Romancistas Essenciais - Coelho Neto

Text
From the series: Romancistas Essenciais #11
Read preview
Mark as finished
How to read the book after purchase
Font:Smaller АаLarger Aa

VII

Com o rosto encostado à persiana, Dona Júlia deixou-se estar esquecida, o olhar perdido, pensando nas palavras do velho Fábio que, só então, depois de vinte e cinco anos de amizade, porque o marido levara, como um dote, aquele coração, cuja bondade vivia a apregoar - emitia a sua opinião sincera sobre "os pequenos" que, a bem dizer, lhe haviam crescido ao colo. Não estimava, então, a afilhada, tinha-a em má conta, achando-a indigna de conversar com Cristina, a inocente e triste Cristina, sempre chorosa e pressaga, com idéias de convento e de morte. E por que? que havia feito Violante para que assim a julgassem? Ah! infeliz de quem se vê ao desamparo! Se o marido fosse vivo o compadre não lhe diria, com certeza, aquelas duras palavras sobre os filhos; não, não lhas diria.

Ah! o bom tempo da ventura - ela moça e contente, caminhando na vida sem cuidado, à sombra do esposo, com os dois filhinhos à frente, de mãos dadas, rindo, gárrulos, e Fábio a gabá-los, achando-os lindos, carregando-os de brinquedos, empanturrando-os de doces. levando-os aos cavalinhos com a Cristina, sempre triste, doentinha, chorosa. Ah! o bom tempo!

Então era ele quem pedia as crianças, quem as levava para a sua casinha, não fazendo distinção entre elas e a filha, sempre abaetada, a tossir, com o corpinho abotoado em furúnculos. Mas com a morte do esposo todas as boas amizades haviam desertado, o próprio Fábio parecia querer abandoná-la justamente no momento mais doloroso. Pobre dela! Não houvesse ele arranjado a vida conseguindo comprar a chácara do Engenho Novo, que ele não era assim antes, isso não era.

Repentinamente, numa transição, como arrependida daqueles injustos pensamentos, suspirou: Pobre compadre! Sim, lá ia ele, velho, bater a cidade por causa de Violante. Ele não falava por mal, seu gênio era aquele: dizia tudo que lhe vinha à boca, com uma franqueza impetuosa e rude, como se estivesse com raiva, mas lá por dentro o coração estava a chorar e, não raro, nos momentos em que mais furioso se mostrava, enchiam-se-lhe os olhos d'água e, para que o não julgassem um fraco, vociferava ainda mais, gesticulando desatinadamente. Já no tempo do marido era aquilo - a mesma aspereza, os mesmos ímpetos, dominando com a superioridade de um irmão mais velho e o outro não se zangava, ouvia calado, dizendo sempre: "O Fábio tem razão... O Fábio tem razão." Na moléstia do Paulo, quando a febre o prostrou entre a vida e a morte, desenganado pelos médicos, quem velara à sua cabeceira com maior carinho do que ele? E onde fora seu filho ganhar forças novas em convalescença tranqüila e animada senão em casa dele? Não, pobre compadre! Deixou a janela e, lentamente, foi caminhando para a sala de jantar. Felícia dobrava a toalha da mesa quando ela, encostando-se a uma cadeira, perguntou:

— Tu vais comigo, Felícia?

— Para onde? Para onde é que sinhá vai?

— Paulo encontrou uma casa no cais da Glória. Vamos para lá.

— Eh! eh! - fez a negra. - Tão longe!

— Qual longe! Então é longe?

A negra ficou algum tempo imóvel, a pensar, com um sorriso estampado no rosto macilento; por fim disse, resignada e submissa:

— Sinhá indo, que é que eu hei de fazer? - Depois, baixando o olhar, a passar a mão pela toalha dobrada, murmurou: Aquele mar ali perto é que é...

— Que tem o mar?

A negra levou, de repente, as mãos juntas aos olhos e pôs-se a chorar baixinho, pensando no filho.

— Deixa disso, criatura, está com Deus... mais feliz do que nós, já não sofre. - E, afagando-a, a boa senhora, cujos olhos se encheram d'água, procurou distraí-la: Olha, vamos aproveitar o tempo, arrumando alguma coisa. - De novo as palavras do velho Fábio ressoaram-lhe no coração dolorido: "Indigna de estar ao lado de Cristina..." Um sorriso triste aflorou-lhe aos lábios e, arrastadamente, caminhou para o quarto. Súbito, porém, detendo-se, agarrou a cabeça a mãos ambas, exclamando: "Pois, meu Deus! é possível? É possível mesmo que eu fique sem minha filha?!"

De vez em quando a lembrança de Violante passava-lhe assim pelo espírito, como um relâmpago, e ela quedava inerte no meio da casa, tolhida, esquecida de tudo, a olhar sem ver, em verdadeira inibição. "Pois é possível que ela não volte?" Meneando com a cabeça, entrou no quarto da filha, deserto e triste como o seu coração.

Até à noitinha Dona Júlia e a negra andaram em arrumação: empalhando a louça, entrouxando a roupa, retirando quadros das paredes e a casa, desnudando-se, tornava-se ainda mais triste, com um aspecto lúgubre de miséria: os móveis em desordem, montes de coisas pelos cantos, rolos de colchões, cartas esparsas, velhas fitas empoeiradas, retalhos, folhagens secas. O gato, sobressaltado, rondava a casa miando, de canto em canto, sobre um móvel, sobre outro, tudo farejando com desconfiança.

Felícia saía ao quintal para espanar os quadros, ia e vinha opondo-se a que a ama carregasse pesos. "Que ela não podia; deixasse." E, ligeira, ia adiantando o serviço. Dona Júlia, d'olhos no chão, recolhia, catava pequeninas coisas - um laço de fita, uma madeixa ruça, um cromo: eram lembranças da filha. Pobre Violante! Se ela ali estivesse, que alegria!

Com o trabalho não deram pelo cerrar da noite e foi Felícia quem disse:

— Parece que nhonhô não vem hoje jantar...

— É verdade! - exclamou a velha surpreendida, com os olhos no relógio.

Eram quase sete horas; escurecia; já andavam a acender os lampiões. Impressionada ficou algum tempo a olhar os ponteiros e foi ainda a negra quem interrompeu o silêncio, acendendo o gás:

— Quem sabe se ele não encontrou Nhá Violante, sinhá?

— Hem?!

— Ele que não vem até agora...

— É!... E o compadre foi também. Quem sabe se andam juntos?! Ah meu Deus!... Se eles entrassem agora com ela? Mas qual! não tenho esperança. Andam por aí quebrando a cabeça, coitados! Se ela pudesse de vir já tinha vindo. Enfim... há de ser o que Deus quiser.

— A Deus nada impossível, minh'ama; - consolou a negra levando, a grandes vassouradas, um monte de papéis para a cozinha. - Eu não sei, mas meu coração me diz que Nhá Violante ainda volta... minh'ama há de ver.

— Deus te ouça.

— Onde é que ela há de ficar, uma moça como ela? Minh'ama há de ver, meu coração não falha.

Foi num canto da mesa que Dona Júlia, a contragosto, tomou a sopa e mastigou uma febra de carne, suspirando, com o ouvido atento aos menores ruídos. Gente que passava na rua, falando, fazia com que ela voltasse a cabeça ansiosa. Foi várias vezes à janela, entreabriu-a e ficou à espreita, alongando os olhos pela rua deserta. Parecia, às vezes, distinguir o filho além!

Um casal, voltando a esquina, sobressaltou-lhe o coração; cravou os olhos... Não, não eram eles. As lâmpadas da Central espalhavam uma claridade de luar na rua tranqüila. Dançavam na vizinhança, vozes marcavam uma quadrilha, vibravam gargalhadas. Ah! Violante...

Tamborinando no tabuleiro, rompeu, cantando, um vendedor de roletes; apareceu na esquina a chamar a freguesia e a baquetar com força. Os trens rodavam e um bonde, quase vazio, passou vagaroso.

Onde andaria o Paulo? Iam as horas correndo: oito, nove, dez. A venda da esquina fechou-se e a claridade lívida da calçada sumiu-se. De quando em quando ela ia espreitar pelas frestas da janela, aflita. Que terá havido? Que terá acontecido, meu Deus! Eram onze e meia quando bateram à porta.

— Quem é?

— Abra!

Com mais pressa do que lhe permitia o corpo levantou-se da cadeira e precipitou-se; antes, porém, de abrir espiou pelas rexas da persiana e reconheceu o filho. Abriu. Paulo entrou impetuosamente, num arremesso de empurrão. A pobre velha, alarmada, perguntou, querendo ampará-lo:

— Que é isto, meu filho?

Vendo-o, porém, à luz, demudado, oscilando, d'olhos muito lânguidos, como amortecidos de sono, ficou pregada ao soalho contemplando-o, entre assombro e piedade. Paulo bateu com o chapéu sobre a mesa, deixou cair a bengala e, sem dizer palavra, encaminhou-se para o quarto, detendo-se à porta, hesitante. Repentinamente voltou-se e, com a voz pastosa, a língua frouxa, tropegou:

— Por enquanto nada. Andei com o Mamede... Nada.

Vacilando, levou a mão ao umbral da porta, curvado, com a cabeça pendida e ficou a arquejar surdamente, em angústia, com o cabelo escorrido à fronte, as pernas abertas. Dona Júlia adiantou-se, ia amparar-lhe a cabeça quando ele a repeliu, falando balofo:

— Deixe, mamãe... Deixe.

— Mas que é isto, meu filho? Pois tu?

— Que é? Já vem a senhora com os conselhos. Violante podia fazer tudo e... Pois eu não estou disposto a ouvir sermões, sabe? Chega, estou farto. - Revoltado, sem poder levantar a cabeça, que bombeava, continuou em voz fanhosa: E não quero mais histórias comigo. Não sou criança para estar a ouvir as grosserias do Sr. Fábio e de outros idiotas como ele. Eu ainda perco a cabeça e faço uma das minhas e vão depois dizer que sou isto e aquilo. - Deixou-se cair em uma cadeira, passando a mão pelos olhos lentamente, como se retirasse alguma coisa que os empanasse. - Andei como um animal... Estou que não posso comigo e ainda não jantei. Tudo por causa da senhora Dona Violante.

— Com quem andaste?

Ele levantou a cabeça com esforço:

— Com quem havia de ser? com o Mamede, pois não sabe?

— Logo vi... balbuciou a velha.

— E... já a senhora pensava que eu vinha da troça, que tinha andado em pândega por aí. Pois ainda não jantei. Que é que está olhando? É isto: ainda não jantei. Ah! pensa que bebi. Bebi mesmo, e depois? bebi! - E, furioso, às guinadas, meteu-se no quarto, resmungando. Dona Júlia ficou de pé no meio da sala, abatida, num desalento profundo, com os olhos na porta que o filho encostara. Por fim, animou-se a chamá-lo, e nunca a sua voz foi tão suave e tão terna: "Paulo, meu filho..."

 

— Que é? Não se importe comigo, deixe-me: estou com muita dor de cabeça, e é tarde. Não se importe comigo; não preciso de cuidados, graças a Deus. No dia em que eu não tiver forças para trabalhar, meto uma bala na cabeça. Coragem não me falta. Ora se... e pouco se perde. Descanse, que a senhora não há de sofrer por minha causa. Ah! é um desespero! tudo é pra cima de mim, como se eu fosse um burro de carga. Pois sim, mas isto acaba.

Dona Júlia entrou no quarto. Paulo estava de pé junto à estante, a remexer nos livros; sentindo a mãe, voltou-se:

— Pode olhar, mas não me fale, tenha paciência... Eu não estou bom.

— Mas que queixas tem você de mim? Então eu sou má?

— Não sei... Eu é que não estou disposto a aborrecer-me. Que culpa tenho eu de que Violante tenha fugido de casa? Foi comigo que ela fugiu? Foi por minha causa? Fui eu que lhe abri a porta? Não - então por que me aborrecem? Já faço muito em andar por aí, de casa em casa, cansando-me atrás de uma vagabunda.

— Que é isto, Paulo?

— Vagabunda, sim! A senhora pode defendê-la como quiser. Ah! eu não esqueço o que me fazem, não esqueço. Quando estive doente deixaram-me aqui abandonado, como um cachorro, porque a senhora Dona Violante queria um vestido com pressa, não sei para que pagode. Eu podia morrer, contanto que ela brilhasse. Fiquei ardendo em febre, e mamãe lá foi acompanhar a senhora minha irmã, deixando-me com uma negra. Eu não esqueço... Mas não faz mal. Deus é grande!

Sentou-se na cama fazendo horríveis visagens, ansiando, abrindo e fechando a boca, aos haustos. Dona Júlia adiantou-se, enternecida:

— Tu estás sentindo alguma coisa, meu filho?

Ele engulhava. Saiu-lhe, a jorro, uma negra golfada da boca esparrimando-se no soalho, com um fétido ácido. A velha amparou-lhe a fronte viscosa, posto que ele, torcendo-se com agoniadas contrações e arrevessando, repelisse, já sem energia, e mão carinhosa. Nova golfada bolçou longe e Paulo, suando frio, pôs-se a gemer, dando com a cabeça, a comprimir o estômago, estorcendo-se.

Dona Júlia, com os dedos atarantados, desabotoou-lhe a camisa e as calças, deitou-o e correu, aflita, a buscar o vidro d'água sedativa. Na sala de jantar pensou em acordar Felícia, mas teve vergonha - não queria que ela visse o filho naquele estado. Entrou resolutamente no quarto e, como a prateleira dos remédios - a sua botica - ficava por trás dos santos, enquanto procurava, entre outros, o vidro que queria, foi fazendo uma oração ao Senhor dos Passos, frouxamente iluminado pela lamparina trêmula.

Quando tornou ao quarto, com o remédio, encontrou o filho de pé, agarrando a cabeça a mãos ambas, vacilando, como se a embriaguez se houvesse agravado. Dos olhos úmidos escorriam lágrimas, uma baba víscida descia-lhe pelos cantos da boca, copioso suor alagava-lhe a fronte, onde os cabelos caídos colavam-se, empastados.

— Por que não te deitas, meu filho? Vem cá, deita-te, descansa; isso passa.

E a boa velha foi conduzindo o filho, que cambaleava. Forçou-o brandamente a deitar-se, alteou os travesseiros, repousou-o. Ele, porém, sentia-se mal e, lutando, soergueu-se de novo, aflito, arquejando, debatendo-se. Repentinamente saltou da cama e, engulhando, ficou de pé no meio do quarto, d'olhos desvairados, a esmagar o estômago a mãos ambas, dobrando-se.

— Não posso mais. Eu morro! - rouquejou, deixando-se cair na cama e Dona Júlia, ajoelhando-se, arrancou-lhe as calças, sem que ele fizesse o menor movimento, e vendo-o tranqüilo, deixou-o estendido, com os pés quase tocando o chão, o ventre descoberto, aflando, como o de um peixe em agonia.

D'olhos fechados, Paulo sentia uma impressão estranha, como se fosse rolando no vácuo; a cabeça parecia estar cheia de nuvens densas, pesadas, que rolavam; o leito oscilava. Abriu os olhos - foi pior: os móveis moviam-se, sombras enormes bailavam fantasticamente nas paredes; uma zoada rumorejava-lhe aos ouvidos. Um cheiro acre, penetrante, agudo, chegou-lhe terebrantemente ao cérebro. Agitou-se nervoso e agarrou o pulso de Dona Júlia, repelindo-a; mas a boa senhora manteve-se junto dele, chegando-lhe ao nariz o lenço, encharcado d'água sedativa.

— Tem paciência, meu filho.

— Não, mamãe...

— Vais ficar bom.

— Não! - e debatia-se. Tentou erguer-se, mas oscilou para um lado, para outro e tombou no leito, gemendo, resmungando:

— O Fábio! pois sim... - Riu sardonicamente, escondendo o rosto no travesseiro para fugir ao lenço com que a mãe o perseguia. De novo, engulhando, ameaçou levantar-se: fincou os cotovelos na cama, conseguindo apenas soerguer a cabeça, que logo descaiu, pesada. - Já disse que não quero, mamãe. Por causa daquele diabo! Mas deixa estar. Eu bem dizia. A culpa é sua e dessa negra. - Teve um ímpeto de ira e abriu os olhos desmedidamente: Mas eu não a quero nem mais um dia aqui em casa, nem mais uma hora! Sem-vergonha! Era ela mesma que andava com as cartinhas de lá para cá. Foi ela que arranjou tudo. Mas deixa estar...!

Dona Júlia insistiu com o lenço, seguindo os movimentos repentinos do filho, que fugia com a cabeça, resmungando.

— Espera, Paulo.

— Não quero! Não teima...! Mau! Mau!

— Tem paciência, meu filho.

— Não quero! Olhe, mamãe...! ameaçou.

— Pois hás de ficar assim? - e, em segredo, para vencê-lo pelo vexame, disse: Olha Felícia...

— Que tenho eu com Felícia? Ela que venha cá! Por causa dessa sem-vergonha é que a nossa vida anda assim. Não quero mais essa negra aqui! Não faltam criadas.

A cefaléia, porém, ia-se-lhe tornando insuportável: sentia a cabeça como apertada num capacete de ferro, os olhos pareciam querer saltar das órbitas: as artérias, nas têmporas, latejavam com violência, túrgidas. Entrou a suar frio e, arrebatadamente, desnudou-se aos olhos compassivos da mãe que, sem vexame, comovida, não podendo retirar o lençol da cama, cobriu-o com uma toalha de banho que pendia do cabide. Depois, reunindo toda a sua força, agarrou-o pelo tronco e virou-o na cama, repousando-lhe a cabeça nos travesseiros altos. Estendeu-lhe as pernas e, sentando-se à beira da cama, ficou-se a acariciá-lo, chegando-lhe, de quando em quando, ao nariz, o lenço, que ia embebendo em água sedativa.

Por fim ele imobilizou-se, como se houvesse adormecido, mas sofria - o atordoamento da embriaguez dava-lhe desequilíbrios. As vezes parecia-lhe ir caindo, estendia os braços, procurava agarrar-se a alguma coisa, resmungava; mas, de novo, reentrava em inconsciência, até que, estirado, com um fio de baba a escorrer-lhe da boca, adormeceu, hirto e pálido, como morto.

Vendo-o a dormir, Dona Júlia saiu em pontas de pés e, instantes depois, tornou, silenciosa, com um balde e um pano e, de joelhos, pôs-se a esfregar o soalho, para que não ficasse vestígio daquela vergonha. No mesmo passo, cauto e sutil, saiu com o balde, voltando, pouco depois, ao seu posto. Sentou-se devagarinho na cadeira, encostando-se à mesa acumulada de livros, com os olhos no filho, ungindo-o de piedade e desviando-se, fugindo ao presente triste, achegou-se às recordações do passado.

Era ele pequenino, uma criança linda, de cabelos louros, meiga e inteligente. Como a casa era alegre com as suas travessuras, com o seu riso que vibrava! E ela, como era venturosa quando o tomava nos braços, doce peso que fazia subir sua alma ao Paraíso.

E a outra, que beleza de menina! E como andava garrida, sempre com figuinhas sob as rendas do vestido taful, para conjurar os olhares vesgos da inveja, amimada por todos, de colo em colo, de casa em casa.

Quando o marido chegava do quartel tomava os dois e, com um em cada joelho, punha-se a sacudi-los: upa! upa! e eles a rirem, e ela a rir com eles, enlevada.

Depois o colégio, as horas de saída, o regozijo em casa quando os dois apareciam gárrulos, contando o que haviam feito, todos os pequenos incidentes do dia escolar. Suspirou. Aquela ironia da memória alanceava-lhe o coração. Paulo voltou-se atirando um braço, encolhendo as pernas, com um resmungo. Ela pensou que ele houvesse acordado e, de manso, inclinando-se, examinou-o: dormia profundamente, respirando um hálito quente e azedo.

Bebendo! suspirou ela baixinho, de mãos postas, olhos em alvo, demandando o céu. Bebendo... meu filho, o meu Paulo! E sentou-se, de novo, muito quieta para continuar a dolorosa vigília, perseguida pelas reminiscências, falenas tristes da noite velha do passado que esvoaçavam em torno de sua alma. Já o via rapaz e a ela menina: ele concluindo os preparatórios, ela fazendo os primeiros bordados.

Noites tranqüilas para sempre perdidas quando, na sala de jantar, em volta da mesa, à luz de um lampião de querosene, na casa da Rua Haddock Lobo, Paulo estudava os seus verbos, Violante vestia as suas bonecas e ela, ao lado do marido, gozando aquela delícia honesta, ponteava, cerzia uma roupa ou discorria sobre as necessidades da casa, lembrando compras indispensáveis. Fora, no quintal, havia um jasmineiro, que avassalava o muro e perfumava a casa.

"Uhum! não..." regougou o rapaz voltando-se torcicolosamente e, como o seu rosto ficasse em plena claridade, Dona Júlia afastou a vela, pôs-lhe diante um livro como alparluz para que a sombra lhe protegesse o sono. Paulo pôs-se a mastigar, com estalidos secos e ela, sempre receosa, inclinava-se, d'olhos franzidos, acompanhando, vigiando aquele pesado torpor.

A chama da vela crescia, por vezes, e sombras dançavam na parede macabramente. Havia um roque-roque na sala próxima, um rato a roer e era o ruído único dentro da noite, porque as próprias máquinas viageiras dormiam, repousando das céleres corridas pelos campos largos, pelas serras ásperas.

Outras idéias surgiram no espírito atribulado da miseranda:

Onde andaria Violante? Pobrezinha! talvez sofresse num canto obscuro, guardada pelo homem perverso que a havia seduzido. Ah! sim, devia estar bem escondida para que a polícia, trabalhando como trabalhava, não lhe houvesse podido ainda descobrir o paradeiro.

E se houvesse sido assassinada? Lembrou-se de certa notícia que lera em tempo: o caso de um homem que, depois de haver cevado os seus desejos lúbricos, arrastara a sua vítima, pobre pastora, para uma charneca e a esfaqueara. Teve um arrepio e, d'olhos cravados na parede, ficou a olhar, a olhar...

Uma sombra passou e foi-se adensando, adensando... Círculos iriados dilatavam-se brilhando e desfaziam-se e toda a sua visão ficou reduzida àquelas miragens que, repentinamente, desapareceram.

A porta rangeu: voltou-se assustada e viu o gato entrar maciamente, em passos de arminho, com a cauda hirta. Dando por ela, o animal fez uma volta, corcoveado, esfregou-se-lhe nas pernas, resbunando; depois, fitando-a, com um surdo miado, formou o pulo e saltou-lhe ao colo, como a pedir carinho. Ela acolheu-o, afagou-o passando-lhe a mão pelo dorso flexuoso e macio; o animal, lambendo as patas, deixou-se ficar encolhido e, afundando a cabeça, adormeceu.

O sono chumbava-lhe as pálpebras, ardiam-lhe os olhos e, de quando em quando, a boca se lhe escancarava em largo bocejo ao qual, religiosamente, acudia com o polegar traçando uma cruz.

Mas como havia de o deixar? E se sobreviesse alguma coisa? Estava tão agitado... Foi, então, que se lembrou da enfermidade do filho. Noites de sofrimento e de apreensões: ele abrasado em febre, delirando, ela, sozinha, ainda com o luto pesado do marido, a acompanhá-lo, acudindo com os remédios ou a contar-lhe histórias quando, nas horas de acalmia, ele a chamava para junto do leito, muito humilde, com medo da morte.

Os bocejos amiudavam-se, sentia-se mole, estafada pelo dia de insano trabalho que tivera a desarrumar a casa para a mudança. Pensou em deitar-se no sofá da sala, mas o filho prendia-a. Um galo cantou longe, tristonhamente e, na Estrada, houve um longo chiar de vapor. Eram as viageiras que despertavam para a vida laboriosa. Não tardava a manhã.

Levantou-se lentamente, deixando o gato no chão. O animal corcoveou espreguiçando-se e, vendo que a senhora saía, acompanhou-a em passo sutil. Dona Júlia abriu a janela devagarinho. Uma brisa fresca soprava, o céu estava estrelado e o alvo clarão das lâmpadas da Estrada dava uma ilusão de luar.

Varriam a rua e, numa densa nuvem de pó, uma carroça arrastava-se, moviam-se vultos. "Também agora não vale a pena, disse ela; com pouco mais está aí o dia." E, debruçada, ficou a olhar fundamente, para muito longe, para o tempo d'outrora, o doce tempo!

 

Lá o via todo, feliz e calmo, lá longe, no irregressível. Dois homens passaram em mangas de camisa, fumando; um levava uma picareta ao ombro. 'Meu Deus..." e ficou-se nesta exclamação que resumia todo o seu espanto, porque parecia impossível que padecesse tanto, sendo tão virtuosa e tendo tamanha fé na Providência. "Não! também é demais!" E à janela, só, dentro do seu desespero, cercada pela noite negra e muda, pôs-se a falar gesticulando.

— Uma sai, vai-se embora; o outro, tão bom menino, faz isto, meu Deus... Que tenho feito eu?! Vejo por aí outras mães tão felizes com os seus maridos, com seus filhos... só eu, então, é que hei de ser a desgraçada? Por quê?

Baixou os olhos e viu a rua mais negra como se a noite houvesse recalcado a sombra. Ao longe havia ainda dois pontinhos luminosos, mas esses mesmos desapareceram - um primeiro, outro depois, e a treva ficou absoluta. "Por que, meu Deus?!" Passou o braço pelos olhos e, chorando, bebendo as lágrimas salgadas, ficou a tamborilar na janela, vazia, inconsciente, dolorosa, com os olhos voltados para o céu mudo.

Um silvo sacudiu-a e toda a rua abalou-se, como a um surdo fragor subterrâneo. Era um trem que partia e, como se nele fossem as suas derradeiras esperanças, rompeu a chorar e retirou-se.

No céu branco, madreperolado, estendiam-se os primeiros laivos d'ouro e púrpura, Ouvindo-lhe os passos na sala de jantar atravancada, Felícia levantou-se à pressa e, entreabrindo a porta do corredor, exclamou, surpresa:

— Uê, minh'ama, vosmecê já se levantou, tão cedo?!

— Então, respondeu Dona Júlia, abrindo a janela. Quando há que fazer...

Uma luz baça invadiu a sala, e o ar puro e fresco da manhã circulou. A velha tomou uma toalha e saiu ao quintal para lavar o rosto, enquanto a negra catava gravetos para acender o fogo. O gato ia e vinha, miando, a esfregar-se em Felícia, e o gaturamo pôs-se a cantar contente, vendo a primeira luz do sol no muro verdinhento e ouvindo o estalar das asas dos pombos.