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Amôres d'um deputado

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Devo seguil-a ou fazel-a seguir, quando ella sae, quando ella vae a qualquer entrevista? Não, deixemos esses processos vulgares á policia. A marqueza ama o grande mundo, os bailes, as «soirées»; adora tambem o theatro e tem um camarote na Opera.

Ora, é evidente, que ella deve encontrar ali o homem a quem ama.

É necessario portanto seguir-lhe ahi os gestos, as expressões, os olhares; e d'isso me encarrego eu, M.me de la Tournelle!

A ingleza via bem as cousas. Desde que ha apaixonados sobre a terra, elles teem sentido sempre uma volupia indifinivel em admirarem junctos as scenas harmoniosas da natureza, em repartirem as mesmas sensações litterarias e artisticas, em trocarem olhares de ternura, quando a emoção produzida attinge a sua maior intensidade.

O quadro onde se desenha a nossa vida nunca nos parece tão bello, como quando n'elle apparece tambem um traço da vida d'aquella a quem amâmos.

M.me de la Tournelle e Ronquerolle não fugiam á regra geral, á lei commum, doce lei que ordena áquelles que se amam que tudo sintam em commum, prazeres, alegrias, desgostos e tristezas.

Os dois amantes não podiam encontrar-se na sociedade. O logar de deputado republicano não era, decerto, nos salões aristocraticos que a marqueza frequentava. Era para elles esse facto motivo de pezar, mas comprehendiam que a sua ligação era impossivel se não observassem a cada instante a maior prudencia.

O marquez regressara a Paris em companhia do conde Orgefim, e o seu palacete havia readquirido a animação de todos os invernos.

O que se diria se o seu adversario politico, o seu feliz rival fosse visto a conversar com sua esposa n'uma «soirée» do grande mundo.

M.me de la Tournelle assistia ás sessões da camara dos deputados, afim de vêr ali o seu amante.

Do seu logar na tribuna ella contemplava-o sentado á sua carteira, escrevendo, gesticulando, discutindo com os seus collegas, interrompendo os oradores da direita, n'uma palavra, dispondo de toda a sua actividade, e a marqueza era feliz vendo-o assim.

Quanto a Ronquerolle o seu prazer supremo era ir á Opera, onde ella apparecia decotada, ornada de diamantes e eclipsando pela sua belleza todas as outras mulheres…

– Oh felicidade, pensava elle, o intrepido republicano, é minha essa sublime mulher!

Amâmo-nos, adorâmo-nos e ninguem no mundo, além de nós, conhece o nosso segredo.

E prolongando estes pensamentos, n'uma febre de amôr, Ronquerolle atravez a sala do theatro enviava toda a sua alma á incomparavel Carlota.

Ella via-o tambem, do seu camarote, seguia-lhe os olhares, transmitia-lhe tambem os seus pensamentos e enviava-lhe por entre as varetas do seu lindo leque beijos discretos.

Algumas vezes Ronquerolle ouvia os seus visinhos dos fauteuils de orchestra interrogarem-se.

– Quem é, diziam elles, aquella linda mulher, que occupa o segundo camarote do lado esquerdo, aquella que ostenta nos cabellos uma formosa estrella de diamantes?

– É a marqueza de la Tournelle! respondia um interlocutor melhor informado. É na verdade uma das mais seductoras mulheres de Paris.

Que altivez, e ao mesmo tempo que encanto na sua figura!..

Ella tudo possue, mocidade, saude, riqueza, um nome illustre, dignidade, belleza e espirito.

Ronquerolle empallidecia de felicidade, ouvindo o elogio da sua deliciosa amante.

Desejaria estar juncto d'ella, no seu camarote, a murmurar-lhe aos ouvidos essa palavra tão doce de pronunciar e mais doce ainda de ouvir:

– Amo-te! Amo-te!

Invejava e tinha ciumes de todos os que visitavam o camarote da marqueza, onde ella sorria em meio do perfume das flôres e dos canticos que enchiam o theatro.

As convenções sociaes não permittiam que aquelles dois amantes se apaixonassem, que fallassem em publico. Não podiam trocar palavras senão na intimidade, nas suas secretas entrevistas, que Ronquerolle tinha organisado com uma arte consummada.

Alli, sem duvida, elles se desforravam amplamente, de todas as privações e mentiras a que os condemnava a sociedade, mas nem por isso soffriam menos, por não poderem repartir as mesmas alegrias da vida exterior, as mesmas emoções, os mesmos prazeres.

Uma noite, na Opera, Ronquerolle não poude conter-se. M.me de la Tournelle estava só. Dirigiu-se ao seu camarote, e erguendo o reposteiro do pequeno salão interior, do mesmo camarote, sem poder ser visto da sala, chamou a attenção da amante.

Carlota veiu ao fundo e exclamou em voz baixa:

– Que imprudencia!

E deu-lhe os labios, onde elle depositou um beijo ardente.

Apertou-a um momento nos seus braços e depois retirou-se com a alma embriagada por esse vinho capitoso, o orgulho da posse.

Esta rapida scena não teve testemunhas, comtudo M.me William, a aranha ingleza, que assistia tambem ao espectaculo, notou que a marqueza estando só, tinha-se affastado por alguns minutos da frente do camarote.

– Por acaso o amante da marqueza não pertencerá á sua sociedade? disse comsigo a perfida observadora. É um enygma então, e como decifral-o?

M.me William havia já começado a sua sombria tarefa de espionagem. Sabia já o nome e a morada de todas as pessoas que frequentavam o palacete da marqueza. Mas os apontamentos colhidos tornavam-n'a perplexa. Não podera ainda achar um facto preciso, que podesse collocal-a n'uma pista que devesse seguir.

Quanto a Ronquerolle tinha-se desembaraçado dos agentes lançados nas suas piugadas pelo ministerio, fazendo publicar nos jornaes do seu partido uma noticia nos seguintes termos: «O deputado de Saint-Martin interpellará proximamente o ministro do Interior sobre assumptos da perfeitura da policia. Trata-se, ao que parece, de pequenas e grandes infamias dos agentes secretos. O sr. Ronquerolle apresentará factos, não baterá ao acaso. Desejamos que o ministro seja d'esta vez, um pouco mais feliz do que na sua ultima derrota.»

O ministro havia comprehendido a intenção e a ordem fôra revogada, ou fôra suspensa por algum tempo a observação secreta de que Ronquerolle era alvo. Este não poude deixar de sorrir-se da covardia dos seus adversarios.

Comprehendia agora que ignobil procedimento se acoberta sob as apparencias de legitima defeza politica.

Quanto mais penetrava no exame dos actos e dos homens do poder, maior numero de ignominias encontrava.

A colera invadia-o e teria querido desmascarar os homens que se fingiam honestos e dignos.

– De que valem os discursos contra a villanagem? dizia elle. Não são phrases que é preciso lançar-lhes ao rosto, o que é preciso é cuspir-lhes na cara.

M.me William reconheceu a necessidade de realizar uma larga entrevista com o barão de Quérelles.

N'essa entrevista contou-lhe elle a historia da ultima eleição de deputados em Saint-Martin, a queda do marquez e o triumpho de Ronquerolle, o candidato republicano, e a parte que elle proprio tomára nos acontecimentos.

– Não faço ideia, interrompeu M.me William, como seja o aspecto d'esse tal sr. Ronquerolle, de quem tanto se fala na Camara e cá fóra, e que derrotou com tanta felicidade o pobre de la Tournelle?

– É um homem alto e delgado, disse o barão, e elegante como um principe. Mas porque me faz essa pergunta?

– Simples curiosidade de mulher! exclamou a descarada ingleza tomando uma attitude de denguice.

M.me William viu depois muitas vezes a Ronquerolle, na Camara dos deputados.

Occupava logar n'uma tribuna não distanciada d'aquella onde M.me de la Tournelle tinha por costume assistir aos debates parlamentares, deliciando-se com a vista do amante.

A esperta ingleza reparou em que a loura Carlota não desviava os olhos do joven deputado.

– Seria interessante, pensou ella. Aqui ha mysterio! Decididamente senhora marqueza é necessario que eu vos faça seguir durante os vossos passeios atravez a cidade de Paris!

As entrevistas de Ronquerolle com a sua formosa amante, realizavam-se alternadamente em tres logares differentes, em tres bairros affastados uns dos outros.

Era assim mais difficil surprehender os dois amantes nos locaes das suas reuniões.

Além d'isso a marqueza mudava de carruagem cada vez que ia juntar-se a Ronquerolle, de fórma a estabelecer a duvida na espionagem de que podesse ser alvo.

Ella bem sabia que por uma moeda de vinte francos é facil fazer falar os creados e os cocheiros.

Assim nem mesmo estes podiam ter a mais leve suspeita.

Esses agradaveis encontros tinham sido organisados pelo intelligente deputado republicano com especial habilidade, uns dias realizavam-se de manhã e d'outras vezes á tarde ou á noite.

M.me de la Tournelle poderia mesmo passar a noite inteira fóra de seu palacete sem se comprometter.

Paris tem essa immensa vantagem sobre a provincia.

Em geral as pessoas que vivem na grande cidade não se occupam dos visinhos.

Nas casas habitadas por pessoas de alta posição só se exige uma qualidade aos locatarios, e essa qualidade consiste em não fazer ruido nas escadas.

O socego e algumas peças de cinco francos lançadas de tempos a tempos nas mãos dos porteiros auxiliam efficazmente os amôres illicitos nos ninhos dourados, impenetraveis. Accresce que certas casas e certos predios teem duas entradas, e portanto duas sahidas.

Este systema aperfeiçoado permitte ás pessoas que teem motivos para se envolverem em mysterios o rirem-se nas bochechas d'aquelles, que pelo contrario, teem todo o interesse em conhecerem os nomes e as caras das pessôas que se occultam nas mysteriosas habitações.

Ronquerolle era bastante parisiense, pelo espirito e pelos habitos para n'aquelle jogo de amôr obter todos os trumphos.

De resto, a intelligencia que qualquer recebeu da mãe commum, a natureza, serve-nos de auxiliar poderoso em todos os lances da vida.

Que prodigios de imaginação não teriam os amantes, para se vêrem a miudo.

 

Ronquerolle por si nada tinha a recear, era livre como o ar; mas preoccupava-se com o salvaguardar a honra da sua amante, uma mulher casada, pertencendo a um mundo de apparato, de vista, e que teria tudo a perdêr, se o segredo da sua ligação viesse a ser desvendado.

O marquez de la Tournelle não tinha a menor suspeita sobre a virtude e a fidelidade de sua esposa. Era-lhe submisso como um cão ao dono e nem sequer discutia os seus menores caprichos.

Sentia e sabia que ella lhe era superior, e amava-a com uma especie de devoção, como se ama e se venera uma divindade.

Depois do chéque eleitoral soffrido, elle considerava-se perdido aos olhos da marqueza, porque não seguira os seus conselhos.

Tremia deante d'ella e nem tentava explicar a si proprio as causas da frieza que sua mulher lhe testemunhava.

Por caricia unica, depois que Ronquerolle triumphára, M.me de Tournelle apenas permittia ao marido que a beijasse na testa.

Uma noite, pelas 11 horas, o infortunado marquez veiu bater á porta do quarto de sua mulher.

– Sois vós, Sergio? perguntou ella com voz irritada.

E como elle lhe respondesse affirmativamente:

– Tende paciencia, mas não vos posso attender. Voltae para os vossos aposentos. Estou fazendo a minha toilette para ir ao baile a Saint-Germain.

Effectivamente estava vestindo uma elegantissima «toilette» depois de se ter perfumado dos pés á cabeça.

Ronquerolle esperava-a n'essa noite n'um dos seus ninhos de amôr; mas para salvar as apparencias a marqueza foi effectivamente a um baile em Saint-Germain, d'onde rapidamente sahiu sem os outros convivas darem por isso, para ir cahir nos braços do seu adorado, do seu querido Ronquerolle.

– Fui eu que errei, dizia Sergio de la Tournelle dirigindo-se para os seus aposentos.

Devia ter escutado os seus conselhos e obedecêr-lhe escrupulosamente… Oh! A politica! Infernal politica! Para que me lancei eu n'essa odiosa engrenagem?

Carlota! Carlota!

Se tu soubesses como eu te amo!

Morreria por ti se m'o ordenasses!

E o desgraçado desesperava-se suppondo que havia perdido a estima de sua esposa apenas por uma serie de fraquezas suas, e acreditando, o que era verdade, que jámais a podia reconquistar.

O pobre marquez devorava a sós o seu profundo desgosto, porque as suas dôres eram d'aquellas que não se confiam a pessoa alguma, nem mesmo a um amigo intimo.

N'essa noite o marquez de la Tournelle não dormiu.

Ouviu dar todas as horas até ás quatro da madrugada.

A essa hora a marqueza entrava em casa.

Sergio ouviu tudo o que passou no seu palacete: o porteiro abrira a porta da rua, a carruagem entrára no pateo, depois a porta envidraçada da escadaria abrira-se para dar passagem á encantadora Carlota, e depois tudo voltára á tranquilidade e ao silencio.

– E dizer que minha mulher está aqui perto de mim, exclamava elle, que acaba de entrar vinda d'um baile, perfumada como uma rosa e bella como uma Venus, e que eu não ouso entrar no seu quarto, e que se tal ousasse ella me acolheria com um sorriso de piedade!

E o senhor de la Tournelle virava-se e revirava-se sobre o leito como se estivesse sobre um brazeiro, e de raiva, de desespero pela sua fraqueza, mordia as almofadas e rangia os dentes como atacado d'um accesso febril.

No emtanto o pobre marquez estava ainda longe de suppôr toda a importancia da sua desgraça.

A marqueza, como é sabido, vinha não só do baile como d'um delicioso «rendez-vous» de amôr.

Fatigada dos abraços estonteantes de Ronquerolle, despia-se vagarosamente, lançando o seu vestido de baile, levemente amachucado, sobre uma poltrona.

Tinha ainda nos labios vermelhos como que o calor dos beijos do fogoso republicano.

E adormeceu feliz recordando as phrases de amôr, o delirio do olhar apaixonado de Ronquerolle; e jurando não amar no mundo mais ninguem senão a elle.

IX
Drama sangrento

M.me William, se bem que se entregasse a uma activa espionagem, não podia penetrar nos segredos da vida privada da bella Carlota. Dispunha-se ella a organisar uma espionagem especial e astuciosa, quando uma manhã recebeu um aviso muito secco, pelo qual era convidada a apresentar-se das 8 ás 10 horas na repartição do sr. prefeito da policia.

Desconcertou-se, e estremeceu, á vista d'esse papel impresso e com o timbre da Prefeitura.

No emtanto resolveu não se preoccupar com essa nota inesperada e logo que chegou o dia em que o prefeito da policia a esperava no seu gabinete, conforme o aviso que lhe enviara, M.me William tomou um trem e fez-se conduzir para a Prefeitura.

Apezar da sua ousadia e da sua depravação não se sentia muito tranquilla ao subir as escadas d'aquelle edificio policial. Tinha a pezar-lhe na consciencia uma serie de acções más, que suppunha terem sido descobertas, e achava singular que a policia viesse metter o nariz nos seus negocios.

Esperou uma bôa meia hora n'uma ante-camara, em companhia de muitas personagens de apparencia suspeita e de olhar equivoco, sem duvida, como ella, chamadas ali, para receberem qualquer salutar reprimenda.

Por fim um empregado chamou em voz alta: «Madame William»! Esta ergueu-se rapidamente como se lhe tivessem dado uma picada de alfinete, e passou a um gabinete onde esperou apenas um instante.

Bem depressa um homem novo ainda appareceu por uma porta em que ella não havia reparado.

– Meu caro senhor, exclamou logo ella, é extraordinario! Ha sem duvida um engano, um lamentavel equivoco. Não comprehendo que a policia me faça comparecer aqui, obrigando-me a…

E ia proseguir n'aquella cadeia de protestos ou lamentações, quando o individuo que se achava na sua presença, grave como uma sentença de morte, lhe fez signal para se sentar, sem dar a menor attenção ás suas palavras.

– Vós sois madame William, disse elle; madame William do «boulevard» Malesherbes; não é assim?

– Effectivamente, respondeu a criminosa mulher.

– Está bem, accrescentou o empregado da policia, mantendo a sua linha de serenidade e firmeza, tenho ordem de vos participar que se continuardes a fazer por mais tempo concorrencia á Prefeitura de policia, vêr-nos-hêmos obrigados a reconduzir-vos á fronteira.

M.me William quiz ainda balbuciar algumas explicações, e tentou ainda enternecer o empregado, que falava em nome do prefeito da policia. Mas foi trabalho perdido. O homem não se desmanchou e disse-lhe ainda:

– Madame, sabemos tudo. Não viestes aqui para fazer phrases sentimentaes, mas para receber uma advertencia. Essa advertencia já vol-a dei. Fazei por não a esquecerdes.

E, como M.me William se erguesse, o homem accrescentou ainda, pondo a mão sobre um masso de papeis.

– Madame, estão aqui documentos que vos dizem respeito. Como vêdes o masso é bastante volumoso. Devo prevenir-vos de que estaes sob a vigilancia da nossa policia e que ella vale bem mais de que a vossa.

M.me William regressou á sua habitação fortemente impressionada com o que se passára.

Não se entendia já dentro dos acontecimentos.

Teve um verdadeiro ataque de nervos e n'esse mesmo dia escreveu ao barão de Quérelles, pedindo-lhe para ir vêl-a sem demora.

A criminosa via bem que a Prefeitura de policia estava ao corrente das suas pequenas intrigas, mas não soube explicar como tinham esperado tanto tempo para a advertirem de que tivesse cuidado nos seus «negocios». Havia annos que ella intrigava a sociedade parisiense, e sempre a tinham deixado «trabalhar» á vontade. Mas apenas dirigira as suas baterias contra M.me de la Tournelle logo a policia intervinha no caso. Realmente a maldita Prefeitura queria tirar-lhe o pão da bocca. Afinal, pensava M.me William, aquelle trabalho a que ella se entregava era como outro qualquer; era um meio de ganhar a vida «honestamente».

O que se tinha passado, perguntará o leitor, para que a policia se intromettesse no assumpto? Uma coisa muito simples. Ronquerolle, que velava sobre a sua amante, como uma mãe vela pelo seu filho, havia tido a suspeita de que a marqueza estava ameaçada d'um grande perigo; e redobrando de vigilancia, havia sabido da existencia de M.me William.

Entretanto prevenira o prefeito da policia, e como este receava os ataques na Camara, do joven deputado, déra immediatamente as ordens mais severas relativamente á aranha ingleza tão compromettedôra.

E foi assim que M.me de la Tournelle, sem o saber, foi desembaraçada d'uma infame espionagem que poderia ter trazido as mais deploraveis consequencias.

O marquez, porém, começava a sentir algumas suspeitas. Era tão desdenhosamente tratado por sua esposa de cada vez que tentava a sua intimidade, que acabou por perguntar a si proprio se a politica seria a causa unica da repulsão que a marqueza por elle demonstrava. E nunca a bella Carlota fôra mais attrahente e digna de ser adorada.

Vestia toileites encantadoras, estonteantes; apparecia nos bailes mais aristocraticos de Saint-Germain, não faltava ás sextas-feiras da Opera, nem a uma unica quinta-feira de Comedie; e viam-n'a em todas as interessantes sessões parlamentares.

Passeava tambem no Bois, nos dias e nas horas em que as grandes elegantes da vida parisiense vêem ali apresentar os seus maravilhosos encantos e as suas deliciosas frivolidades.

Nas secções mundanas dos jornaes, falava-se da marqueza de la Tournelle nos termos os mais elogiosos; era ali citada como uma das rainhas do bom tom e da verdadeira elegancia, e dava-se-lhe o estandarte da belleza no batalhão das formosas louras.

A sua amiga, M.me de Fleurus, era rainha na côrte das morenas.

Esta possuia um particular encanto, que constava de bem pouco, mas que muitas mulheres desejariam possuir.

M.me de Fleurus tinha o labio superior ligeiramente ensombrado, por um adoravel e quasi imperceptivel buçosinho.

– É este o privilegio de nós outras as morenas, dizia ella algumas vezes sorrindo, para M.me de la Tournelle. E devemos tirar todo o partido possivel do que a natureza nos concedeu.

Era para fazer o orgulho do seu amante que a marqueza apparecia constantemente nas festas e nos logares de prazer da sociedade parisiense. Ella bem sabia como os homens mesmo os menos vaidosos, mesmo os mais fortes e os mais incorruptiveis, se sentem felizes de ouvir falar nos encantos, na elegancia, e na belleza da mulher a quem amam.

Ronquerolle, com effeito estava louco de felicidade.

Não era só a sua vaidade que se achava plenamente satisfeita, era tambem, o seu orgulho.

Quando percorria com a vista as secções elegantes do «Figaro» ou do «Gaulois», onde se falava da sua amante, elle sentia-se disposto a abraçar o mundo inteiro, e teria querido conhecer os «reporters» que haviam redigido essas noticias tão simples, mas para elle tão encantadoras, afim de lhes offerecer opiparos jantares na «Maison d'Or», em que o Champagne corresse a rôdo.

Tambem o marquez de la Tournelle lia essas noticias dos jornaes onde se falava de sua mulher como d'uma maravilha de graça e de seducção.

Esses elogios despertavam n'elle a paixão d'outros tempos. E tornava-se a sua paixão mais ardente que a d'um rapaz. E desejava sua propria esposa, como se inveja a mulher d'um outro. Passavam-lhe por deante dos olhos sonhos voluptuosos, desejos insaciaveis e soffria na sua terrivel intensidade o tão falado supplicio de Tantalo. O divino licôr mostrava-se deante dos seus labios febris, mas o marquez não podia mitigar a sêde que o devorava. E não tentava sequer aproximar o calice que brilhava como faiscas de diamantes.

Soffria em silencio, e a sua dôr accumulava-se, como a agua d'uma corrente que cae no fundo d'um precipicio.

Se elle fôra verdadeiramente um homem, se elle tivera a energia moral que quebra os obstaculos e consegue os seus fins, o marquez de la Tournelle teria falado a sua mulher n'um tom que não permittiria a replica, e teria arrombado sem difficuldade a porta do quarto de dormir onde a marqueza se encerrava pretextando a fadiga ou o arranjo da sua toilette.

É verdade que se elle tivesse sido capaz de tal procedimento, que indicam o dominador, o conquistador, a marqueza não lhe teria jámais fechado a porta; viria mesmo abril-a ao vencedor, e elle teria entrado na fortaleza com a serenidade e a alegria do triumpho.

A mulher ama a força e despreza ou pelo menos sente piedade pela fraqueza. É feliz em sentir-se martyrisada, não por um poder brutal, feroz ou louco, mas por uma força intelligente, bella e harmoniosa.

O papel d'um homem é na acção o que o da mulher é pela graciosidaoe.

Para M.me de la Tournelle o homem de acção era Ronquerolle; com elle sentia-se submettida pela unica supremacia que sabia reconhecer, a do talento, a d'um grande caracter, a d'uma grande alma. Assim ella estava ligada ao joven republicano por uma grande ternura cada vez mais solida, augmentando dia a dia pela força adquirida e pelo encanto da recordação.

 

O marquez estava preso da maior angustia.

Uma noite, soffria com tal violencia, que, como machinalmente, invadiu os aposentos de sua esposa. Ella acabava de sahir. O seu quarto de dormir, o seu «boudoir», o seu gabinete de toilette estavam saturados de perfumes. Reinava ali a deliciosa desordem que deixa uma mulher do grande mundo, quando acaba de se preparar para ir a um baile, a um theatro, ou a uma entrevista de amôr.

Estonteado por esses perfumes capitosos, por todos esses objectos que concorrem para os attractivos d'uma mulher, o senhor de la Tournelle cahiu sobre uma poltrona, e experimentou um sentimento de desespero impossivel de descrevêr.

Uma extranha recordação invadiu todo o seu sêr, e lagrimas ardentes queimaram as suas palpebras.

No «boudoir», viu elle o pequeno cofre que a marqueza trazia sempre comsigo nas suas viagens, e nas suas mudanças de Paris para Saint-Martin e de Saint-Martin para Paris.

Acudiu-lhe á mente a ideia de o abrir.

Veiu até junto do cofre e tentou erguer-lhe a tampa. O cofre estava fechado á chave.

– É singular! disse o marquez. Porquê este mysterio?!

E o seu ávido olhar envolvia o elegante e pequeno cofre.

Poz-se a sacudil-o.

Nenhum som se fez ouvir.

Então a colera atravessou o coração d'aquelle desgraçado homem.

Tomou o cofre entre as duas mãos, acima da altura da cabeça, e lançou-o violentamente contra o marmore branco do fogão.

O cofre abriu-se e duas cartas saltaram d'elle.

O senhor de la Tournelle hesitou ainda um momento, antes de apanhar as cartas.

Parecia-lhe que commettia uma falta, que se deshonrava entrando assim nos segredos de sua mulher, mas a angustia, de que se achava possuido, lançava-o de encontro ás catastrophes.

Com mão tremula, abriu uma das cartas, reconhecendo que ella continha apenas alguns versos, e respirou.

A julgar pelo amarellado da tinta, havia já bastante tempo que esses versos tinham sido escriptos. Olhou para a assignatura: «Maximo Ronquerolle».

– O quê, pensou elle, o nome d'esse homem!

Mas é uma infamia! Oh que fatalidade!

A outra carta não continha assignatura.

Era escripta mais recentemente mas a lettra era a mesma que a da poesia.

Á medida que proseguia na leitura o marquez sentia como que um punhal a atravessar-lhe o coração.

Comprehendeu emfim todo o seu infortunio.

Sua mulher tinha um amante e esse amante era um republicano, e esse republicano era o seu rival politico, o seu implacavel inimigo, aquelle a quem tinham por habito chamar o cidadão Ronquerolle. As duas cartas que haviam saltado do cofre eram as unicas que Ronquerolle tinha enviado á sua amante.

Os versos datavam de longe, eram a sua primeira expressão de amôr.

A outra missiva tinha-a elle escripto no proprio dia da sua eleição, após o apuramento do escrutinio d'onde o seu nome sahira victorioso.

A carta dizia:

«Mulher adorada, devo-vos uma parte do meu triumpho. Sêde bemdita, pois haveis secundado os meus esforços, tendo a coragem de me sacrificardes os preconceitos da vossa raça, e a vossa posição.

Que hei de eu fazer para chegar até á altura do vosso amôr, que se affirma tão poderosamente»!

E mais adeante lia-se: «Que bello destino antevejo, para ti e para mim, deliciosa amante! Ninguem saberá que nos amâmos, ninguem advinhará o segredo da nossa paixão…

Amar-nos-hêmos, adorar-nos-hêmos por nós mesmos, e não em obdiencia a tôlas convenções sociaes, não por nos conformarmos com pequenas cousas ou interesses pueris!»

A leitura dos versos e da carta de Ronquerolle foi um martyrio para o infeliz marquez de la Tournelle.

Pela primeira vez na sua vida esse aristocrata de nascimento, esse espirito fraco, comprehendêra de quanta magia dispunha sua mulher.

E sentiu um duplo soffrimento reconhecendo, que nunca tivera nem podia ter aos olhos da marqueza esse prestigio secreto, admiravel, que faz as verdadeiras conquistas do amôr.

Muitas vezes Ronquerolle tinha aconselhado á sua amante que queimasse os seus versos e muito principalmente a sua longa carta de amôr.

Ella sempre o promettera fazer mas jámais tivera coragem para cumprir a sua promessa.

Essas lettras do amante eram para ella deliciosas recordações do inicio dos seus amôres, e sentia uma extranha voluptuosidade em relêl-as.

É tão agradavel conservar os objectos que hão acompanhado o nascer e o desenvolver d'uma paixão sincera!

As palavras escriptas pela pessôa amada, quer sejam receosas, prudentes, conselheiras ou loucas e irreflectidas; as pequenas lembranças ou recordações, um annel um lenço, um livro; uma simples flôr que secca mas que assim se conserva durante muitos annos, tudo, tudo, mesmo na sua pequenez e na sua apparente insignificancia, representa a mais eloquente testemunha do nosso amôr.

Ha quem conserve esses pequeninos nadas, que são tudo para quem amou, e que não trocaria essas recordações d'um dia, d'uma hora, ou d'um instante feliz na sua vida, por uma perola, um diamante, uma corôa, um reino.

M.me de la Tournelle não daria por um imperio aquelles dois papeis escriptos pelo seu amante.

Era supersticiosa a marqueza em tudo que dizia respeito a Ronquerolle. Pensava que se desapparecessem aquellas cartas, com ellas lhe fugiria Ronquerolle.

Dava a maior importancia a tudo que lhe dizia respeito; e o amante, pela sua parte, não a ligava menos a tudo que respeitasse ao seu idolo.

No fundo do precioso cofre admiravelmente cinzelado jaziam as duas cartas de Ronquerolle como um thezouro de alto preço.

O marquez, perante a horrivel realidade, sentiu renascer a calma no seu pensamento.

– Está bem! exclamou elle com resolução.

E tornou a collocar as duas cartas no cofre.

O pequenino e lindo movel tinha a fechadura arrancada.

Reparou o melhor que poude os estragos causados no cofre e foi pôl-o no mesmo logar onde o encontrára.

Não queria que sua mulher percebesse o que se passára e principalmente que elle tinha conhecimento da sua falta.

A partir d'essa noite fatal, o senhor de la Tournelle começou de apparentar uma grande tranquillidade em todas as suas palavras. Sorria com satisfação e mostrava grande prazer em offerecer aos seus creados pequenas lembranças.

Quem o visse pela primeira vez e quem com elle entretivesse duas horas de conversação, teria dito: Que homem tão feliz! E, no emtanto o desgraçado estava ferido de morte.

Durante um mez occupou-se em pôr os seus negocios em ordem. Todas as manhãs o seu secretario vinha trabalhar com elle.

Algumas dependencias de sua casa, que estavam em más condições foram arranjadas, alguns moveis foram renovados. As propriedades do marquez receberam a sua visita e por toda a parte elle deu ordens uteis.

A marqueza não sabia que pensar do procedimento de seu marido.

Parecia que se preparava para emprehender uma grande viagem por mares perigosos d'onde ignorava se voltaria, e que antes da sua partida tratava de assegurar a sorte dos entes que lhe eram caros.

E no emtanto o marquez não tinha no cerebro qualquer projecto definitivo.

Sentia que ia dar-se um acontecimento grave, um drama sem duvida. Mas qual?

Não teria podido dizêl-o.

– Devo provocar, pensava elle, esse sinistro e fatidico Ronquerolle? Devo cruzar o ferro, ou trocar uma bala com elle? Para quê? É uma loucura. Elle está no seu papel. Encontrou no seu caminho uma bella mulher a quem sorriu e que se lhe entregou… Eu é que deveria ter feito com que ella me amasse. Devo matal-a, a ella, á culpada, ou pôl-a fóra de minha casa? E seria eu menos desgraçado, após essas violencias? Não, não. O golpe está dado, a minha vida está envenenada e o meu destino traçado.

Não posso confiar a minha dôr a pessoa alguma sem me tornar ridiculo. Sou eu quem deve morrêr!

Ah! Se eu não a amasse!..

E o desgraçado sentia uma alegria amarga ao pensar na morte.

Era o seu unico refugio.

N'uma quinta-feira, pelas onze horas da noite, a marqueza sahiu segundo o seu costume, indo a uma «soirée» que dava a sua amiga, M.me de Fleurus.