equipamento para desenterrar uma cidade soterrada na selva há séculos.

— Acho que agora já têm, — James acrescentou resignado. — A concorrência de que falo é a Universidade do Quebeque.

Ouvimos como várias pessoas gritavam ao fundo de um pátio. Néstor explicou-nos que se tratava de uma sala onde os cidadãos apresentavam as suas queixas ao Cabildo.

— Eles já cá estiveram antes. Destroem tudo o que encontram e não dão importância aos arqueólogos locais, — continuou Néstor sem hesitar, abriu a porta do seu escritório, colocou os documentos sobre uma mesa e trancou-a.

—Tem tudo pronto? — James quis saber, angustiado com a vantagem que os canadianos tinham de nós.

O peruano assentiu satisfeito.

— Vamos para a minha casa, — disse ele, apontando para o fim da praça quando saímos do prédio. — Não fica longe daqui.

Néstor era um crioulo de origem espanhola, moreno e de estatura mediana que sempre tinha um sorriso no rosto. Era apaixonado pela cultura Inca, havia estudado na cidade de Lima e tinha um bom domínio da nossa língua. Gostei dele desde o início.

Foi um dos primeiros arqueólogos da zona sul-americana, habituado a lidar com expedições estrangeiras. No seu país não havia muito interesse em recuperar o seu património e as pesquisas que podiam financiar eram escassas.

Ele não teve escolha a não ser fazer parte das diferentes expedições que outros países desenvolveram na área.

Atravessamos a praça e descemos uma rua tão pavimentada que ouvi algumas vezes o estalo dos meus joelhos. Virando para o fundo estava a sua casa, uma habitação uniforme presa a uma das antigas paredes de pedra.

— Entrem na minha humilde casa, — disse ele com um pequeno aceno de cabeça depois de abrir a porta.

A casa tinha dois quartos bastante austeros. Uma salinha que servia de dormitório e escritório, e uma ampla sala decorada com pinturas dos seus antepassados, destacando móveis antigos da época colonial e um sofá desgastado. Ao fundo havia um pátio interno cheio de plantas com dois enormes catos.

— Acomodem-se na sala de estar. Tenho algo importante para vos ensinar.

Ele apareceu imediatamente com um pequeno objeto embrulhado num lenço de seda que colocou na mesa.

— Este baú foi encontrado pelos camponeses num dos templos da cidade, — ele explicou quando nos aproximámos para vê-lo.

O pequeno baú foi esculpido numa pedra vulcânica muito comum na América do Sul chamada de obsidiana e tinha relevos esculpidos de cada lado: o relevo na área superior representava uma constelação onde a figura de uma divindade se destacava no centro, enquanto o relevo na área inferior tinha cinco pequenos símbolos emoldurados em madeira e dispostos horizontalmente.

— O que tem dentro? — James perguntou.

— O baú está selado, — respondeu Néstor com um encolher de ombros. — Não consegui abrir.

Ele tirou uma lupa de uma gaveta e entregou-nos.

— Esta é uma representação de Hanan Pacha, o mundo celestial, — comentou ele, apontando para o primeiro relevo. — Somente as pessoas certas podem ter acesso a ela, atravessando uma ponte feita de cabelo humano. O deus Viracocha mora lá.

— É magnífico, — respondi com entusiasmo.

Néstor deu-me um grande sorriso. O interesse que eu demonstrava era importante para ele.

— No entanto, os símbolos no relevo inferior são-me desconhecidos.

— Nunca vi nada assim, — interveio o professor. E aproximou mais a lupa para ver mais claramente.

— Trabalho com inscrições incas há mais de dez anos e só conseguimos decifrar trinta por cento.

— Talvez a Margaret nos possa ajudar, — acrescentou James. Ele tirou o objeto das mãos do professor e entregou-mo — Conheces algum símbolo do relevo?

— Reconheço os mesmos que o Néstor descreveu. Mas talvez possamos descobrir outra coisa com o presente dos canadianos — anunciei, puxando um bloco de notas da minha bolsa.

— Mas eu vi-te devolvê-lo, — ele exclamou surpreso.

— Tive tempo suficiente para copiá-lo antes de ficar doente.

— Bravo, Margaret, — respondeu ele. Acho que foi a primeira vez que ele me deu os parabéns por algo.

Aproximei-me do pátio onde havia mais luz e pude ver com mais clareza. Quando o peguei nas mãos, senti um forte arrepio percorrer o meu corpo. O material era escorregadio e frio como pedra polida.

— Onde achou esse documento? — Perguntou Néstor.

Ele olhava para ele com os olhos tão arregalados que parecia ter descoberto o tesouro de Montezuma.

— É a transcrição mais completa que já vi da língua inca para o espanhol.

— Ficou em nossas mãos por um curto período de tempo, — comentou James. — Conto-lhe a história mais tarde.

Depois coloquei o documento sobre a mesa e estivemos a comparar os seus símbolos com os do baú por mais de uma hora.

— Acho que este é o primeiro, — disse eu, apontando para o relevo do baú e o seu homónimo no documento. — É o símbolo da água.

— Água? Pode referir-se a algum tipo de inundação.

— É uma área montanhosa, — explicou Néstor. — Lá, as chuvas são abundantes.

— O que acha, professor?

Ele ficou em silêncio por um tempo sem dizer nada.

— O clima atual é muito diferente de há mil anos atrás. Na Europa, as temperaturas mudaram por volta do século XI. O clima frio e húmido deu lugar a uma época mais quente, graças a isso as colheitas melhoraram e a fome diminuiu.

— Talvez tenha acontecido algo semelhante nesta área, — apontou James. — Mas é impossível saber se o relevo fala de uma enchente. Ainda faltam quatro símbolos para decifrar.

— É verdade, — eu assegurei. — Não podemos tirar conclusões precipitadas.

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