Vida De Aeromoça

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Vida De Aeromoça
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Marina Iuvara

© 2021 - Marina Iuvara

VIDA DE AEROMOÇA

O mundo é a minha casa

Tradução de André Spiller Fernandes

Obra protegida por direitos - todos os direitos reservados - é proibida a sua divulgação ou reprodução, total ou parcial, sem a expressa autorização.

Este livro é uma reformulação da primeira edição de “Vita da hostess” (sem tradução para o português).

Passaram alguns anos desde a primeira publicação daquele livro, e decidi renová-lo e complementá-lo.

Bem-vindos a bordo: this is the next flight.

Marina Iuvara

Anjos do ar

Mulheres independentes, de uniforme, perambulando pelo mundo.

Ícone glamoroso de liberdade.

Em sua maioria mulheres que exercem uma profissão com peculiaridades únicas, uma fonte inigualável de alegria e satisfação, mas também cheia de facetas difíceis e reflexos muito importantes na vida pessoal.

As comissárias de bordo são tradicionalmente identificadas no imaginário coletivo pelo que é aparente: seus uniformes elegantes, escalas em todos os lugares do mundo, o contato com diversas pessoas ou as compras por toda a parte. É fácil encontrá-las nos aeroportos, junto do resto da tripulação: por vezes, são vistas ainda hoje com admiração e uma pontinha de inveja. “Eu gostaria tanto de ter esse trabalho também”, pensam em segredo muitos. Outros dizem o contrário: “Nunca poderia fazer isso”.

Na verdade, as aeromoças - naturalmente, também chamadas comissárias de bordo - desempenham com eficiência e profissionalismo um papel exigente e são um componente fundamental para a segurança do voo, capazes de lidar, com técnica e paciência, com emergências de todo tipo. Devem estar sempre prontas para resolver os mais impensáveis e complicados imprevistos, mantendo, além disso, a distância dos afetos e de casa, ou ainda a difícil gestão de seu tempo, além dos efeitos do fuso horário.

Neste livro, tentei contar os aspectos menos notáveis e dificilmente imagináveis.

Dedico-o, portanto, a todas nós.

Introdução

A figura da aeromoça aparece pela primeira vez nos anos 30, em uma companhia aérea norte-americana.

No início, a maioria duvidava da utilidade dessa função: frágeis e graciosas garotas, com menos de 25 anos de idade, cujo peso não podia passar de 52 quilos e a altura nunca mais de 1,63m, vestidas com o mesmo uniforme, formadas em enfermagem e convidando os passageiros a ocuparem seus assentos com gentileza.

Sua figura e função mudaram muito ao longo dos anos.

Em 1940, depois do ataque a Pearl Harbour, as aeromoças foram alistadas em aviões militares para servir a pátria.

Em 1950, foi escrito o primeiro manual da aeromoça perfeita: forte como um soldado, afetuosa como uma mãe, disponível como uma gueixa, bem informada como um guia turístico.

Nos anos 60 e 70, as aeromoças inspiraram orgulho ao representar as companhias aéreas e foram comparadas a modelos.

Eram vistas como mulheres dotadas de beleza, desejáveis e invejáveis, com a possibilidade, ainda não disponível a todos, de viajar e conhecer o mundo.

Em 1960, no jornal New York Times, uma estatística norte-americana descreveu as aeromoças como “mulheres perfeitas”, porque, ao caminhar 300 milhas para cima e para baixo entre as poltronas, parecem muito bem treinadas, comprovadamente resistentes ao cansaço.

Com a chegada da revolução feminista e das conquistas posteriores em matéria de direitos das mulheres, em 1971, foi abolida a regra que as proibia de se casar. Em 1974, o salário foi equiparado ao dos homens. Em 1975, foi removida a proibição à maternidade e, em 1979, foram abolidos os limites de peso.

Até hoje, a responsabilidade principal de uma aeromoça é garantir a segurança dos passageiros a bordo das aeronaves, assim como servi-los durante o voo.

Prefácio

Perfeitamente treinadas no campo da segurança aérea, habilitadas e certificadas em primeiros socorros, competentes em línguas estrangeiras, hábeis nadadoras, bem cuidadas, sorridentes e bem educadas, as aeromoças devem ter, além de uma predisposição às relações interpessoais, um excelente equilíbrio emocional e um forte senso prático.

O estilo de vida é frenético, o trabalho é cansativo e estressante, também por causa dos fusos horários; o ambiente onde trabalham é pressurizado, e o solo onde se movem durante o trabalho não está sempre na horizontal. No entanto, têm autocontrole e devem estar sempre prontas para se virar em situações imprevisíveis.

As aeromoças estão em contato com pessoas de todas as etnias, culturas, níveis de escolaridade, origens e caracteres.

Encontram crianças esplêndidas como raios de sol ou, às vezes, também mais turbulentas que as turbulências, pessoas de idade avançada com quem se deve lidar com tato e sensibilidade, personalidades que requerem discrição e segredo, homens de negócio, divas, grupos de turistas alegres e despreocupados, casais românticos em lua de mel, doentes a cuidar, emigrantes de países distantes, proselitistas e catequistas de diferentes fés. Todos devem ser tratados com cuidado e profissionalismo.

Elas devem gerir as incumbências urgentes antes da decolagem e da aterrissagem, observar as disposições de segurança enquanto realizam suas tarefas e obrigações, observar as hierarquias e zelar pelos muitos pedidos a satisfazer. São submetidas a longos e contínuos períodos longe de casa e a relações pessoais difíceis por causa das ausências impostas pelo trabalho.

São muitos os aspectos negativos desta profissão única: pelo menos muitos dos que veem de fora não imaginam ou conhecem essas dificuldades.

Contudo, toda aeromoça, apesar de tudo, sente uma melancolia e uma nostalgia quando não está voando.

Lindos postais se guardam no pensamento a cada nova rota, e mesmo o voo mais difícil é sempre uma experiência enriquecedora.

O sushi japonês, a areia das Maldivas, os arranha-céus de Nova York, a vida noturna argentina, a alegria brasileira, os céus de Londres e os perfumes parisienses surgem no horizonte, ganham vida e trazem emoções únicas, mesmo que em curtos espaços de tempo, mesmo que cobertos pelo cansaço do fuso horário, mesmo que sempre apressados pelo pouco tempo disponível.

Cada anoitecer se apresenta espetacular visto de cima, sobre as nuvens.

E a bordo dos aviões, acontece e pode acontecer de tudo: muitos passageiros se distinguem por sua classe ou estilo inigualável, alguns se mostram menos elegantes.

Pode acontecer que algumas pessoas percam o controle se estiverem nervosas ou estressadas: muitos precisam de apoio psicológico porque sofrem de aero- ou claustrofobia. Excepcionalmente, alguns bebem demais e podem ficar violentos. Tudo pode acontecer durante o voo.

De fato, no avião, até o menor e mais insignificante episódio ou incidente pode se transformar em algo que demanda a máxima atenção.

Quem precisa de cuidados deve ser assistido imediatamente, e as emergências médicas são frequentemente resolvidas de maneira brilhante.

Em quase todo voo, acontecem experiências comoventes, que demonstram profunda humanidade e solidariedade.

Como se reconhece uma aeromoça?

- Verifique os objetos que ela tem em casa: não sabe o que são, para que servem, de onde vêm?

- Veja as fotos nas paredes: os fundos parecem ser de outro lugar no mundo?

- Pergunte se ela já provou o frango frito das ruas de Bangkok, frequentou os melhores restaurantes franceses ou provou o serviço de quarto na frente de um espelho em um hotel luxuoso.

- Preste atenção nos horários em que ela come ou dorme: estão de acordo com horários normais?

- Observe-a na hora das refeições: ela come em pé, mas não vê a hora de se sentar?

- Olhe na geladeira: ela pôs copos de plástico ao lado de garrafas de água?

- Pergunte-a onde comprou alguma peça de roupa que veste: você também precisaria pegar um voo para comprá-la?

- Não deixa de lado aquela calça boca de sino na moda em Londres, conhece as datas das liquidações da Gap em Nova York, compra roupas da Gucci nos outlets de Miami, bolsas da Louis Vuitton nas liquidações de Tóquio, palmito na Argentina, suco de açaí, pão de queijo e tapioca no Brasil?

- Só faz luzes na sua cabeleireira preferida em São Paulo ou em Milão?

- Tem certeza que os cremes de Tel Aviv e os shampoos orgânicos de Toronto são os melhores?

- Preste atenção: tira os saltos sempre que puder? (espie debaixo da mesa ou no carro).

- Olhe na sapateira: ela tem diversos saltos da mesma cor?

- Fala com muito conhecimento de lugares que você só conhece na fantasia ou que precisaria de muitas vidas para conhecer?

- Pergunte qual é o lugar mais espetacular de todos os que ela visitou: o sofá de casa fica em primeiro?

- Pergunte as últimas notícias sobre cultura e política, mas principalmente as fofocas: ela sempre tem as últimas novas?

- Veja o que ela guarda na bolsa: há objetos dos mais diversos, que te socorreriam em qualquer eventualidade (lixa de unha, livro, maquiagem, lanterninha, sombrinha, GPS, máquina fotográfica, laptop, calça extra, escova de dente)?

- Tem diversos números de telefone e contatos de colegas e conhecidos, mas não consegue lembrar o lugar, ano ou situação em que se conheceram ou conviveram?

- Sempre que sente cheiro de fumaça, verifica de onde vem e se levanta para procurar o extintor de incêndio mais próximo?

 

- Reconhece de cara a personalidade e o tipo social de qualquer pessoa e consegue se relacionar com qualquer um, independente de idade?

- Não desanima quando precisa ajudar alguém em dificuldade?

- Convive com os outros maravilhosamente em qualquer situação, mesmo que ame os momentos de solidão?

- Não sente nem um pingo daquele súbito nó no estômago que você tem quando o avião começa a decolar?

- Vá bisbilhotar seu quarto: sempre tem uma malinha de mão à espera de uma saída inesperada? Consegue colocar nela tudo que possa ser necessário para uma semana inteira e não se atrapalha mesmo se tiver só uma hora para fazer uma viagem imprevista de Roma a Caracas?

- Se todas as respostas forem afirmativas, não tenha dúvida: trata-se de uma "MULHER COM ASAS".

Bom voo

Como estavamos.

Volto para a minha terra, na sicilia, pelo menos duas vezes por ano, para as festividades e durante o periodo do verão, turnos e férias permitindo.

Viajar no avião enfim é para mim normal, faz parte do meu trabalho. Ainda que passavam muitos anos, todas as vezes que chego, junto de um intenso cheiro da flor de laranjeira que espalham os pomares laranjais e o vento do sudeste proveniente de Africa, envolvem-me silenciosos mesmo as recordaçoes da minha infancia.

Hoje é uma quinta-feira de Julho: os trinta e seis graus estão na regra.

Durante o verão esta terra fica quente, luminosa e exposta ao sol: tudo parece mais lento e custa para manter um ritmo de vida dinâmico por causa desta temperatura que eu gosto, mesmo sendo as vezes intrometido.

Os raios solares espalham-se sobre todo o espaço livre da pele, penetram até aos ossos, muitas vezes me robustecem, e as vezes deixam-me relaxar até atordoar-me para depois adormecer.

A pausa do meio-dia, usual nesta região, interrompe a produtividade diurna. Escuto o som repetitivo e quase hipnótico das palas do ventilador, colocado em cima dum banco antigo; a sua brisa contrasta o ar quente e sufocante desta tarde de céu azul, desprovido de nuvens.

À noite a temperatura sofre uma ligeira descida, e os amáveis ventos suaves aliviam o clima de noite.

Estou hospedada na casa dos meus pais e cada detalhe sobre a qual os meus olhos debruçam-se faz ressurgir na minha mente cenários vividos e recordados enfim longínquos.

Antevejo uma saia interior de seda cor creme com delicados bordados de um tom ligeiramente mais claro, pendurada no guarda-vestidos estilo Luís XVI que a minha mãe escolheu há mais de quarenta anos para embelezar o seu quarto que desde então ficou sempre o mesmo, inalterado ao longo do tempo; eu dei-me conta, pelo contrário, de ser tão diferente desde quando me agachava debaixo dos cobertores daquela enorme cama para escutar as fábulas narradas por ela antes de ir à cama, e diferente mesmo desde quando, muitos anos depois, já adolescente, às escondidas conseguia experimentar os seus colares mais preciosos, espelhando-me naquela grande moldura dourada de um espelho, colocada no centro do quarto, enquanto dançava de forma espontânea e folgada sozinha, como uma descarada, assim teria dito o meu pai, se me tivesse visto.

Lembro de ter possuído, então, uma saia interior de uma cor idêntica àquela da minha mãe, eu gostava vesti-la pela sensação de ligeireza e frescura que me reconfortava durante os dias mais húmidos.

Na educação por mim recebida esta indumentária era permitido apenas em casa, e vestido tendo o cuidado de encostar as persianas, donde evitar indiscretos olhares externos, visto que a varanda apresentava-se sobre um grande pátio.

Induziram-me desde pequena para esconder-me, e para cobrir-me como deve ser, diante de qualquer pessoa.

Pouco a pouco vinham insinuadas gotas de castidade na minha alma, dia após dia.

«Cubra-te, cubra-te que alguém pode te ver!» chegava aos meus ouvidos se as vezes contemporizava no meu quarto vestindo, esquecendo de puxar as cortinas para fechá-las.

Ainda hoje, antes de despir as roupas, verifico que tudo esteja fechado e que ninguém possa ver-me, mas isto não o confessei por acaso nem para a Valentina, uma minha querida colega que com a qual durante anos partilho um apartamento, perto do aeroporto, na cidade onde actualmente resido: Roma.

Desde criança obedecia com escrupulosa atenção as regras, para evitar de sujeitar-me aos castigos, excessivamente severos muitas vezes.

Havia uma austeridade de ideias e hábitos transmitida de geração em geração. A minha tia Carmela, apelidada por Lina, contava que a primeira vez que ousou dizer um palavrão foi convidada a abrir a boca e tirar para fora a língua.

«Que estranha brincadeira!» pensou.

A sua mãe, a minha avó Giuseppina, pegou um dos ganchos que recolhiam os seus cabelos compridos, e com ele espetou a sua língua.

Vistas as consequências, poucas entre filhas e netas da minha família dizem palavrões, não obstante, nos momentos oportunos, lhes ocorre.

Estou aqui em Catania de férias por uma semana e encontro de novo os antigos sabores, cheiros, sensações.

Acolhe-me o solar sorriso da minha mãe, que se contem ao abraçar-me forte como queria, talvez por medo de esmagar-me.

Acaricia repetidamente os meus cabelos pretos como a pez iguais aos seus, compridos até mais abaixo dos ombros, deixados soltos para libertá-los das constrições das ataduras impostas pelas regras do meu trabalho.

A pele da mamã é branca e delicada, mórbida como a areia, e cheira como pétalas de rosa, misturados a citrinos.

Sempre lhe pareço bastante magra – mesmo estando, do meu ponto de vista, pesada mais ou menos por aí um ou dois quilos, relativamente ao meu utópico peso ideal – por conseguinte convida-me para consumir aquilo que abundantemente coloca no meu prato.

Hoje preparou para mim, a sua Annuzza, os meus pratos preferidos: linguine (tipo de massa) a preto de sépia e peixe-espada no cartucho.

Ela não se farta por acaso de me olhar e acarinhar-me, eufórica e emocionada ao único pensamento de ver-me de novo.

Também as minhas tias e primas demonstraram o seu afecto com todo o gesto todas as vezes que me viam, querendo ouvir tudo sobre as minhas viagens e sobre o meu trabalho.

Eu sou, no imaginário delas, uma parte do mundo delas que foi para um outro: aquele mundo feito de sonhos diante de uma revista, atraente todavia descrito como perigosa, tentacular, capaz de impelir-te irreversivelmente. Eu sou a prova viva de que o mundo sim, muda-te, mas permanecendo tu mesma, porque aquilo vai depender apenas de como és feito por dentro. E elas são, para mim, a parte mais importante daquilo que aprendi durante todas estas viagens: que podes ir longe só se tens um lugar interior donde partiste, e onde regressar. Aprendi que poderás estar em toda a parte, mas na verdade ficarás sempre onde estão as tuas raízes emotivas.

Ficaram maravilhadas pelas fotos que tirei em New York e gostariam de partir comigo para visitar a Grande Maçã. Desejariam também que as levasse para Hong Kong para dar uma volta de passeio ao Starley Market e ao Lady´s Market, os mercados nocturnos dos quais falei para elas muitas vezes e com entusiasmo, ou passar da Casablanca onde existia a Medina com as suas cores e as suas especiarias, onde a hortelã para o chá tem um sabor mais forte e um cheiro mais persistente da nossa hortelã local, e saborear aquelas tâmaras excepcionais que lhes tinha oferecido regressado dum voo. Ou passear comigo nas ruelas fervilhantes de shanghai, mergulhados naquela enchente variegada e aquelas mil cores que tento descrever, e não consigo por ventura como gostaria.

Elas têm um grande sentimento de hospitalidade, uma arte natural de acolhimento transmitida no decurso de séculos, e me saúdam sempre com o habitual beliscão nas bochechas, atirando não próprio delicadamente de ambas as partes, e com um abraço seguido pela mesma frase desde quando era criança: Annuzza bedda, sangu mil!, Zzuceberu mil!

O meu pai, mesmo estando feliz vendo-me de novo, fica sempre muito silencioso, pouco comunicativo e extremamente reservado.

Temos a mesma cor dos olhos, azul celeste, mas nos seus uma ligeira tonalidade violácea faz transparecer constantemente reflexos que as vezes me entristecem.

Ele é frequentemente inclinado a fazer previsões desfavoráveis, impregnadas de ânsia e preocupação, como a minha melhor amiga Stefania, também ela siciliana.

É um homem muito instruído, gosta de estudar e está sempre informado sobre todos os acontecimentos sociopolíticos actuais.

Discreto nos modos e formal no seu comportamento, fica durante horas fechado no seu escritório, mas na hora do almoço e do jantar junta-se a nós e todos juntos à mesa.

O que os meus pais, parentes e a sociedade onde vivi ensinaram-me é a grande importância da família, o respeito das regras e, em particular, o vínculo inviolável do casamento: um valor para defender sempre, a todos os custos, frequentemente com enormes sacrifícios.

Uma união para salvaguardar de todas as formas, mesmo na presença de problemas, que terão de ser superados ou combatidos, as vezes até ignorados.

Esta ligação indissolúvel tem um carácter sagrado absoluto que apenas a morte pode desatar.

Até que a morte nos separe.

Uma promessa que não pode ser mais negligenciada, a partir do momento em que é estipulada.

Uma tarefa rigorosa e constante, oportuno para conservar firmemente as raízes da família.

Não são somente o sentimento de afecto, a cerimónia oficial, o profundo dever que te é incutido com a educação desde criança, a ligar a relação matrimonial, mesmo o juízo premente da sociedade onde vives te induz e trabalha assiduamente até que se mantenha integra a ligação familiar.

No casal, a figura feminina tem um papel muito importante: a lealdade, para com o esposo e os filhos, é absoluta.

O homem dedica-se conduzindo melhor o papel de chefe da família, tem a obrigação de tomar o seu cargo de tutela e de suporte da mesma.

Lealdade e obrigações, amor e respeito.

Não importa se não for notáveis as duas últimas rubricas, entendidas que possam enfraquecer-se.

O casamento é algo sobre o qual contar durante toda a vida, os filhos são o bastão da velhice, o fim não é permitido, ou apenas uma coisa de loucos, algo que vai fora da ordem pré-estabelecida, que é preciso evitar, encontrando qualquer remédio: no ritual do casamento a declaração da fidelidade é uma promessa que se honra, na sua forma absoluta.

Estas são as normas que me foram incutidas desde criança. Sobre o meu destino estava certa, teria respeitado estes ensinamentos.

Tive uma educação muito rígida, feita de atitudes autoritários, ordens, obrigações e punições sem ter a possibilidade de replicar ou de pedir esclarecimentos, chegando, enfim na adolescência, para ter serias dúvidas e confusões no que fosse realmente justo ou precisamente errado.

As rígidas regras seguiam as directivas da educação que foi transmitido ao meu pai nos anos 40, sem se aperceber das profundas transformações sucedidas e dos movimentos dos anos 68, aos quais presenciei apenas com o meu nascimento.

Mesmo assim, a revolução social dos anos 70 parecia não alcançar minimamente a nossa realidade, nessa altura.

Tudo era preto ou branco, justo ou errado, concedido ou proibido e não existiam cores matizados, renuncias, meios-termos.

Os modelos e o estilo de vida acompanhados eram antiquados e ultrapassados, a meu ver.

Para mim o branco e o preto eram apenas os extremos de uma múltipla variedade de cores, contudo os ensinamentos deviam ser seguidos, sem réplicas e oposições.

A partir da orientação escolar e até às amizades, aos horários, aos lugares por frequentar, ao vestuário, ao desporto, todas as decisões seguiam pareceres, tendências e gostos não meus e nem sequer iguais às minhas inclinações: apenas àquelas do meu pai.

Ele deliberava as pessoas que podia frequentar, depois de uma cuidada selecção antecipada por uma conversa de apresentação inicial, cujos pré-escolhidos deviam sujeitar-se.

Questionei-me muitas vezes qual fosse o meu caminho, o que fosse realmente importante, quais os meus reais desejos e objectivos, e frequentemente as minhas respostas eram totalmente diferentes daquelas impostas pelos meus pais, que certamente agiam para o bem e para uma melhor formação da minha pessoa, espelhando somente sonhos: deles.

 

Seguia diligentemente as direcções sugeridas e frequentemente me encontrava ocupada a recitar um papel que certamente agradava aos outros, mas não a mim, e sentir nascer e desenvolver-se desejos que não representavam o papel que interpretava, e que não poderia desvendar, porque sabia que seriam mal suportadas: estava maravilhada pela liberdade e pela independência, pelas viagens e pelos lugares longínquos.

Quase sempre tentei de fechar com a chave estes desejos e sonhos, como um caixote, com um grande cadeado, dentro de mim, dentro da minha mente, dentro do meu coração que batia forte por aquelas atracões que são consideradas bastante desinibidas e inconvenientes.

Os meus sonhos de viajar, querer viver no exterior, afastar-me da família para ir viver sozinha, eram com frequência sufocados e desta forma os tinha bem aprisionados e escondidos: no interior daquele caixote não conseguia perceber grito nem dor causado pelo desgosto daquela renúncia.

Estava orgulhosa por ter encontrado para eles um lugar seguro e, permanecendo naquele lugar tão obscuro, não tinha a possibilidade de tomar conhecimento de forma consciente.

Não desejava que as minhas verdadeiras paixões saíssem ao ar livre, a não queria que tão-pouco existissem, na medida em que teriam arranjado apenas problemas, se por acaso tivessem sido tornados notáveis: não apenas teriam gorado as expectativas, mas, de todas as formas, não teriam tido vida fácil e teriam sido decepados ao nascer.

O meu pai, advogado, estava certo que teria seguido as suas pegadas.

Vivi assim grande parte da minha adolescência sem grandes sofrimentos, e brilhantemente superava os problemas graças ao meu subtil procedimento secreto, isto é sufocando e escondendo os meus reais desejos e procurando satisfazer os outros.

Um dia, porém, uma das tantas gavetas ficou um pouco demasiado cheio e, para maior segurança e não sem esforço, experimentei colocar um outro cadeado.

De forma inesperada rebentou, abriu-se, ouvi gritos, choros, soluços como se fossem de uma criança, pedindo ajuda, suplicasse para sair, para ser ela mesma.

Tranquei ainda uma vez com força, aquela gaveta.

Mas aqueles sons e aquelas imagens tentavam sair e libertar-se.

Eram insuportáveis.

O meu coração batia cada vez mais forte para sobrepor-se em tudo e incapacitar-me para esquecer.

Era uma gaveta, apenas uma!

Tinha apinhado desta forma muitos sonhos, pensando assim de poder ser uma mulher serena e feliz.

Deveria preocupar-me?

O que teria acontecido se tivesse aberto escancaradamente também uma outra vez, e depois talvez uma outra ainda?

A coisa aterrorizava-me, mas não posso não reconhecer que começou a seduzir-me cada vez mais.

Questionei-me, um dia, quem eu era realmente.

Questionei-me onde é que estivesse a ir e quem tivesse escolhido o meu caminho.

O que descobriria ao abrir aquelas gavetas?

Conseguiria reanimar a minha verdadeira essência reduzida à agonia pelos condicionalismos externos?

Nunca estaria em condições de superar as minhas fraquezas e de encarar os meus medos?

Sou uma pessoa optimista, amo a vida; sou social e julgo importantes como fundamentais as amizades.

Entre mulheres, infelizmente, não é insólito instaurar-se de maçadores como inúteis sentimentos de inveja e de ciúme, por isso, chegar à especial solidariedade e à cumplicidade que tende realmente unidas torna-se extremamente raro.

Não é fácil encontrar uma verdadeira amiga, mas quando se tem esta sorte desaparecem orgulho e competição e nasce o respeito total, cresce a confiança cega e a lealdade.

A união torna-se indissolúvel, a amizade torna-se um bem por salvaguardar de improváveis como raros e excepcionais acontecimentos negativos que teriam a força de enfraquecê-la, mas que normalmente nada podem contra o agradável bem-estar que experimente estando unidos, confiando-se segredos mais íntimos, partilhando as risadas, as experiencias da vida, as emoções, mesmo criticando-se mutuamente e encontrar soluções comuns: o objectivo principal é a união e a força do casal.

Conheço uma pessoa especial que espelha estas características. Stefania não é apenas uma amiga, as vezes assume-se como mãe que espalha conselhos, as vezes é a filha a quem dispensar o meu amor; pode parecer estranho, mas vê-la interpretar o papel de namorada ciumenta não é improvável, sobretudo se a ignoro um pouco, mas ela permanece um ombro sobre o qual encostar, uma palavra de conforto, o respeito do meu silêncio, a compreensão das minhas fraquezas, mas também um doce peso por suportar.

Stefania tem um físico atlético, é muito alta, alguns centímetros a mais que eu.

Os seus cabelos são castanhos e luzentes, com umas tonalidades tendentes ao vermelho carregado semelhantes àqueles da madeira de amaranto, muitas vezes colhidos numa trança que se move sinuosa nas suas costas. Veste-se habitualmente de forma casual, tem a predilecção pela prática no que veste; eu, pelo contrário, prefiro usar roupas mais femininas, a seu ver vaidosas e antiquados.

A sua exuberante sinceridade combinada com uma natural fraqueza conflui, as vezes, cruéis juízos.

Não obstante uma estrada de centenas de quilómetros agora nos separa, sei sempre de poder contar com ela, e vice-versa.

Nos suportamos, nos criticamos obstinadamente, nos proferimos opiniões, nos elogiamos e nos mandamos passear… sempre com grande afecto, e é difícil, uma viver sem a outra.

A segurança recíproca torna especial esta verdadeira amizade, um ingrediente que normalmente escapa nas relações amorosas.

Nos une uma grande paixão: partir lá para metas distantes.

Sempre adorei viajar, me dá um sentimento de felicidade.

Quando me distancio de tudo e de todos encontrando-me em dimensões e fusos diferentes é como se conseguisse avaliar o resto por fora: de longe, com efectivo destaque seja físico como mental.

Tiziano Terziani escreveu: a nossa destinação não é por acaso um lugar, mas um novo modo de ver as coisas: e é desta forma também para mim, ou melhor para nós os dois.

Viajando consigo reparar melhor dentro de mim, para ver com clareza quem sou, e para eu poder melhorar.

É como se o mundo com todos os seus problemas se distanciasse, mudasse de horizonte, e eu readquiro as minhas forças, as minhas energias.

Afastando-me da realidade rotineira, uma carga de adrenalina reforça-me tanto assim para me dar vitalidade e positividade enormes, ajudando-me a encontrar as respostas certas.

Viajar é uma invasão de mundos que não são os meus, é sempre uma satisfação que me proporciona um emocionante sentimento de liberdade, e me ajuda a descobrir de novo parte da minha autonomia.

Há algum tempo realizei aquele grande desejo que tinha desde criança: tornei-me uma hospedeira de voo.

Passaram anos, mas me lembro como se fosse ontem o momento em que decidi mudar a minha vida. Aquele dia está impresso na minha memória. Estava com Stefania.