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Principios e questões de philosophia politica (Vol. II)

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VI

A lista multipla tira ao suffragio politico o sentimento pessoal, que deve revestil-o, e rompe toda a intimidade necessaria entre o eleitor e o seu representante. Eis outro argumento vibrado contra aquelle regimen, e, de certo, o mais perigoso pelas falsas apparencias que o esmaltam.

Aquelle sentimento é uma circumstancia sem valor; o rompimento d'aquella intimidade é inevitavel n'este modo de eleger, mas é excellente.

O voto eleitoral não é occasião para gosos sentimentaes, as nupcias mysticas do cidadão com o seu representante, o vinculo sympathico de pessoas intimamente conhecidas, mas, simplesmente, a funcção material que serve a liberdade de opinião sobre os variadissimos negocios do Estado. Ora esta opinião exerce-se sobre idéas, e só secundariamente sobre pessoas; e quando se refere a pessoas, é mais ás que commandam um partido do que ás que formam o seu cortejo parlamentar. De maneira que a votação por listas, que significam programmas, traduz mais propriamente as legitimas intenções da liberdade politica do que o suffragio praticado d'outro modo. Se coincide a confiança pessoal com a convicção politica, o acto do eleitor é mais intenso e mais agradavel, mas o essencial é que elle diga como entende os negocios publicos, e não que nos desvele a sua particular sympathia em algum dos seus amigos.

Mas, concedida a legitimidade d'aquelle sentimento pessoal, a sua consagração legal não dará azo aos mil inconvenientes que embaraçam e deshonram o suffragio universal?

Dá.

Em primeiro logar a lucta politica, reduzida á mera concorrencia de pessoas, é quasi sempre infamada por injurias, arremessadas de lado a lado, por doestos verbaes e impressos, por calumnias de todo o genero. No periodo eleitoral suspendem-se as garantias da moralidade publica, e todos os ruins instinctos, todos os baixos sentimentos irrompem e circulam desenfreiados e soltos, n'uma verdadeira profanação da liberdade que os tolera. E este consectario do systema uninominal é tão geralmente sentido, que raro publicista deixa de o ponderar com a devida gravidade, e de lhe procurar um remedio qualquer, que seja ou pareça efficaz.

A representação das minorias, dando ás aspirações de todos os partidos uma satisfação proporcional ás suas forças, debellaria inteiramente aquelles desastrados effeitos; a votação por lista multipla não os acaba de todo, mas attenua-os muito, attenua-os consideravelmente, porque dá logar a combinações em que podem ser attendidas varias exigencias pessoaes ou politicas.

Descrevendo aquelle feio aspecto do regimen eleitoral vigente, e fazendo-o servir á impreterivel necessidade da representação das minorias, disse eu na minha dissertação inaugural11:

«Tem ainda contra si o actual systema o imprimir nos actos eleitoraes o caracter d'uma pugna violenta, intransigente, farta de odios e de paixões. Só quem não tem assistido a eleições é que ignora as pequenas miserias que se exhibem n'ellas. Todas as dependencias são invocadas e não ha pressão que se não exerça. A lucta é a todo o transe. Porque não ha espaço para todos nos ambitos da lei, o dilemma de viver ou morrer apresenta-se fatalmente a todos os espiritos. Os nomes dos candidatos apparecem aos eleitores sob esta dupla fórma: vestidos de luz e cheios de lama. Recontam-se anecdotas, forjam-se calumnias, o libello diffamatorio dos pretendentes avoluma progressivamente á medida que se approxima o dia fatal. A divergencia de idéas importa rompimento de relações, e o sentimento do odio estende-se a familias inteiras. Não raras vezes a violencia material, o pugilato, o assassinio até, põem nodoas de sangue n'aquelle acto, que devia ser incruento e pacifico. Não ha cidadão que sáia incolume d'um prelio d'esta ordem: um perdeu o amparo e a protecção que tinha; outro é logo executado pelas suas dividas; a vingança toma conta de todos e sacrifica-os cedo ou tarde. A imprensa, essa augusta tribuna da verdade, demuda-se em pelourinho de infamias. Finda a lucta, o espaço em que ella foi ferida fica mais repugnante do que um campo de batalha em que se dilaceraram dois exercitos: n'este alastram-se corpos mutilados, horrivelmente desformados, com as visagens medonhas em que a morte os surprehendeu; mas n'aquelle, no espaço em que se digladiaram dois partidos, ha mil reputações feridas de morte, ha muita dignidade trucidada; e, ao invez do que acontece depois d'um combate ordinario, – depois da guerra eleitoral continuam os odios, referve ainda a vindicta, e as paixões imperam com toda a força, peiores no momento da reflexão do que eram no momento primitivo!»

O desenho afigura-se-me verdadeiro. As sombras que o escurentam são copiadas d'uma realidade vulgar e frequente. Verifique, quem duvidar; julgue, quem tiver consciencia.

Mas ha peior. Aquelle systema importa o emprego de dinheiro como meio de seducção eleitoral, e o nosso paiz está, desgraçadamente, exemplificando isso com uma largueza e uma desvergonha terrivelmente assustadoras! A simonia politica é já, entre nós, um facto corrente. Esta infamia estadêa por toda a parte os attributos do seu impudor. O leilão é publico, á clara luz do sol, ás vistas de toda a gente! É um commercio de escravos, vestidos pela lei á feição de homens livres. Uma miseria e uma irrisão! Vendem-se individuos, freguezias, concelhos, circulos. Já é possivel escrever, no mappa eleitoral, á margem de muitos circulos o seu preço ordinario! As cousas têm progredido em tão devastadora proporção que, apenas aberto o periodo eleitoral, pensa-se mais, muito mais, nos homens de dinheiro do que nos que sabem e querem prestar serviços ao seu paiz e ao seu partido; e cidadãos distinctos, dignissimos do parlamento, vêem-se inhibidos de ir lá, ao passo que triumpha facilmente o argentario boçal, que considera lustre e grandeza para o seu nome o que é um ridiculo e uma deshonra para o seu caracter. E ha corretores encartados n'aquelle mercado, que surdem da sua obscuridade no momento opportuno, apparecem nos gremios politicos, combinam e discutem o pagamento dos seus serviços, e dão, com as suas physionomias caracteristicas, um aspecto repugnante e sordido ás reuniões e conferencias eleitoraes…

Na Inglaterra, antes da reforma de 1832, era frequente a exhibição d'estes espectaculos. A expressão burgos-podres vem de lá. Na França começa a manifestar-se esta vergonhosa enfermidade, e é Gambetta12 quem a denuncía. São costumes que principiam (disse o grande tribuno), mas se vós sustentaes o regimen parcellar applicado ao suffragio universal, elles propagar-se-hão rapidamente, e vós ficareis, deante da historia, com esta tremenda responsabilidade: a de ter inoculado a gangrena do dinheiro na democracia franceza.

É certo que, estabelecido o voto plurinominal, ainda póde continuar esta miseravel industria, mas não é menos certo que ella ficará reduzida a mais restrictas proporções, e é digno de benção tudo o que contribua para apagar esta mancha nos costumes da liberdade.

Outro inconveniente do actual modo de fazer eleições é a dependencia pessoal, quasi servil, do deputado para os seus constituintes. Isto é sabido. Ou o deputado satisfaz todas as exigencias, ainda as mais irracionaes, dos seus eleitores, e n'este caso a sua popularidade alarga-se e consolida-se, mas á custa da dignidade propria e de graves sacrificios da administração publica, – ou não faz isso, considera por outra fórma os deveres do seu mandato, e então os arcos de flores, que lhe festejaram a eleição, volvem-se-lhe em forcas caudinas, e o cantico que serviu á celebração do seu triumpho demuda-se n'um brado geral de indignação e de censura.

Libertar o deputado d'estas relações humilhantes; collocal-o a salvo de tão indignas dependencias; varrer as secretarias de Estado das importunas pretensões, que, por necessidade, os representantes da nação levam lá a toda a hora; desaffrontar as camaras, vexadas por aquelle dilemma, e deixar o poder executivo na maior liberdade da sua acção, – seriam effeitos seguros, certissimos, do systema da lista multipla, que, só por isto, merece preferido ao que ahi vigora actualmente.

VII

Com o regimen, que defendemos, formam-se parlamentos fortes, de côr politica muito definida; os governos, que esses parlamentos sustentarem, poderão ser energicos, firmes, resolutos no desenvolvimento dos seus programmas. Está n'isto a sua maior vantagem, ao menos n'este momento da civilisação occidental. Mas nem todos veem as cousas d'este modo, e foi precisamente por aquelle lado que a proposta de Bardoux soffreu mais rijas aggressões.

É facil de comprehender o motivo por que este regimen eleitoral produz assembléas vigorosas, muito accentuadas, e, por tanto, situações politicas longamente viaveis. Os homens de maior valor de cada partido são necessariamente os indicados para os districtos em que a victoria é mais provavel, e é evidente que as assembléas se caracterisam mais pela qualidade do que pelo numero das pessoas que as constituem. Por outro lado, a lista multipla retrata a opinião dominante no seu conjuncto, toma-a pelo seu relevo, surprehende-a e colhe-a na sua maior intensidade, e d'esta fórma as maiorias parlamentares representam o pensamento e a vontade da nação, no que esse pensamento e essa vontade teem de real e verdadeiro.

 

A maior contrariedade de que padece a moderna politica é a fraqueza dos governos na maior parte das nações. Duram pouco, e, geralmente, vivem mal. Antithese completa do antigo regimen, em que a auctoridade era resistente e inabalavel, e o conceito da ordem, um conceito majestoso e terrivel, era, ao mesmo tempo, a maior preoccupação dos estadistas e o principal objectivo das revoluções. Hoje tudo se divide e subdivide; a unidade é mais um esforço do espirito do que uma propriedade das cousas; cada fracção social, por minima que seja, procura tornar-se independente; os elementos de sua natureza mais affins, em vez de se unirem pelas suas similhanças, que são essenciaes, separam-se e distinguem-se pelas suas differenças, que são apenas secundarias. Parece que um poderoso dissolvente foi lançado á consciencia humana, e que, sob a sua irresistivel acção, tudo se desorganisa, tudo se desfibra, tudo se decompõe!

É uma verdadeira necessidade a reacção immediata contra este estado de cousas. Até agora a liberdade não tem dado senão o que póde o seu caracter negativo; é urgente que ella nos edifique com as fecundas germinações d'uma justiça positiva, reconstituinte, omnimodamente organisadora. N'um laboratorio chimico a analyse, levada ás extremas moleculas da materia, póde desfazer, pulverisar os objectos, e deixar disgregadas e soltas as particulas que os formavam. A natureza é um reservatorio infinito, inexhaurivel; a cohesão e a affinidade são leis muito superiores ás precisões do estudo e ás contingencias do acaso. Mas na sociologia pratica a analyse excessiva póde importar uma dissolução perigosa. As leis que presidem á evolução historica não podem ser quebradas pelo arbitrio humano, mas podem ser distrahidas da sua legitima direcção, e modificadas, para mais ou para menos, na sua progressiva intensidade. As experiencias naturaes realisam-se n'um determinado ponto, e o universo subsiste extranho a ellas, na grandiosa majestade da sua immensa força; as que se operam na consciencia dominam-na, affectam-na toda, reproduzem-se logo n'um milhão de individuos, com rapidez e facilidade inapreciaveis…

Um simples relanço de olhos sobre as nações latinas, e ficará evidente a necessidade de fortalecer em todas ellas as instituições e os poderes publicos.

A França ainda apenas esboçou as reformas organicas da democracia. Tem de revolver, e animar d'um novo espirito, todos os grandes serviços do Estado: exercito, escola, justiça, fazenda. O programma de Belleville indica summariamente o que ha a fazer desde já; da sua leitura vê-se que só um parlamento seguro e um ministerio largamente apoiado poderão levar a cabo as idéas formuladas por Gambetta e, ao que parece, sympathicamente recebidas por todo o paiz. Foi na conscienciosa comprehensão d'esta verdade que o chefe do opportunismo protegeu e sustentou a lista multipla; a hostilidade do Senado a esta proposta obstou a que a maioria da camara franceza tivesse a direcção e disciplina que aquelle systema eleitoral lhe havia de imprimir, e com as quaes o annunciado ministerio de Gambetta assentaria definitivamente, n'uma base indestructivel, as fórmas e os costumes da republica conservadora.

Na Italia a onda revolucionaria, conductora do novo ideal politico, recresce incessantemente e sobe já, de quando em quando, os proprios degraus do throno. Exhibe-se n'esta nação o espectaculo unico de transigirem, e se accordarem na politica interna, o representante da fórma monarchica e os chefes do partido republicano; por isso alli a republica, ao estabelecer-se, deve ter uma saudação e uma benção para a dynastia vencida! Mas apesar da boa vontade de todos, a existencia dos ultimos governos italianos tem sido angustiosa e difficil. Ha muito que os ministerios representam, não uma opinião triumphante, mas transacções que uma conformidade de momento celebra, e logo qualquer divergencia desfaz e inutilisa. É recente a famosa crise, que se prolongou por algumas semanas, sem que o rei Humberto podesse escolher, á mingua de indicações parlamentares, um chefe de gabinete entre os tantos que se habilitavam para isso: Depretis, Zanardelli, Sella, Crispi, Nicotera… N'estas condições, o que a Italia necessita é uma reforma eleitoral, que lhe dê camaras disciplinadas, inspiradas n'um pensamento commum, com energia necessaria á resolução dos grandes problemas interiores e diplomaticos, que as circumstancias lhe formulam e impõem no actual momento. Um projecto de reforma n'este sentido foi já apresentado; é crivel que seja brevemente convertido em lei do paiz.

A Hespanha é outro claro argumento da these sujeita. Ella não deve o seu relativo bem-estar senão á dominação conservadora de Canovas del Castillo, que realisou o extranho milagre de se equilibrar n'aquelle meio inconsistente, onde cada idéa que nasce traz implicita a febre d'uma revolução, onde os partidos são aguerridos como exercitos e fanatisados como seitas, onde a concepção theocratica, combatida ha cinco seculos, é ainda uma escola militante, e o federalismo communalista uma doutrina publica, com historia, com hierarchia e com programma! O actual ministerio, de côr liberal, está, a estas horas, na prova mais solemne da sua competencia e da sua lealdade; é de receiar que não sáia d'esta prova tam galhardamente como deseja, porque, apesar da excellente lei eleitoral de 187813, não tem ainda todas as condições precisas para caminhar sem estorvos, e ir adeante, e depressa, ao seu fim.

11Principios e Questões de Philosophia Politica, pag. 119 e 120.
12Discurso de 19 de maio, na discussão da proposta de Bardoux.
13Tem a data de 28 de novembro, e é assignada pelo ministro da governação, Francisco Romero y Robledo. N'uma carta celebre, dirigida por E. Castelar a E. Girardin, pouco antes da morte d'este eminente jornalista, affirmava o grande tribuno hespanhol que aquella lei era a mais perfeita de toda a Europa. Tinha toda a razão. Quem extranhou e combateu aquelle juizo desconhecia as melhores theorias do direito eleitoral, ou nunca tinha lido as disposições da lei de 28 de novembro. Esta lei resolve, em grande parte, as maiores difficuldades do suffragio politico: o despotismo das maiorias, e a excessiva intervenção dos governos. Contra a primeira adopta o conhecido systema da lista incompleta, não em toda a extensão da Hespanha, mas nos seguintes districtos, que são os mais importantes de todo o paiz: Madrid, Barcelona, Sevilha, Cadiz, Carthagena, Palma de Mallorca, Jerez de la Frontera, Valencia, Malaga, Murcia, Tenerife, Zaragoza, Granada, Alicante, Almeria, Badajoz, Burgos, Cordoba, Coruña, Jaen, Lugo, Oviedo, Pamplona, Santander, Tarragona, Valladolid (artt. 2.º e 84.º); e tambem, no mesmo intuito, para corrigir o inconveniente de ainda ficarem muitos circulos uninominaes, admitte, em cada camara, 10 deputados que tenham obtido em diversos districtos, e em eleição geral, em minoria ou empate, a accumulação de 10:000 votos cada um, pelo menos (art. 115.º). A este systema de accumulação tem devido o seu ingresso no parlamento hespanhol alguns dos homens mais benemeritos e notaveis. Ainda na recente eleição geral se aproveitou d'elle o illustre Salmeron. Para garantir a genuinidade do voto tem excellentes disposições, designadamente a que prohibe nomeações, transferencias, suspensões de empregados administrativos de qualquer categoria, no periodo que vai desde o decreto que convoca os collegios eleitoraes até que esteja concluida a eleição, sempre que taes actos não sejam fundamentados em causa legitima (art. 147.º). D'este simples extracto vê-se que a apreciação de Castelar era profundamente verdadeira. A França, a Inglaterra, a propria Dinamarca não merecem comparadas á Hespanha n'este importantissimo ramo da administração publica.