Cores

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Patrizia Barrera

Índice

  CORES, as vozes da alma

  COPYRIGHT

  ÁGUA

  CORES

  A MUSICA DO DIABO

  LOUCURAS

  MÃE

  A BORBOLETA

  O FILHO DO MONSTRO

  AS GRANDES CHUVAS AFRICANAS

  A TERCEIRA VÍTIMA

  O PROFESSOR DE FISICA

  AQUI ESTÁ O FIM

  O GATO

  O PRADO

  AS HORAS DO AMOR

  PATRIZIA BARRERA

CORES, as vozes da alma
Prefazione dell'Autrice

Escrevi o livro sem pensar nisto, mas literalmente escutando as vozes que saiam do meu profundo, daquele algo impalpável e absorvido que defini a minha alma. São vozes, reflexões e historias fora do tempo, nascidas num lugar remoto que é a fantasia mas que chegam a partir do meu vivido e das experiencias psiquicas que colhi ao longo do percurso. Cada conto é marcado por uma cor e por uma imagem, para vos oferecer uma experiência planetária e arquetípica. São contos intuitivos, pouco lógicos, quase surrealistas.

Lê-los é abrir uma janela sobre um mundo espiritual colectivo, que está em cada um de nós.

Espero que possam oferecer-vos um instante de evasão e de reflexão com o seu coro de recordações das cores pungentes, património incomparável da nossa existência.

PATRIZIA BARRERA

COPYRIGHT

Copyright PATRIZIA BARRERA 2020

ALL RIGHT RESERVED


RHA PRODUCTION

ÁGUA


Sou a água que gorgoleja nas vales,

que toca levemente o prado com as suas humidas mãos

e sou a água que cai intensamente do céu,

que suavemente amontoa-se na escura cavidade das árvores.

Água das pontas nevosas,

água áspera e escura que chove seca nas flores.

Onde quer que seja

E quem quer que seja

Serei sempre água.

As gotas amargas, as pingas incandescentes

Nascidas

Do teu amor para mim.

CORES
Azul


Foi naquele verão que me tornei sua mulher. Lembro-me ainda das maçãs que se debruçaram nos campos como soldados em festa, e o largo caminho que nos separava do bosque.

Ali havia a nossa casa, e foi ali que aconteceu.

Eu era jovem e perdida naquele alarido de vozes, no turbilhão de cores que precedem o pôr-do-sol: mas cheirava a noite como uma amiga e desejava que viesse, que a minha cama nupcial ainda imaculada se vestisse de rosa e me acolhesse num ninho, como acontece com a águia depenada.

Trazia o seu rosto esculpido nos olhos: a testa alta, o olhar severo, os túrgidos lábios. E depois as mãos. Aquelas mãos incansáveis e curiosas que sabiam aprisionar o mundo numa teia, coagia o dia para aparecer a noite, transformava a velhice em juventude.

Sabiam chorar, tais mãos.

A minha vida e as suas mãos: para mim aquilo era todo universo.

Assim continuou durante um ano, largos dias marcados pelos meus passeios no bosque e os seus quadros, os meus olhares à torrente e as suas cores.

A natureza permanecia confinada ali, prisioneira. Aquela era a cerejeira morta no inverno que continuava a viver, e aqueles fogos da noite quando na colina se dançava. E os desejos ocultos, as emoções sofridas, tudo confundia-se no momento em que o pincel se expandia para descobrir ou para esconder.

Às vezes avançava para pintar durante horas. Depois, como se desconfiasse, reparava-se em volta e me via, e só desta forma sabia que tinha chegado a noite.

Ele agarrava-me e nos amávamos. No meu corpo as suas mãos ainda desenhavam e nele não havia paixões. Apenas fantasmas, apenas cores.

Eu não percebia. Todavia era lindo o seu mágico interesse nos meus cabelos, no meu seio.

Reparava-me, e no fundo eu era a sua mulher. Falava para mim da sua alma confusa, dos sentimentos reprimidos que voltavam a angustiá-lo toda a noite, dos projectos para os novos quadros. Falando adormecia, como se estivesse profundamente cansado. Nao sei porquê mas nao queria que dormisse. Parecia-me de estar a mergulhar na obscuridade e não estar a ver o fim. Eram os seus quadros a fazer-me companhia e, quando o percebi, resolvi que não devia perdê-los. Jurei para mim mesma e por fim obtive; agora eu sou a própria cor.

Às vezes acontecia que partisse para expor os seus quadros e céus ficava sozinha; então vagueava ansiosa não sabendo o que fazer, nos meus interminaveis dias. Escrevia para a minha mãe, ou ia ao lago, ou dormia, e deixava toda coisa sem nada terminar, contagiado pela angustia. Reparava as paredes vazias, as telas despojadas, os pinceis sobre o fogão da sala, abandonados, sem ninguém que lhos desse vida. Era como se todo o mundo desaparecesse aos meus olhos, do universo sonhado não restavam que migalhas. Tinha sido roubado tudo, os seus quadros vendidos a desconhecidos que não sabiam que comprando-os compravam também a minha alma. Sentia-me pilhada e traída, tinha visto nascer um filho e não pudera tê-lo.

Depois ele voltava, juntamente com a sua magia. Daquelas mãos nascia uma rosa, um raio de sol ou mesmo a escuridão. Do nada apareciam anjos de rosto puro e inocente ou crianças infelizes no ventre das mulheres, arruinadas; e corpos murchados, taças cheias, cenas de loucura, de satisfação, de amor. Reparando aqueles rostos dava-me conta de tê-los já visto dentro de mim e, tocando aquelas telas, esperava que tudo voltasse em mim. O medo de perdê-los de novo assaltava-me, amorfa e feroz: que sentido tinha criar e não desfrutar daquela vida?

Perscrutava enquanto inventava novas cores e em mim nascia um inconsolável desespero. Impontente diante dele pensava que se nada pode-se conservar muito melhor é destruir.

Lentamente rastejou no meu coração uma insidiosa serpente, e o criador que até agora tinha acreditado de admirar transformou-se num tirano incensivel aos sentimentos de piedade que inspirava as minhas criaturas. Encolhia-me nos seus abraços não acreditava em mais nada dele, mergulhando naquela amarga solidão que acolhe as alamas mortas. Ele reparava-me como se não me visse, e agora sei que sofria; talvez era possuido por uma escolha, popr aquela dúvida horrível que logo depois acabou comigo. Agora compreendo que se atormentava sem saber escolher entre a mulher e as suas cores.

Chegou um novo verão sem que nada tivesse mudado, mas um dia ele não pintou e alcançou-me no bosque: parecia prostrado por algo a que não sabia opor-se, e profundamente cansado. Readquiriu uma ternura e nos amamos como nunca tinhamos feito antes, deixando a parte os complexos e as inibições, felizes de ser simplesmente nós próprios. No fim ele pareceu aliviado, como se tivesse finalmente percebido o que devia fazer. Regressamos e ele pegou de novo as cores, mas desta vez tinha um novo argumento: eu. Durante horas quieto a observar as suas ágeis mãos sobre a tela, velozes e habilidosas entre os pinceis como se não tivesse outro nutrimento que este. O dia apagou-se e estava ainda curvado no quadro: a mulher retratada ria, eternamente feliz na sua eterna juventude. Perscrutando-a não era mais eu. Atrás dela uma porta entreaberta dava-me sinal para entrar, e eu questionei-me o que podia haver atrás dela como grande segredo que não podia vê-lo. De novo aquela miserável tristeza possuiu-me e eu não pude evitá-la; e a partir da tristeza tornou-se definhamento, e depois loucura. Eu próprio teria perdido ainda, sem mais poder encontrar-me? E quem me teria comprado desta vez? A minha alma estava no quadro e eu podia defendê-la dos olhares dos outros. Ele levantou-se e beijou-me demoradamente: sabia talvés que teria partido?

 

Aquela noite não consegui dormir. Os meus sonhos eram estranhos chamamentos de mundos perdidos no tempo. Depois percebi que era a porta pintada a chamar-me. Corri para o jardim e o quadro tinha-se movimentado. A porta já aberta mostrava um preto abismo de sombras e, no fundo, as cores. Com um salto fui para dentro e não pude mais sair: como a natureza prisioneira permanecera escolpida na tela, e estava morta.

A partir daquele dia ele não pintou e nem vendeu outros quadros, porque não sabe onde refugiou-se a minha alma: e desde então as árvores são cinzentas e os rostos dos anjos desaparecidos como fumo. Não sabe reconhecer a luz da noite, e não pode distinguir o fogo da água. E eu não posso mais dizer-lho, enfim, porque estou atrás da porta, onde ele não conseguirá por acaso ver-me. Agora choro eu, sentindo-me desgraçada na minha humana fraqueza.

Tudo acabou. E não tenho mais voz para confessar-lhe que lhas roubei eu, as suas cores...

A MUSICA DO DIABO
Vermelho


Dizia-se que aquela musica tivesse sido o diabo a compô-la.

Boatos, palhaçadas, superstições? Mas ele a tinha tocada mais vezes, aquela música, e não viu por acaso o diabo.

E certamente estava presente como se existisse, com aqueles chifres aguçados, o ar altivo e o chapeuzinho preto, como normalmente aparece, e então faz medo visto que sentes a sua ardente respiração nas costas. Mas uma vez que ele não tinha medo, ou melhor, aquela música parecia elevá-lo para cima onde o diabo, como se diz, não devia existir. E todas as vezes lhe chegava no coração uma paz profunda, que nenhuma coisa terrestre está em condições de dar.

Era aquele amor para o universo que lhe palpitava no peito, quando tocava, a encorajá-lo para continuar a fazê-lo; aquela estranha satisfação dos sentimentos. E então sentia-se bem, ou melhor ansioso para fazer o bem, embora no fundo a bondade o enfadava como o mal, e todas as vezes acabava por dobrar-se sobre si e daqueles sentimentos nao fazia nada.

Desta forma todos os dias: satisfeito de si mesmo e depois descontente, desejoso em concentrar-se sobre aquelas notas e cansado delas. E depois havia aquela estranha nausea para a gente e para si, depois de ter tocado, que não percebia mas que não podia prescindir de desejar. No fim habituou-se também a isto e não deu mais importância, considerando esta coisa como uma pequena consequência por sofrer para desfrutar uma dádiva preciosa.

“O diabo? Não existe!” – dizia, invocando como prova a sua mesma felicidade.

“Nunca roubei, nem feito mal a ninguém, e sou feliz. O diabo portanto não arrasta mais à perdição os mortais que gozam da sua companhia e das suas artes? Então, se é assim, bem-vindo demónio!”

E acariciava o queixo da sua jovem mulher grávida e pesada, sinal de que a criança era sã e crescia bem, mas um sinal da bênção divina. Mas a mulher morreu na primavera dando luz tal filho. Contudo e não é tão-pouco certo, visto que a criança permaneceu fechada no ventre da mãe morta até que uma desconcertante lamentação não impôs a ninguém de trazê-la para fora com uma cesariana improvisada. Tinha os olhos abertos e estava viva. E então todos pensaram que havia algo de maléfico nesta coisa, e que os prognósticos eram negativos. E quando enfim se descobriu que aquela estranha criatura não falava, podendo muito embora, e que se limitava a reparar o mundo com os olhos destacados e furiosos, pois todos deixaram-nos sozinhos, e o pai e a filha viveram na solidão todos os anos da sua vida.

No fim desapareceram, como se tivessem sido engolidos por nada, e todos disseram que tinha sido o demónio a pedir a compensação das suas almas. Mas eu sei como foi, visto que fui o único a decidir de misturar-me à sua desgraça, movido por um sentimento de piedade por aquela pobre criatura que crescia no nada, e a quem eu mesmo não podia que levar um pouco de comida. O que aconteceu assusta-me ainda, mas já sou velho e não me deu de temer nada se não a morte. Assim, meus amigos, oiçam as minhas pobres conversas e depois esqueçam-nas. De palavras já existe tantas.

Ele, portanto, continuava a tocar aquela musica, e afundando dia após dia no esquecimento. Tocando-a encontrava paz, iludindo-se de não ser mais o mesmo e fugindo para longe daquela realidade sem esperança… nenhuma coisa o interessava, salvo aquela musica: e quando compreendeu que não podia mais prescindir, mesmo odiando-a, começou a odiar a si mesmo porque a odiava. Não conseguia mais fazer nada: muito menos reparar aquela filha que derretia como uma vela, mesmo sendo sã, e que não proferia nenhuma palavra.

“Maldita musica!” – praguejava para si mesmo. E cada dia se prometia de novo de não tocá-la mais, sabendo bem que não teria hesitado um instante depois pegando de novo na mão os instrumentos para fazê-lo. E todas as vezes que aquelas notas subiam ao céu num mágico encanto no seu corpo desenhavam-se as sombras de esgotamento, aquela mancha escura que todos os dias ganhava mais forma e tornava-se pura, até quando explodiu com o seu medonho aspecto e ele não pôde mais não vê-la. Aquela pata pelosa que lhe tinha surgido no peito era o sinal do diabo, aquele demónio que não tinha por acaso temido e que não temia ainda mas cheio de horrores e de ilusões. Não havia fuga possível: aquela música era o acto de sangue que lhe tinha sugado enfim a alma e que o tinha concedido como uma dádiva ao obscuro senhor. Ele o tinha enfim tocado e o mantinha no punho, nutrindo-se da sua soberba e da falta de fé.

E a contaminação passava de homem para homem através das notas daquela música que solicita os sentimentos para o pecado que não se pode cometer mas que, no íntimo, mesmo por isto já cometeste. Uma peste silenciosa que cada criatura leva para uma outra, repetindo-se o ciclo até ao infinito. Então ele questionou-se quantos massacres tinha cometido, trazendo ao mundo aquela música. Quantas outras manchas esperavam para explodir, quantos pecados circulavam pelo ar à espera de serem colhidos. Tinha sido cego mas agora via e compreendeu que aquela musica precisava destrui-la de imediato, visto que havia ainda uma possibilidade de salvação que impedisse aos homens de seguir o seu próprio caminho dependia apenas dele. Levantou os braços para pegar a partitura… mas não pôde.

Aquela música ainda lhe dizia algo e o encantava, jogando uma fácil partida contra a vontade do homem vencido. Compreendeu num instante que não queria absolutamente destrui-la, mas pelo contrário tocá-la, uma vez que não há tentação mais forte para o ser humano do que aquele de arrastar à perdição o próprio irmão.

“Deves queimá-la” – sussurrou naquele momento uma vez às suas costas.

Era aquela filha muda que agora falava, e estava firme à frente dele, pálida e que sofre no rosto e toda a tremer.

“Deves queimá-la” – repetiu, destapando um seio. Também ali a mancha tinha ganhado forma.

Aquela pata que se tinha colocado no peito dela a tinha enfim tudo escavado e devorado, perfurando também o coração.

“Veja como estou reduzida. Deves queimar aquela música, e deves queimar a mim também.”

Então ele percebeu que não havia mais esperança nem tempo: amontoaram as poucas coisas que tinham na margem do mar e fizeram uma grande fogueira. Depois ele atirou-se ali sobre o corpo da sua filha e por fim aquela música. E esperou silenciosamente que o fogo se apagasse totalmente, reparando os últimos fragmentos da sua vida a desaparecer com ele.

E, quando tudo foi efectuado, sentiu-se velho e cansado: não porque tivesse perdido a sua única filha, mas porque não podia mais tocar a sua música.

E quando este pensamento ficou claro e nítido na sua mente a mancha no peito começou a queimar-lhe e a sufocá-lo numa mordaça, de maneira que o seu corpo ficasse consumido e a carne devorada.

Assim regressou ao seu quarto e matou-se.

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