Vida De Hospedeira

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Uma vida imprevisível

Chegou a primavera e depois um rigorosíssimo inverno teria encontrado finalmente seca a mala que ao lado fica indefesa contra as precipitações atmosféricas, naquele breve lapso de tempo que os responsáveis pela carga necessitam para posicioná-la no compartimento do cargueiro.

Teria sido fantástico passar o período da Páscoa com a Valentina que estava de folga naquele fim-de-semana.

Tinha sido atribuída uma reserva em casa e estava à espera de saber em que cidade do mundo deveria dormir naquela mesma noite.

Tinha enfim compreendido bem que a vida privada e as necessidades de todos os dias caracterizavam-se pela sua mutabilidade e variabilidade: deviam adaptar-se continuamente às mudanças.

É realmente difícil, para um navegante, estar atrás de tudo – especialmente para quem tem família e filhos – e isto acontece sobretudo naquele período em que é atribuída a celebre reserva, isto é a possibilidade de enfrentar imediatamente um voo por causa de uma substituição repentina do pessoal em serviço devido a infortúnio, indisposição, ou mais.

Por reserva entende-se a espera diária, sem certeza, de poder partir para qualquer turno dum qualquer destino, com um pré-aviso de uma hora para poder preparar-se, fazer a mala e organizar uma ausência da casa, para uma duração mesmo de sete dias.

Não é por conseguinte tão agradável ouvir o toque do telefone poderia desrespeitar as tuas atormentadas esperanças de um almoço em família ou um jantar por passar com amigos.

O gabinete de turnos, que regula e organiza todas as partidas, tem esta tarefa e, dadas as diversas dificuldades operacionais devidas as ocasionais ausências do pessoal de bordo, distribuem as rotações provisoriamente descobertos de pessoas em serviço.

A reserva pode iniciar mesmo as cinco da manhã e o toque do telefone àquela hora é realmente arrepiante, daí a mala base com o mínimo essencial indispensável deveria estar enfim pronta para evitar fáceis esquecimentos, na pressa de estar pronto com antecedência.

Uma camisolinha de lã e um fato de banho serão de todas as formas úteis para qualquer destino.

O estojo de maquilhagem deve estar sempre a disposição e é necessário lembrar-se de substituir a pasta dentífrica, quando está para acabar.

Importantíssimas as camisas de reserva do uniforme limpas e engomadas para o voo de regresso e um par de sapatos confortáveis adequadas para cada temperatura, camisa de noite e maquilhagens.

Já enchia a mala mesmo a memória.

Seja como for, estava – e ainda hoje estou – convicta de fazer um dos trabalhos mais bonitos do mundo: mesmo com todas as dificuldades e os lados negativos, mesmo o continuo fazer e desfazer das malas, ou com a vontade de voltar para casa, mesmo com o desejo sempre presente de rever as pessoas queridas. Não sou feita para a rotina e o mundo nunca para de me excitar a curiosidade, a partilha de ideias com os outros mundos e com pessoas sempre diferentes galvaniza-me, ainda mais os regressos a casa oferecem-me suspiros e alegria não usual relativamente àqueles que a frequentam diariamente, as pequenas coisas quotidianas adquirem imensos valores.

A vida quotidiana, no entanto, apertava.

«Partirei, não partirei?», questionei-me naquele dia.

Nada, nenhuma comunicação, nem um telefonema da parte dos turnos.

«Pelo menos hoje poderiam avisar-me com um pouco de antecedência, é dia de Páscoa!»

Nervosa e ligeiramente chateada, tentei por na mala as coisas que me serviriam em qualquer destino, dobrei as camisas e, se duma parte esperava ardentemente para não partir, doutra tinha o desejo de descobrir imediatamente o destino, se por acaso não tivesse tido a possibilidade de ficar em casa.

Às quinze duma longuíssima tarde, Valentina correu para me advertir: «ligou o guarda operativo, mudaram o teu turno, estás de reserva no campo e tens a apresentação às dezassete! Pois, diria que tu sejas sortuda, tens quase duas horas para te preparares e chegar ao aeroporto.»

Abri imediatamente o ovo de chocolate para ver a surpresa e, para ter a sensação de ter passado aquela festividade em casa, comi quase a metade, depois lancei-me no quarto com o coração que começava a bater cada vez mais forte pela pressa.

Procurava nas gavetas peças muito práticas, para pôr todos os dias, versáteis: com a reserva no campo desta vez parte-se de forma mediata e só com poucos minutos de pré-aviso directamente do aeroporto, já com o uniforme usado: é preciso portanto fazer a mala antes ainda de saber o destino.

No mesmo momento em que os meus parentes reunidos para a festa teriam degustado uma maravilhosa pomba recheada com amêndoas, eu não sabia tão-pouco se me encontraria a observar Paris a partir da torre Eiffel, aos pés da Empire State Building ou então numa praia de Copacabana.

«Calças de ganga, um cinto, o último de reserva, uma camisa azul, sim uma camisola branca, também aquela preta porque levarei a bolsa e os sapatos pretos que combinariam com tudo, um fato de banho, um cachecol cinzento pérola e um pulôver da mesma cor que em cima de uma saia dá um look ordenado e sóbrio… e se tivesse que encontrar aquele bom colega viajante em Milão?»

Atirei para dentro também a blusa com pequenas flores rosa e verde que estava colocada na cadeira.

Não tinha tempo de fazer a placa, não teria encontrado propriamente hoje aquele tipo.

Partindo seja como for é obrigado a colocar na mala o mínimo indispensável, e desta forma renunciava durante dias à minha almofada preferida, à vista das flores do jardim, aos livros espalhados na mesinha de cabeceira que ainda tinha que ler, ao café que tomava de manhã exposta à janela da cozinha, aos mios do meu gato quando faz ronrom, aos quadros coloridos da sala de estar, àqueles lindíssimos sapatos com biqueira que já sabia que estariam de todas as formas bastante desconfortáveis depois do voo.

Todavia tinha sempre a mania de levar comigo todo o possível, e levei comigo também uma latinha de sardinha, que nunca se sabe: se estivesse atrasado e encontrar tudo fechado, se me tivessem abandonado os colegas, ou se tivesse rebentado um terramoto, de todas as formas aquele pequeno recipiente de lata infundia-me segurança.

Cheguei ofegante no aeroporto e concretizei que, conforme os turnos atribuídos, poderiam empregar-me durante quatro dias consecutivos.

Eu, apressada, tinha levado apenas um par de calças, tinha esquecido até o carregador do celular e o infalível trench bom ton com os interiores em forma de leopardo.

«Na Europa a temperatura já será suficientemente quente?» interroguei-me.

O caso contrário teria sido, aliás, uma óptima desculpa para um eventual shopping.

Alcancei o briefing – o nosso centro de acolhimento – assinei a minha presença e ajeitei-me na sala adaptada onde, nas confortáveis poltronas de pele preta dobráveis, aguardei juntamente com outros colegas uniformizados para ser chamada para partir na eventualidade de qualquer urgência ou indisposição de um outro membro da tripulação.

Tocou depois dalgumas horas o telemóvel: ganhei uma Roma/Tunis.

Decidi ir antes ao aeroporto nas partidas nacionais para comprar na farmácia uns pensos rápidos para colocar em cima do calcanhar, por causa da dor agonizante provocada pelos sapatos novos acabados de ser adquiridos, que descobri, só agora, que não são perfeitamente adequados.

Cingi-me para fazer uma outra descoberta.

Nunca experimentado passar uniformizada num aeroporto qualquer?

Permaneci bloqueada durante uns vinte minutos, respondendo a todas as perguntas que qualquer um que me encontrasse, me dirigia: onde estariam posicionadas as farmácias, as paragens dos táxi, os autocarros para Ostia, as casas de banho, as saídas para o embarque; as questões sucederam-se, embora eu deixasse claro de ser uma hospedeira de bordo, não de terra, aliás atrasada no voo.

Tinha que por conseguinte renunciar aos pensos rápidos e corri ofegante e coxeando a bordo.

O grupo dos colegas estava já formado, estavam familiarizados porque em rotação já há dois dias, e eu, chegado por último momento como um jolly, era vista inicialmente como se fosse uma intrusa, tratamento aliás habitual para as reservas.

Procurei de me integrar e entrar com gentileza na harmonia que percebia de haver entre eles.

Apresentei-me ao comandante na cabina de pilotagem e depois a todos os colegas de trabalho, mostrando o meu melhor sorriso.

A colega que trabalhava na minha zona, no fundo do avião, tinha um aspecto aprazível, físico harmoniosos, ancas perfeitas, feições delicados, cabelos de um lindo castanho cor de âmbar, olhos verdes maquilhados com um lápis castanho-escuro, que delineava as suas cores claras e um nariz direito, pouco pronunciado.

Antes da chegada dos passageiros ficamos a conversar e como sempre, revelamo-nos alguns pequenos segredos das respectivas vidas privadas.

Habitualmente no avião – entre nós assistentes de bordo – desde logo se instaura uma relação particular: é como um fio invisível que nos faz sentir parte de uma grande família que não te deixará por acaso sozinho. Estamos dispostos a dar-nos ouvidos, percebemo-nos com um olhar, dar um abraço, rir por asneiras, desdramatizar, recuperar a ironia, reencontrar o sorriso, libertar a mente das angústias da distância.

A colega mascou uma pastilha de mentol, ofereceu-me uma, borrifou-se de perfume que trazia na bolsa, aplicou o creme para as mãos e foi para a casa de banho para retocar a maquilhagem, já perfeita.

Demos uma olhadela aos títulos dum jornal diário impresso encontrado no galley.

Chegaram os passageiros, nos disponibilizamos na cabina e os acolhemos: «Bem-vindos a bordo!»

 

O voo estava cheio, naquele período estavam todos em partida para as férias e depois do embarque, apertei o cinto de segurança preparada para a descolagem.

Antes que o avião mal assumisse um enquadramento que consentia de estar perfeitamente em equilíbrio, ficamos todos em pé para preparar os carrinhos, esquentar as comidas da primeira classe e oferecer os welcome drink.

Estabelecida também, infelizmente, contacto com algo que tem pouco a ver com o voo e muito mais com uma generalizada idiotice difundida em todo o ambiente: um passageiro com o qual tinha sido apenas e exclusivamente gentil de forma portanto profissional, a um certo ponto colocou a sua mão no meu traseiro e, reprimindo o instinto de agarrar o seu pulso e virá-lo a 180 graus, preferi, usando ainda as primeiras armas, limitar-me a gelá-lo com o olhar, censurá-lo em voz baixa pelo seu comportamento e ameaçá-lo por uma denuncia, com os dentes cerrados, se tivesse repetido o facto. Comecei questionando-me, naquele dia se não tivesse sido eu mesma, talvez excedendo na confidência, para criar nele a convicção que pudesse permitir-se este gesto ofensivo: como algumas vezes acontece, estava inutilmente culpabilizando-me e respondi para mim mesma que nada poderia por acaso consentir a qualquer outro uma aproximação do género.

Chamou-me depois o responsável da cabina porque reluzia uma alerta de incêndio na casa de banho.

Esperava de não ser obrigada a usar o extintor para domar um suposto princípio de fogo, mas na minha mente já tinha focalizado a colocação dos equipamentos necessários mais perto de mim; aproximei com cautela e depois de ter pedido a permissão, abri veementemente a porta e encontrei um homem dos seus cinquenta anos que tinha ainda a beata na mão e um persistente hálito de fumo emanado mesmo pela sua roupa; proferiu veementemente as desculpas pelo mal-entendido e correu para o meu lugar.

Uma velhota pediu para reaver a sua bagagem, posta no porta-chapéus, porque o azeite extra virgem engarrafado no seu pais de origem estava a gotejar a partir de cima, no momento em que um menino gritava porque a mãe obrigava-o a manter ainda o cinto de segurança apertado.

Era preciso fazer tudo às pressas, a aterragem era eminente.

O passageiro do lugar 5B disse de não estar com fome, e pediu para comer depois: fiquei baralhada, mas era apenas o inicio de uma interminável serie de esquisitices que durante anos acompanharam e continua acompanhando quase todo o voo.

Era preciso repor os carrinhos e todas as bandejas, fazer os anúncios, contar e selar todas as bebidas alcoólicas antes da aterragem e preencher o módulo que, à primeira vista, pareceu-me complicado.

«Onde estarão os selos? Como se faz para inseri-los correctamente na fissura? Onde escrevo o numero para a alfandega? Que documentos devo controlar? Servem os cartões de desembarque?

A minha imatura experiencia levava-me com frequência a pedir ajuda à colega.

Zaira explicava-me tudo com calma, com as suas maneiras delicadas, quase chocando-me com a luz do seu fascínio; conhecia à perfeição as dinâmicas do serviço e os procedimentos de emergências, e me mostrou até, com extrema disponibilidade, a disposição de todos os equipamentos.

Era mulher não tanto assim jovem, penso que tivesse superado há muito tempo os quarenta anos, mas isto não representava um problema para ela nem parecia perturbada pelos anos que passam.

Pelo contrário, creio que soubesse, de forma relevante, de melhor poder contar com a sua experiencia e solidez intelectual muito mais que sobre a beleza física que, de forma evidente, tinha possuído na juventude.

Sentia dentro de mim que ela conhecia claramente como controlar as emoções, como mantê-las sob controlo e adequa-las às circunstâncias.

Soube que tinha encarado, recentemente um problema muito grave: o seu companheiro, que amava muito, tinha sido atropelado por um carro que corria a uma velocidade de loucos desacautelado as passadeiras, e atingido em pleno.

Coma profundo foi o diagnóstico, segundo os médicos irreversíveis.

Zaira tinha transformado a sua dor em silêncio, um som mudo. E tinha continuado a amá-lo, e o teria amado para sempre, mesmo sabendo que nunca poderia vivê-lo como antes.

Ela falava pouco, mas conseguia igualmente exibir um incrível sorriso à vista dos passageiros, em perfeito padrão de serviço, mostrando empatia e calor a todos; a sua maturidade infundia segurança.

Nunca dava juízos apressados sobre uma pessoa, era uma perfeita dona de casa, sempre disponível; vestia o uniforme de maneira impecável com os sapatos polidos e os cabelos arrumados, única excepção à regra uma pequena pulseira em ouro branco de Tiffany&Co., oferecida na ocasião como presente de aniversario.

A observava procurando perceber a sua força e aquele estilo tão elegante na forma de apresentar-se aos outros, tão feminino, muito profissional.

Conseguia colocar-se no lugar dos outros e evitava prudentemente a polémica, oferecia sempre atenção e solidariedade.

Como no manual, certo: aquele manual de assistência que cada um de nós lê e ao mesmo tempo escreve dentro de si.

A teria tido sempre como exemplo e foi, sem ela saber, o meu ponto de referência no plano laboral.

É ainda hoje.

Ela era especial, diferente.

Sobretudo como alguns outros meus colegas mais antigos, não muito, infelizmente, através dos quais efectivamente – muito cedo – dei-me conta que a praxe não é um fenómeno apenas militar.

As hospedeiras designadas aprendizes ou sazonais, em outras palavras, aquelas aos primeiros voos, nos meus tempos, eram sujeitas a ler formas da declarada injustiça, uma espécie de começar por baixo.

Nos voos internacionais e de longo raio da Boeing 747 tinham a tarefa de cortar os limões e eram destinadas preponderantemente para controlar e esquentar as comidas no galley, por isso efectivamente eram denominadas as ‘ghelliste’.

Toleravam com todo o gosto algumas brincadeiras da parte dos colegas mais antigos e brincalhões: ficavam muitas vezes empenhadas e fatigantes procuras para a descoberta de material não existente a bordo, por exemplo os assentos, ou então uma desaparecida vassoura que deveria ser colocada no compartimento eléctrico, um lugar quase inalcançável e de difícil acesso que se encontra por baixo de uma pesada escotilha no corredor; outras vezes os pedidos eram para prestações sobre presumíveis tarefas por efectuar não previstos, e das quais não estavam a conhecimento; tudo condimentado com alegria, espírito de grupo, estima e respeito recíproco.

As mais jovens, aquelas com o contrato a tempo determinado ficavam constantemente sob controlo, e uma única avaliação negativa poderia não garantir a contratação para a sucessiva campanha, daí sofriam pela precariedade e insegurança que oferecia esta situação, agravada posteriormente pelas contínuas crises económicas e politicas que se sucedem no nosso país.

Estas raparigas deviam estar sempre disponíveis, mesmo durante o período em que não trabalhavam, para que a companhia aérea pudesse contactá-las para um repentino regresso laboral, e deviam estar prontas para organizar-se em pouco tempo encontrando uma acomodação na cidade da base de partida requerida. Eu, felizmente, já tinha sido admitida a tempo indeterminado, e não sofria os mesmos vexames.

As suas fichas de avaliação continha critérios muito mais severos e elas deviam demonstrar uma notória motivação e interesse de fazer bem o próprio trabalho, manter claramente comportamentos e atitudes serenos e de colaboração com os passageiros e a tripulação, mostrar-se constantemente zelosas e sorridentes, falar de forma correcta e graciosa e procurar oportunidades de contacto, mesmo fora dos serviços pedidos, deviam reconhecer e respeitar sem excepções as hierarquias a bordo, e preparar-se adequadamente e com diligência para o voo.

Pequenas notas negativas poderiam evidenciar a necessidade de qualquer aprofundamento sobre o pessoal de formação, sobre as normas técnicas, sobre o serviço a prestar ou então sobre as competências linguísticas, colocando em risco a sua admissão definitiva.

Normalmente os mais antigos, os colegas com mais anos de trabalho nas costas, possuíam a principal relevância e dispunham do maior poder a bordo.

Conseguir uma longa experiencia laboral era um valor acrescentado, um bem precioso: a antiguidade, neste âmbito, melhora as qualidades profissionais porque doa um forte conhecimento profundo das situações, uma elevada competência e ajuda a prevenir e a gerir os problemas com mais facilidade e tempestividade, embora algumas vezes acontece que alguém se aproveita deste poder, infelizmente.

Voltei para casa e, encontrada a Valentina, teria tido uma dura confirmação disto.

Os regressos a casa são um momento particular, e não obstante os anos, teria compreendido depois, têm sempre o mesmo impacto.

«Olá Vale, como foi? Parece estar arruinada, esperava que te tivesse divertido durante aqueles cinco dias nas Maldivas.»

«A ilha é fabulosa: praias com areia branca, extensão de palmeiras e água muito quente, panorama extraordinário. Mas agora estou cansada, Anna: não vejo a hora de desfazer-me deste uniforme.»

Disse assim Valentina, regressada a casa há pouco tempo, tirando em primeiro lugar os sapatos e lançando as meias calças no pavimento. Parecia perturbada.

«Espera, preciso dalguns minutos, arrumo a mala te alcanço.»

Eva, no entanto, estava estendida na cama no seu quarto. Não conseguia apanhar sono, e levantou-se para beber água. Regressada de Hong Kong, contou-me sem delongas de ter dançado juntamente com os colegas na discoteca Joe Banana e de ter visitado a ilha de Kowloon, próximo do hotel.

Eva contou sobre um estranho acontecimento: tinha encontrado uma colega de nome Rebecca, a bordo. Estavam em serviço na mesma tripulação.

Rebecca, eu bem a conhecia. Éramos vizinhos de casa em Fregene e, algumas vezes, tinha vislumbrado a sua irmã gémea: idênticas como duas gotas de água. Ela mesma contava que desde criança eram trocadas por todos, ninguém conseguia reconhecê-las, salvo a sua mãe.

Mesmo na escola conseguiam gozar com os professores nas interrogações, indo na casa de banho e trocando-se seja as roupas como o lugar voltando à sala, só uma pequena pinta no nariz de Rebecca podia deixar descobrir a real identidade, mas era possível desenhá-lo no rosto da irmã, com o auxilio de um lápis preto para a maquilhagem. Também a voz era idêntica.

Eva prosseguiu: «reparei-a nos olhos acabada de chegar a bordo, e ela não me reconheceu. Com um sorriso fui ao encontro dela para saudá-la.»

«Lhe disse Bom dia! E com um simples Bom dia respondeu-me ela, muito despachadamente.»

Eva acrescentou também de ter notado que o uniforme não lhe ficava propriamente muito bem e de ter constatado um declarado mal-estar ao mover-se, como de quem se encontra num ambiente pouco conhecido.

«Rebecca mantinha as distâncias de todos. A partir da lista, creio que tivesse a irmã a bordo, passageira do voo.»

Algum tempo depois, todavia, me disse que encontrou Rebecca de novo que tinha sempre reconhecido, voltando da casa de banho, parecendo ligeiramente mais magra como se tivesse aparecido poucos minutos antes.

Ouvi por aí que mesmo a irmã tenha tido sempre o desejo de fazer o nosso trabalho, e que no inicio tivessem participado às selecções juntas, superando-as ambas, mas a comissão examinadora não pôde admiti-las ambas por causa das precisas normas do regulamento, infligindo uma grande desilusão à excluída.

Suponhamos que por um dia Rebecca tivesse oferecido á irmã um breve passeio na cabina usando as roupas de hospedeira. Mas também que não teríamos falado por acaso com ninguém explicitamente e que esta ficaria para sempre apenas uma das tantas lendas dos céus.

Depois de cada voo é necessário tempo, para reapropriar-se daquela realidade quotidiana que foi interrompida, e que inevitavelmente depois de dias encontra-se modificada: é preciso readaptar-se para retomar os ritmos habituais, voltar a ligar os fios que tinham permanecido suspensos, recolocar-se no ambiente, adequar-se ao clima actual, relaxar, descansar e esconder-se naquilo que é percebido como um refúgio acolhedor e conhecido: tem-se a necessidade de ter contacto com a casa, e cada um faz da sua maneira.

Escutar as mensagens da secretaria telefónica, ler um jornal diário, telefonar para um amigo, deitar-se no sofá depois de ter soltado os cabelos e fazer-se massagem nos pés era o hábito de Valentina.

 

Ludovica pelo contrário devia imediatamente desfazer a mala e pôr no cesto da roupa as peças do vestuário sujas subdivididas entre as lavagens a mão e aquelas na máquina de lavar, para depois relaxar polindo com um pano os sapatos antes de repô-las no guarda-roupa.

Eva em cada regresso deixava tudo assim como estava, teria organizado o dia sucessivo e depois um prato de massa, a qualquer hora do dia, punha-se a dormir com uma pequena máscara nos olhos para evitar a luz.

As vezes tomava os comprimidos melatonina, adquiridos nos supermercados Duan Read na América, que a ajudavam a reconciliar o sono.

Eu, nos meus regressos, contemporizava na cozinha ainda com o uniforme no corpo, mas sem o lenço, casaca e sapatos e comia umas bolachas com um bom cappuccino descafeinado quente.

Telefonava para Stefania, por hábito, impaciente para contar-lhe tudo aquilo que me tinha sucedido.

Dormia não antes de ter aplicado um creme hidratante no rosto.

Eva voltou para a cama e eu alcancei Valentina.

«Então, Vale, o que aconteceu? E não tentar enganar-me: vê-se a quilómetros que estás perturbada.»

«Nada, nada. Roberto, o colega responsável do Bronx é um grande… um grande… mal-educado.»

«Bronx??»

«Hoje descobri que chamam desta forma as últimas filas da zona económica do avião, aquelas apinhadas de passageiros! Pois, não vai acreditar…»

«Não vai acreditar o quê? Força, ânimo: desembucha.»

«Ok. Pois aquele sacana te… tentou por as suas mãos em cima de mim.»

«Em cima de ti?»

«Sim, também pediu-me para beijá-lo, e me garantiu que se o tivesse feito teria tido uma avaliação profissional no fim do voo»

«Já ouvi isso, sabes? Creio que tenta com todas as colegas mais jovens. Mas tu o que fizeste?»

«Pois, praticamente eu tentei fazer-lhe perceber que não me interessava, mas ele, como resposta, empurrou-me sobre as nossas poltronas de repouso e estava para deitar-se em cima de mim.»

«Que cobarde!»

«Saí correndo, não sabia como reagir. Não lhe dirigi a palavra durante toda a estadia, naquela ilha tão pequena. Podia atravessá-la a pé e havia um único restaurante.

A areia era muito macia, os peixes variegados, o sol acariciava a pele, um paraíso terrestre se não tivesse sido aquele imbecil, que raiva! Creio que tenha feito uma avaliação negativa para vingar-se, mas explicarei tudo ao meu tutor, o chefe do sector, se tiverem que me chamar, como é provável, para esclarecer os motivos do juízo negativo.»

«Que bastardo! Todo juízo é importante sobretudo nós que apenas começamos este trabalho.»

«É assim. E alguns aproveitam-se.»

Não sabia o que dizer-lhe, o que aconselhá-la. Procurei portanto de dizer-lhe alguma coisa que a ajudasse de todas as maneiras a superar o mal-estar, partilhando com alguma minha experiencia.

«Comigo aconteceu que num voo para rio de Janeiro, a minha responsável, a senhora Micalini, ordenou-me com um tom prepotente e ameaçador, para tirar os brincos porque julgava que a cor do pequeno rubi cravado não estivesse conforme às normas da companhia; e não lhe agradava o meu penteado porque segundo ela não era regulamentar, deveria cortar os cabelos ou em alternativa fixá-los melhor com ganchos.

Segui os seus rigorosos conselhos, deveria enobrecer às suas maneiras.

É uma mulher que fala cinco línguas, até o árabe, conhece bem o seu trabalho, mas a sua maneira de fazer foi desdenhosa e vaidosa, há muitas maneiras de dizer as coisas.»

Naquele momento a porta entreaberta abriu-se. Era Ludovica:

«Claro que dormir nesta casa é próprio um negócio impossível, eh? E seja como for ouvi tudo. Agora apanhem a história daquilo que aconteceu comigo.»

Depois de ter sentado no canto da cama, confessou que um colega antigo, na índia, em Delhi, ligou para ela e lhe tinha comunicado que chegaria imediatamente no quarto dela para fazer-lhe umas massagens, visto que tinha apenas terminado um curso de Shiatsu e, certamente, este procedimento terapêutico lhe teria proporcionado vantagem.

«Não obrigada, não me interessa, eu quero apenas repousar» respondeu ao colega, apelidado de o Principezinho pelos seus modos não ortodoxos.

Poucos minutos depois ouvi alguém a bater a porta.

«Sou eu. Abra, pequena!»

A porta, naturalmente, permaneceu fechada.

Conseguimos rir, finalmente, e depois s dormir sobre o assunto.

Aquele bate-papo, com o tempo, se teria tornado um encontro recorrente.

Pareceria que alguns homens sejam um pouco surdos, especialmente em relação às raparigas giras, jovens e solteiras, daí é necessário estar bem claras, decididas e concisas para prevenir situações pouco agradáveis porque frequentemente maneiras delicadas e modos gentis são confundidos e percebidos como auxílios para aproximações da vária ordem. Cada uma de nós teve que aprender esta lição à sua custa e dada a frequência deste tipo de acontecimentos, com as histórias dos dias passadas no voo e as anedotas nós jovens raparigas partilhávamos quando nos encontrávamos juntos em casa, conseguimos redigir uma lista baseada nas nossas experiencias que dizia respeito aos vários tipos de aproximação relevadas pessoalmente por cada uma de nós, efectivamente com um trabalho sempre em contacto directo com o publico e muitas vezes momentaneamente parados em várias cidades, conseguíamos catalogar estes comportamentos obras de homens das mais diferentes nacionalidades e profissões, mas também da parte de alguns colegas que sofriam de solidão frequentando quartos do hotel.

Voltando para casa, tínhamos assumido para conservar, cada uma numa custódia marcada com o próprio nome, mais um cartão-de-visita: eram enfim uma considerável colecção.

«Quem mais as teria no fim do ano?»

Muitos, têm estranhas fantasias sobre as hospedeiras.

Eu, Eva, Valentina e Ludovica, normalmente sentados em roda na cozinha, diante de uma chávena de chá indiano quente ao limão e algumas bolachas, narrávamos mutuamente, rindo muitas vezes às gargalhadas, os episódios dos vários galanteios sucedidos.

Relevamos enfim, que os tipos de aproximação no voo, mesmo sendo as vezes diferentes entre elas até fazer-se articulados, complexos e originais, de facto têm muitas semelhanças de base, e por brincadeira lavramos uma lista, procurando de catalogar as várias tipologias baseando-se nas experiencias que tínhamos passado pessoalmente.

Protótipo 1: galanteador

Durante uma troca de informações e um diálogo rápido com um passageiro, acontece que este peça, simulando de fazê-lo desatentamente com interpretações que mereceriam um Óscar para o melhor personagem não protagonista, a cidade e o hotel onde iremos dormir, para perceber se o seu mesmo destino final é também o teu, e arranjar alguma chance para um eventual convite para o jantar.

Protótipo 2: o duplo

A: cordial inicialmente + B: insistente depois

Este foi realizado segundo uma minha experiencia – tipo:

Encontrava-me no voo Roma – Milão das 13:20.

Era a primeira rota de três vaivéns, termo inventado para rotas breves sempre para os mesmos destinos, que deveria efectuar a tarde:

Turno: Roma - Milão com descolagem 13:20 e chagada às 14:20

Milão - Roma: descolagem 16:20/chegada 20:20

O voo terminava com uma paragem em Milão.

Ao lado do meu assento dobrável, posicionado na porta numero três left, no avião Airbus 321, estava sentado um distinto senhor aproximativamente dos seus trinta e cinco anos, que me afectou pelo seu discernimento.

O fato que vestia era de alta-costura, a gravata bem combinada mas com o nó ligeiramente solto e o primeiro botão da gola da camisa desabotoado, os sapatos polidos, cabeleira espessa com corte impecável, mãos cuidadas, óculos de vista de moda, malinha em pele de napa, modos delicados, ar de intelectual.

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