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Amôres d'um deputado

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Amôres d'um deputado
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I
O café Tabourey

– Paga oito «sous»! gritou Carlos, o moço do café Tabourey, dirigindo-se á menina Amelia Dufer, a filha do dono do estabelecimento, exercendo o logar de «caixa», e acompanhando o grito do lançamento d'uma moeda de cincoenta centimos sobre o marmore d'um pequeno balcão.

A rapariga guardou a moeda e deu-lhe o troco de dois «sous», que Carlos fez cahir sobre uma meza do fundo onde um freguez se achava escrevendo uma carta.

– Oito e dois dez! resmungou o moço do botequim, tirando um prato e uma chavena que se achavam sobre a meza.

– Está bem, guarda o resto para ti! retorquiu suave e tristemente o freguez, mal erguendo os olhos da carta que estava terminando.

O relogio collocado quasi junto do tecto da casa, embutido mesmo nos ornatos da cimalha marcava dez horas e vinte e cinco minutos e o freguez do café Tabourey olhando-o, melancholicamente, suspirou e pensou:

– Decididamente, não veem esta noite; levanto a sessão!

Ainda se demorou alguns minutos procurando na meza do centro, entre um monte de jornaes, o «Soir» e não o encontrando, dirigiu-se á menina Amelia Dufer, entregando-lhe a carta que acabava de escrever.

– Se esses senhores vierem, a menina faz-me o favor de entregar esta carta a Maupertuis, sim?

– Com todo o gosto, sr. Ronquerolle, respondeu, amavelmente, a joven Amelia, esboçando um gracioso sorriso, completamente perdido, porque o seu interlocutor havia já desapparecido na rua Vaugirard.

N'aquella noite, Ronquerolle, que se sentira invadido por um aborrecimento maior que de costume, tomara uma importante resolução. Decidira voltar á sua terra natal, ha tanto tempo esquecida, e a carta que elle entregara á menina Amelia Dufer, ao sahir do café Tabourey, dizia o seguinte:

«Meus amigos:

Porque não vieram esta noite? Esperei-os durante muito tempo. Tenho necessidade de os ver. Vou partir para a Borgonha.

«Estou cheio de tristeza.

«Vosso amigo,

«Maximo Ronquerolle».

Ás onze horas, os amigos de Ronquerolle aos quaes aquella carta era dirigida e que, após o jantar tinham resolvido dar um passeio pelos «boulevards» voltavam ao Bairro Latino, entrando no seu café predilecto, pensando, e com razão, que Ronquerolle, se já ali não estivesse, lhes teria deixado o que elles vulgarmente chamavam as suas «instrucções».

Entretanto, o que mais desejavam era vel-o porque tinham a dar-lhe uma importante noticia.

Estes rapazes chamavam-se Jayme Maupertuis, Feliciano Didier e Emilio Branche. Eram, como Maximo Ronquerolle, poetas, jornalistas e politicos. Pobres, quasi desconhecidos, procuravam ser alguma coisa e para esse fim corriam em busca da fortuna e da gloria. Todos os quatro eram republicanos.

Tinham feito excellentes estudos na provincia, e aos vinte e vinte e cinco annos haviam partido para Paris, com grandes receios das suas familias, que os consideravam perdidos, no movimento e confusão da grande capital.

Socegados na apparencia, eram quatro enthusiastas. A imaginação junta a uma clara intelligencia, eram as qualidades predominantes de todos elles.

A sua conducta era irreprehensivel. A amizade que os unia era profunda. Estimavam-se, adoravam-se mutuamente.

Ronquerolle e Maupertuis tinham-se conhecido na provincia, na sua terra natal, na Borgonha. Travando relações, de creanças, aos quinze annos, durante os dez que se seguiram tinham-se perdido de vista até que se haviam reencontrado em Paris, graças á «Revue des Poétes», que publicava versos de ambos.

Didier e Branche eram do norte. Viviam como dois irmãos. Uma bella manhã, juntos haviam deixado Lille, e juraram á sua entrada em Paris, de sempre ahi continuarem a viver juntos e de juntos tambem seguirem a carreira, que a sorte a qualquer d'elles deparasse.

Hospedados no hotel «Lisbonne» da rua Vaugirard, em pleno Bairro Latino, ali encontraram á mesma meza, Ronquerolle e Maupertuis. Uma grande sympathia se estabeleceu rapidamente entre esses quatro rapazes, que em poucos minutos comprehenderam que os movia o mesmo pensamento, a ambição e o desejo vehemente d'uma absoluta independencia.

Na occasião em que o leitor trava conhecimento com os quatro mancebos, conheciam-se elles ha dois annos. Os primeiros tempos da sua franca e leal camaradagem, tinham sido encantadores. Haviam comunicado os seus pensamentos, os seus projectos de futuro, enthusiasmando-se mutuamente, lendo os seus versos e conversando sobre os seus amôres, pois que cada um d'elles tinha a sua amante.

Chegados ao café os tres amigos de Ronquerolle, receberam a carta que este ali lhes deixara encarregando-se da sua leitura Maupertuis, que do seu contheudo deu conhecimento aos seus companheiros Didier e Branche.

– Vamos depressa! disse Branche, que tinha por Maximo uma verdadeira adoração.

Um quarto de hora depois, os quatro amigos achavam-se reunidos em casa de Maximo Ronquerolle, que habitava no «boulevard» Montparnasse.

– Já sabes da novidade? perguntou Maupertuis.

– Qual novidade?! disse Ronquerolle surprehendido.

– Sahiu o decreto.

– Um decreto!?

– Pergunta a Didier e a Branche!

– É verdade! ajuntaram estes.

– Trouxe-te o numero do «Soir», que trata do assumpto, disse Branche. Aqui tens, lê, nas ultimas noticias.

Com effeito Ronquerolle leu um decreto do Presidente da Republica, convocando os eleitores para reunirem em 15 de julho.

Ronquerolle, pallido de commoção, conservou-se um momento ancioso.

É que elle sabia que aquella data, marcada para as eleições de deputados, poderia ter grande importancia na sua vida. Para elle esse dia seria decisivo, na sua existencia, d'aquelles cuja aproximação faz tremer o homem mais corajoso, causando-lhe calafrios.

– E então, que me dizes do decreto? perguntou Maupertuis.

– Digo-te, respondeu Ronquerolle, que elle me indica, que tenho a dizer-lhes coisas muito graves. Assentem-se que temos que conversar.

Os trez amigos de Maximo acceitaram o convite e emquanto Ronquerolle foi buscar uns papeis guardados n'um movel proximo, esperaram anciosos que elle falasse.

De volta para junto da mesa perto da qual se achavam os seus amigos Ronquerolle lançou os papeis sobre a sua secretaria e aproximando o seu candieiro de trabalho e tomando uma cadeira, disse rindo:

– Está aberta a sessão!

Então Ronquerolle contou aos seus amigos que havia algum tempo estava em relações com o «comité» republicano de Saint-Martin, na Borgonha; que os membros d'esse «comité» lhe tinham offerecido a candidatura por aquelle districto, e que elle havia demorado a resposta até ao dia em que o decreto relativo ás eleições fosse publicado.

– Explendido! gritaram ao mesmo tempo os trez amigos. Bello! O decreto sahiu. Não ha que hesitar, acceitas!

– Mas eu hesito ainda; e se lhes pedi para virem aqui esta noite, foi na intenção de lhes falar d'este negocio e de lhes pedir conselho.

E Ronquerolle tornou conhecidos dos seus amigos os documentos relativos á futura eleição por Saint-Martin. Tratava-se de lutar, em nome da Republica, contra o marquez de la Tournelle, que representava ali as ideias reaccionarias, e que seria approvado por todos os fanaticos do throno e do altar.

– Mas isso é encantador, exclamou Maupertuis, farás desapparecer o tal marquez como uma simples bolinha de prestidigitador; e entrarás na Camara como uma bala de canhão.

– Não me embriaguem com palavras, disse Ronquerolle desenhando-se-lhe no rosto uma nuvem de tristeza. Não vá eu contar com a victoria e me aguardem as desillusões. A lucta será encarniçada, terrivel. O marquez possue influencia, é rico, pode vencer…

– Ora adeus! interrompeu Didier. Todo o districto de Saint-Martin se impressionará com a tua embriagadora eloquencia, inflamarás todas as intelligencias com os teus discursos, e no dia da votação, o teu nome victorioso sahirá das urnas.

– E depois, accrescentou Branche, que amava mais Ronquerolle do que a um irmão, tu imaginas que vamos deixar-te combater sósinho?! Reclamamos tambem a nossa parte na lucta; proponho que partamos comtigo para a Borgonha, tomando a cidade de Saint-Martin, como nosso quartel-general, da qual faremos fogo, de quatro barricadas, afim de reduzir á expressão mais simples sua excellencia o marquez de la Tournelle e todas as jovens e velhas devotas, que, estou certo, correm já por montes e valles trabalhando a favor da candidatura de tão alta personagem!

Uma formidavel gargalhada saudou a arrogante phrase de Emilio Branche, e o proprio Ronquerolle foi obrigado a acompanhal-a olhando o seu amigo.

Depois de duas horas de discussão, ora calma ora ruidosa, ficou decidido que Ronquerolle acceitaria a candidatura que lhe era offerecida, que Branche, Didier e Maupertuis deixariam Paris durante o periodo eleitoral, e que iriam a Saint-Martin auxiliar o seu amigo, e que, sendo necessario fundariam um jornal de combate.

Ronquerolle mais pallido ainda que do costume, estremecia de satisfação ao pensar que o seu nome ia sahir da obscuridade, e que ia achar-se envolvido nas luctas politicas do seu paiz. Assaltava-o já o desejo, de se encontrar, elle, filho d'um humilde artista borgonhez, em frente d'esse arrogante marquez de la Tournelle, provando-lhe que os filhos dos proletarios tinham mais sangue nas veias, que os filhos e os netos dos emigrados de Coblentz, entrados em França nos carros de mercadorias do estrangeiro.

Provava assim possuir o legitimo orgulho dos homens seguros da sua consciencia e do seu valor e o desejo de ajudar generosamente os seus amigos, fazendo-os saltar os obstaculos, que os impediam de obter uma posição que lhes permitisse chegarem até onde a sua justa ambição os attrahia.

Não era só por si que Ronquerolle ambicionava uma situação, era por Maupertuis, Branche e Didier. O primeiro a chegar ao ponto desejado devia estender a mão aos outros, e, decerto, não era Ronquerolle dos que poderia esquecer os companheiros dos dias difficeis da mocidade.

 

Era uma hora da manhã quando os quatro rapazes se separaram.

Encontrando-se no «boulevard» Montparnasse, os amigos do poeta, preocupados com os acontecimentos que iriam dar-se, guardaram silencio.

A noite estava magnifica. Uma brisa suave trazia á grande cidade os vivificantes perfumes dos bosques de Ville-d'Avray, de Sèvres, de Meudon e de Clamart. Alguns trens percorriam ainda os arruamentos e só elles turbavam o socego d'aquelle bairro de Paris.

Chegados á encruzilhada do Observatorio, Maupertuis, Didier e Branche voltaram a conversar animadamente.

Intimamente, porém, sentiam-se tristes.

– Uma nova existencia vae começar para nós, disse Maupertuis, uma vida de discordias, de combates, de lucta. Podemos dizer adeus á bella tranquilidade dos nossos vinte annos!

– E o que faremos das nossas amantes? acrescentou subitamente Didier.

– Daremos a liberdade a essas gentis avesitas, disse Branche, e não as lamentemos que ellas saberão orientar-se no paiz do amôr. Voces bem comprehendem, que não podemos preocupar-nos com saias durante o periodo eleitoral.

– Poderiamos talvez, interrompeu Maupertuis, envial-as para casa de seus paes!

– Tu falas bem! tornou Branche; infelizmente ignoramos a sua morada.

– Porém, Ronquerolle, accrescentou Maupertuis, não poderá, tão facilmente como nós, desfazer-se da sua amante. Trata-se d'uma ligação séria. O que será de Emilia sem elle?

– Meus filhos, disse Branche com ares paternaes, guardemos para amanhã a continuação da palestra, e vamos deitar-nos. A discussão fica suspensa.

E os trez amigos separaram-se.

Entretanto Ronquerolle, após a sahida dos seus amigos, encontrando-se no seu modesto gabinete de trabalho apressou-se a tomar algumas notas, sobre o que se passava, e entrou no seu quarto.

Julgando encontrar a amante adormecida, avançou com precaução para não a despertar. Qual não foi porém o seu espanto, quando a encontrou embrulhada n'um «robe de chambre», sentada n'uma cadeira e chorando copiosamente.

– Que tens tu? disse Ronquerolle, aproximando-se e tomando-a nos braços.

A pobre rapariga soluçava perdidamente, e não podia articular palavra.

Comtudo, como o amante a enchia de perguntas e a envolvia em caricias, acabou por dizer-lhe que tinha ouvido toda a conversação que elle tivera com os seus amigos, e que bem reconhecia que a legitima ambição de Ronquerolle, era uma ameaça á sua felicidade, que seria a separação de ambos, para sempre talvez.

E essa incerteza, era terrivel para ella, que apenas podia receiar e chorar.

– Creança, disse ternamente Ronquerolle, porque duvidas de meu carinho? Não sou o teu amante, o teu melhor amigo? Por ventura, depois de trez annos, que vivemos juntos, alguma vez te menti, te enganei, te abandonei um dia, uma hora?..

Tentava animal-a, mas a duvida e o receio haviam ferido a alma sensivel da pobre Emilia, e tornar-se-hiam mais vivos á medida que se fossem desenrolando os acontecimentos, que tão fortemente interessavam a Ronquerolle.

A amante do novo candidato a deputado, era uma rapariga de vinte e trez annos, de cabellos louros, olhos azues, d'um azul encantador, figura insinuante, bem talhada, seio proeminente mas sem exageração.

Adorava a Ronquerolle a encantadora Emilinha.

Tinham-se conhecido por forma um tanto ou quanto original.

Haviam frequentado ambos o curso d'um professor celebre da Sorbonne.

A joven Emilia ia ali acompanhada d'uma tia velha, á qual os seus parentes, que viviam na provincia, a tinham confiado.

Os amôres do joven republicano e da sensivel Emilinha, tinham começado com o aspecto d'um idylio innocente, e havia tido por moldura o jardim do Luxembourg.

Que de encantadores passeios não realizaram Ronquerolle e a linda rapariguinha sob as arvores que ensombram a fonte de Médicis!

Que de ternas discussões elles não prolongaram percorrendo a Avenida do Observatorio!

Que de alegres pensamentos, não os assaltaram ao atravessarem o arvoredo, por entre as aleas floridas, ou quando sentados nos bancos de marmore, onde ficavam horas esquecidas, a falar do seu futuro, dos seus projectos, dos seus sonhos de felicidade!

Toda a força da juventude os aquecia. Um cantico de mocidade cheio de vida, perpassava por elles.

Um dia juntaram-se as mãos e apertaram-se com transporte. Depois, Ronquerolle, era natural, atreveu-se a beijar a sua linda companheira, e finalmente deixando o curso do tal professor da Sorbonne, no proprio dia em que elle, eloquentemente, dissertava sobre os encantos dos amôres platonicos, Ronquerolle conduzia Emilia á sua habitação e fazia da pobre pequena sua amante.

Desgostos, inquietações e lagrimas tinham já acompanhado essa ligação durante os seus trez annos de existencia. Mas nas edades de Ronquerolle e de Emilia, esquecem-se facilmente as miserias da existencia, as angustias da pobreza, os tormentos da ambição, e as calumnias dos vis e dos preversos.

Agora porém Emilia, conforme avançavam os dias e os mezes, sentia avolumarem-se, desenvolverem-se os receios de ser obrigada, por circunstancias imperiosas, a deixar o amante.

Previa, com o maravilhoso instincto da mulher que ama, que um homem como Ronquerolle seria envolvido no turbilhão do mundo, que a sua ambição o prenderia completamente, e que ella, pobre flôr colhida de passagem, no caminho da vida, depois de quebrada, perdida, seria abandonada á sua dôr, ao seu desespero.

Empallidecia e estremecia de commoção quando ao passar por uma egreja, via descêr, ou subir, para uma carruagem uma noiva toda casta e lindamente vestida de branco, coroada de flôres de larangeira. Tambem á pobre Emilia seria grato, transpor assim as naves do templo, e ali receber o sagrado annel de casamento.

Ronquerolle podia esposal-a, é verdade, a mais ninguem ella havia pertencido. Para elle era ella uma mulher honesta; para elle devia ella ser digna de usar o seu nome.

Por vezes ella tinha a illusão de que a sua ligação seria santificada, mas pouco depois o seu intelligente espirito abraçava tristes ideias e tinha então o presentimento do futuro, glorioso para Ronquerolle, obscuro e desgraçado para ella. E esse devotado coração de mulher, verdadeiramente amante, preparava-se já para o sacrificio, em favor d'aquelle a quem tanto amava.

Emilia tinha ouvido toda a conversação de Ronquerolle com os seus amigos Maupertuis, Didier e Branche. Soubera que o amante ia deixar Paris, partindo para a Borgonha, e o seu coração palpitara com mais força, com violencia.

Tinha visto com as mais sombrias côres o futuro que a sorte lhe reservava e por isso chorava.

– Não chores assim, supplico-te! disse-lhe Ronquerolle, olhando-a ternamente. Commoves-me profundamente com as tuas lagrimas. O que pode affligir-te assim?!

– Julgavas-me adormecida e no entanto eu estava acordada, respondeu Emilia.

Conheço os teus projectos e os dos teus amigos. Ouvi o que disseram ha pouco.

O que te causa tanta alegria, entristece-me, porque é o fim d'esta nossa ligação que surjirá dos acontecimentos aos quaes vaes entregar todos os teus pensamentos, a tua existencia.

– Creança! retorquiu Ronquerolle, pois é esse o motivo da tua tristeza e das tuas lagrimas! Tu bem sabes que nunca te abandonarei! Vamos, socega!

Pensa na tua bella mocidade: e dize bem alto que te amo e que te hei de amar sempre com toda a força do meu coração!

Estas palavras, pronunciadas com uma sincera convicção, abrandaram um pouco as inquietações de Emilia, mas no seu pensamento ficara uma nuvem de amargura e de pezar.

Ronquerolle, por seu lado, embora a sua audacia, a sua energia e a sua poderosa vontade, estremecia ao pensar na brutal realidade dos factos, realidade de que elle se queria aproximar, que precisava abraçar, que, a todo o custo, precisava vencer.

A amante cançada por fim das commoções soffridas, adormecera. E elle, sentado perto do leito, perto d'uma pequena meza, e á luz, d'uma lampada, tendo a cabeça encostada ás mãos, parecia recolhido n'uma dolorosa meditação. O seu olhar brilhava e não mudava de direcção Relembrava as palavras do grande poeta inglez Shelley;

«O mundo é feio e mau.» Via-se a caminhar pelas estradas e atalhos, de Saint-Martin, de aldeia em aldeia para fallar da Republica, aos cidadãos, aos trabalhadores, aos homems do campo.

N'alguns momentos, o seu pensamento mudava de objectivo e olhava a amante adormecida. A cabecita loura de Emilia reclinara-se para o lado do amante. Transportes d'amôr enchiam então o coração do joven republicano e pensava, recordando ainda Shelley:

«Não, não! Nem tudo é feio! Nem tudo é mau n'este mundo! Tomo por testemunha esta creança, que dorme aqui perto de mim, este seio que se eleva e abaixa, respirando vida, estes bellos cabellos louros soltos lindamente, e a que os raios da luz d'esta lampada dão reflexos dourados…

II
O marquez e a marqueza de Tournelle

A pequena cidade de Saint-Martin, na Borgonha, conta seis mil habitantes. É uma linda e graciosa sub-perfeitura que tem os seus ares de praça forte, com as suas antigas muralhas, a sua guarnição e sobretudo pelo seu velho castello, dominando a cidade e recordando os tempos do feudalismo. Este castello é habitado desde tempos immemoriaes pela familia «de la Tournelle», que tem nos seus brazões a corôa de marquez.

Os «de la Tournelle», durante muito tempo, foram os senhores da região. No tempo da Revolução, e nomeadamente durante o Terror, o seu poder decahiu muitissimo; porém quando Bonaparte se apoderou do throno e se fez imperador, readquiriram o seu antigo prestigio, graças ás habeis generosidades diffundidas na região e mais especialmente na circunscripção de Saint-Martin.

No momento em que se desenrolam os factos que relatamos, o marquez Sergio de la Tournelle considerava mais do que nunca, esta circunscripção de Saint-Martin como um feudo que, sem duvida alguma, lhe pertencia. «Maire» da cidade, conselheiro geral e deputado da direita, não poderia affrontar os seus inimigos?

Além d'isso, era digno de ouvir-se, quando fallava do pequeno grupo de republicanos que se agitava na sua circunscripção. Chamava a esses bravos democratas, assassinos, patifes, dignos de serem enviados para Cayenna, canalha sempre embriagada, frequentando os antros do deboche e insultando os padres.

No entanto, as ultimas eleições municipaes tinham mandado trez d'estes «assassinos» a tomar o seu logar na «mairie», ao lado do sr. marquez, e o senhor «de la Tournelle» tinha d'isso um vivo despeito.

A marqueza de la Tournelle, Carlota Maximiliana de Champeautey, era uma mulher d'um bello aspecto e immensamente seductora. Tinha trinta annos, sendo mais nova quinze annos que seu marido. Era bella e forte. Trazendo sempre a cabeça arrogantemente erguida, o seu peito, extraordinariamente desenvolvido nada tinha d'exagerado, por causa da sua elevada estatura. Os cabellos castanhos claros, os olhos azues, as mãos finas com os dedos alongados, os pequeninos pés, completavam o arsenal das suas graças femininas. Além d'isso, amava os perfumes, a «toilette» e dava leis ás grandes elegantes como as adoraveis mulheres do XVIII seculo. Era amavel para todos, ainda mesmo para os humildes e os pequenos.

Finalmente, não se poderia vêl-a sem logo a amar. A bella Carlota não tinha um inimigo, exceptuando talvez o barão de Quérelles, um conquistador desprezado, que tinha jurado não morrer sem se vingar dos desdens da altiva aristocrata. O barão vinha rarissimas vezes a Saint-Martin, mas estava ao corrente de todos os acontecimentos da pequena cidade.

A marqueza tinha no coração, ou antes na cabeça, uma paixão deveras rara entre as mulheres. Era ambiciosa.

Tinha tentado fazer de seu marido um alto personagem, dar-lhe o prestigio superior da vontade e da energia. Porém o marquez «de la Toumelle» pertencia á raça dos mediocres, terminando a marqueza por ter compaixão d'elle. O marquez era um bello homem, muito elegante no seu porte, muito bom cavalleiro, bom valsista, bom caçador, conversador agradavel ainda que futil, mas incapaz de empregar, por seu proprio esforço, a actividade necessaria, e de seguir a um fim com tenacidade. Era vaidoso, mas ignorava o poder do orgulho. Tinha uma grande confiança em sua mulher e não tomava qualquer resolução sem a consultar. Elle era só quem dispunha dos altos cargos da circunscripção, só elle se offerecia aos suffragios dos eleitores. Quem ousaria disputar-lhe a victoria? Deputado em evidencia, proprietario respeitado, dispondo d'um jornal, tendo ás suas ordens um «comité» das pessoas mais elevadas da cidade, batia o seu concorrente completamente, se acaso um se apresentasse, se bem que sabia, dizia elle, que ninguem havia tão tolo que contra elle aceitasse uma candidatura.

 

– Ah! os cobardes! os amotinadores! gritava uma tarde na janella do seu castello, fallando dos republicanos, e dirigindo-se ao presidente do seu «comité»: Elles que nada teem, que são pobres como Job, fallam em ser senhores! Pois bem! onde está o seu candidato? Que appareça! Vamos, mostrae-m'o raça de biltres!

Ao pronunciar estas palavras, o marquez estendia os braços no espaço, ameaçando com um gesto o café da «Poule-Blanche», logar da reunião habitual dos republicanos de Saint-Martin.

A noite cahia lentamente. Lá em baixo, um ultimo raio de sol dourava melancholicamente o cume do monte. Era uma d'estas tardes de junho que enervam a alma e os sentidos. O marquez olhava a cidade, os logarejos, as aldeias perdidas no horizonte longinquo e ondas d'uma vaidade insaciavel lhe subiam ao coração ao pensar que o seu nome dominava na região, como as torres do seu castello dominavam as choupanas da visinhança. Um sorriso de satisfação lhe animou o rosto e teve palavras d'espirito para se rir dos seus inimigos. Quando estava completamente absorvido no pensamento da sua estrella feliz, o seu creado de quarto, Lapierre, tomou a iniciativa de lhe levar os jornaes que acabavam de chegar de Paris. Rasgou, com um gesto brusco, a cinta que envolvia o «Figaro» e passou rapidamente para a segunda pagina para consultar as noticias dos departamentos e das eleições. Os seus olhos cairam immediatamente sobre estas palavras em normando: Borgonha, «circunscripção de Saint-Martin.»

Leu soffregamente a seguinte noticia:

«Escrevem-nos de Saint-Martin, que dois «candidatos se propõem por aquelle circulo, o sr. marquez de la Tournelle conhecido deputado, representando o partido conservador, e o sr. Maximo Ronquerolle publicista, candidato do «comité» republicano. A lucta, diz-se, será violenta. Temos, porém, todas as razões para acreditar que «o sr. Marquez de «la Tournelle» baterá o seu adversario.»

– Ah! ah! ah! riu o marquez; a graça não está má.

Em seguida, dirigindo-se á galeria, chamou muitos dos seus amigos que estavam no salão e leu-lhes a noticia que acabava de ler no «Figaro».

– Como, diz o conde d'Orgefin, presidente do «comité» realista, esse Ronquerolle ousa apresentar-se aqui! É um homem sem valor, escoria de Paris, um revolucionario, um escrevinhador. Conhecêmol-o creança a esse senhor! Usava uma blusa e tamancos. Creio mesmo que seus paes mendigavam…

– Não, disse o marquez, tornando-se sério, o pae Ronquerolle era pobre, mas ganhou sempre honradamente a sua vida. O bom homem era um dos nossos fieis eleitores. Vinha algumas vezes ao casteilo pedir-me conselhos e fui eu quem em tempos o levou a fazer instruir seu filho. Estou bem recompensado! O creançola cresceu e é elle quem nos vae dar combate, meus senhores!

– Mas não é um adversario sério, replicou o conde d'Orgefin; é uma creancice! Quem é o senhor Maximo Rouquerolle? Não existe. Os republicanos de Saint-Martin deviam pelo menos oppôr-nos um homem de valor e não um fedelho, um ninguem, um cidadão Ronquerolle!

Riram todos muito. Lapierre, o creado de quarto, tinha assistido a esta scena, esperando ordens do seu senhor.

– Está bem, diz-lhe o marquez, manda atrelar o break maior. Eu e estes senhores sairemos hoje para fóra da cidade, para Sennevel… Ah! espera, Lapierre, leva o «Figaro» á senhora marqueza. O criado tomou o jornal e retirou depois de saudar o marquez.

– Pobre Maximo! murmurava por entre os dentes, atravessando um corredor, como estes tratantes te tratam! Está descançado, que eu te ajudarei com as minhas fôrças a destruir esta nobreza. E isto simplesmente porque outr'ora fômos camaradas na escola…

Lapierre foi interrompido no seu monologo pela campainha electrica. Ao mesmo tempo, a marqueza atravessava a galeria que confinava com a escada d'honra do castello. Ia passear um pouco pelo jardim antes que a noite descesse completamente. O criado entregou-lhe o jornal. Apenas o abriu os seus olhos cairam sobre a nota relativa á eleição de Saint-Martin.

Ao lêr o nome de Maximo Ronquerolle, publicista, a marqueza empallideceu, murmurando:

– Meu Deus! seria elle? será possivel: Sim, sim, chama-se Maximo, como eu Maximiliana, recordo-me. É elle que vae chegar?

A commoção da marqueza era tão forte, que as suas mãos finas se humedeceram, como se tivesse febre; em logar de ir passear, como tencionava, no jardim, voltou aos seus aposentos onde se deixou cair n'um «fauteuil».

Passado um instante, levantou-se sem fazer ruido e offegante, como uma criminosa, temendo que qualquer dos seus criados a viesse surprehender, abriu uma pequena secretaria e tomou um cofre de que só ella possuia a chave, indo sentar-se junto da janella. A tarde tinha caido completamente. Um ultimo raio, como diz André Chenier, animava ainda o fim da tarde, mas as trevas do crepusculo invadiam toda a natureza. A marqueza affastou as cortinas da janella; á luz do ultimo raio de sol que desapparecia, pôde reler uma carta que estava no cofre e que tinha esta assignatura: «Maximo Ronquerolle.»

Era uma carta d'amôr e d'amôr apaixonado. Os versos misturavam-se com a prosa e o signatario falava d'uma tarde, d'um baile parisiense onde tinha dançado com madame de la Tournelle…

«Oh! porque vos vi eu? dizia a carta. Porque senti eu bater o vosso peito junto ao meu n'esse baile onde me levou o destino, esse Deus do mundo, segundo o pensamento de Schiller? Penso constantemente em vós, é a saudade por vós que me alenta. Não vivo, não aspiro senão á vossa belleza».

Depois, impellido pelo lyrismo da sua paixão, Ronquerolle, ia até á intimidade da marqueza, cantando a sua formosura hellenica em estrophes d'oiro.

Os seus lindos olhos azues o seu porte altivo e distincto d'uma plastica impecavel, o seu amôr ardente, tudo alli cantava em arrobos d'amôr e d'enthusiasmo.

M.me de «la Tournelle» teve um estremecimento ao lêr de novo esses versos. Com effeito, lembrava-se d'um rapaz com quem uma vez tinha dançado, havia quatro anos e que, no dia seguinte, ousara escrevêr-lhe, fazendo-lhe uma declaração d'amôr ardente… Porque guardara ella essa carta que a podia comprometter? Porque a não rasgara e lançára ao fogo como fizera a tantas outras produzidas pela sua belleza explendorosa? Porque tremia, ao lêr de novo uns versos, escriptos outr'ora por um desconhecido que perdêra de vista no grande mar da vida parisiense?

Mysterios do coração que nem mesmo os grandes sabios descobrem.

Enigmas do sentimento que zombam das investigações mais cuidadosas. Talvez, no fundo da sua alma, a bella Carlota sentisse uma alegria intima, e como que occulta, de ter inspirado uma paixão tão violenta e tão sincera como a que sentia Ronquerolle! Talvez que os versos do joven poeta, com o seu rythmo harmonioso, lhe recordassem o doce encanto d'uma valsa preferida! Talvez que a audacia de Ronquerolle lhe não tivesse desagradado, e admirasse a sua temeridade corajosa, o enthusiasmo da sua juventude!

A noite espalhava-se por toda a parte e ella ficara recostada no seu «fauteuil», com a luz apagada.

A escuridão favorecia o seu sonho e, apertando entre as mãos a carta, murmurava, distraida, os versos de Ronquerolle.

E era elle, esse terrivel democrata, cuja canditadura os jornaes anunciavam em opposição á de seu marido! Era elle que vinha á circumscripção de Saint-Martin arvorar a bandeira da Republica contra a nobreza contra a sua raça, contra a sua familia, contra ella mesma?

Ia voltar a vêl-o e a fallar d'elle a cada momento!

– Meu Deus! Meu Deus! dizia, que singular aventura. Se meu marido soubesse! Mas porque estou eu assim perturbada? Quem é, afinal, esse sr. Ronquerolle?

Guardou de novo e com cuidado a carta amorosa no cofre que fechou em seguida, e que foi encerrar n'um dos esconderijos mais occultos da secretaria.