Romancistas Essenciais - Coelho Neto

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From the series: Romancistas Essenciais #11
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— Sim...

— Pois eu estava conversando com meu filho. Ele não me deixa - é de noite, é de dia - está sempre comigo. Como é que eu não tenho medo? A gente estando bem com Deus não deve ter medo. Que é que vosmecê pensa? Eles andam pela casa. Há gente que vê. Eu não vejo, mas ouço: eles falam, eles gemem; às vezes até cantam...

— Está bom, Felícia, vamos deixar isso para amanhã. É tarde; preciso dormir.

— Eu falo mesmo por vosmecê.

Deitou-se e, cobrindo a cabeça, o seu corpo magro e comprido, muito enrolado no lençol, ficou imóvel e hirto como o de uma múmia. Dona Júlia esteve algum tempo d'olhos abertos, a pensar naquele mistério das almas visitadoras. Felícia ressonava e, pouco a pouco, o sono foi-lhe também pesando nas pálpebras. De instante a instante abria os olhos já empanados, logo, porém, os fechava e adormeceu, por fim, cansadamente.

No dia seguinte, muito cedo, Paulo reclamou o almoço: tinha umas voltas a dar na cidade; não podia continuar naquela vida de malandrice, precisava arranjar-se, o meio-soldo que recebiam mal dava para a casa. Dona Júlia concordou, posto que sofresse, compreendendo que ele abandonava Violante. Quando o viu sair meteu-se na cozinha em conversa com a negra, pedindo informações sobre a sociedade espírita: "Se era decente, se iam lá senhoras". Restava-lhe o sobrenatural como última esperança.

O dia correu tristonho, abafadiço, em pesado torpor. O mar, grosso e liso, parecia d'óleo e, para a tarde, acumulando-se o céu de nuvens negras, ela começou a preocupar-se com o filho, tanto, porém, que o viu entrar, respirou desafogada. Paulo estava irritado: ia e vinha pelo corredor a resmungar.

— Que tens?

— Que tenho? A senhora ainda pergunta?! Estou sem nada e tudo causa da senhora minha irmã. Fui dispensado da revisão do Equador, porque não mandei um aviso ao secretário, prevenindo-o da minha falta. É isto! E eu que cave!

A velha, acabrunhada, não disse palavra: ficou a olhar o céu. Relâmpagos luziam, o calor abafava.

— E agora?

— Ah! agora...

— Por que não falas ao compadre?

— Qual compadre! Eu arranjo-me, descanse.

A tormenta desencadeou-se nas primeiras horas da noite. Ríspido o vento batia com as portas, vergava as árvores e o mar arrebentava com fúria de encontro à muralha transbordando, alagando a rua. Paulo recolheu-se ao quarto e abriu um livro. Lia sem entender - eram os olhos que passeavam sobre as letras, o espírito andava longe, ora na estalagem ao lado de Ritinha, ora na revisão do Equador.

Já teriam os rapazes conhecimento da fuga de Violante? Encolheu os ombros com indiferença e, acendendo um cigarro, pôs-se a soprar baforadas para o teto. Ergueu-se revoltado contra a vida e pôs-se a passear pela casa, a conjeturar. Quando se deitou estava animado de esperanças, com grandes planos de trabalho: via-se feliz, independente, com auras propícias de fortuna. O dia amanheceu chuvoso; às nove horas, com um ligeiro almoço, lá saiu o estudante a perseguir o sonho.

Correram dias tristes e vazios. Paulo, inteiramente esquecido da irmã, entregou-se a outros cuidados. Saía cedo, a pretexto de arranjar a vida, voltava para jantar ou entrava tarde, noite alta, sempre a queixar-se da sorte, mal-humorado.

Dona Júlia não descorçoava, posto que a vida se fosse tornando, a mais e mais, apertada e difícil. Aproximava-se o fim do mês e, como o filho ainda não houvesse encontrado colocação, uma manhã a velha foi procurá-lo e, carinhosa, lembrou-lhe que tinha "algumas jóias e umas pratas". Que não se amofinasse, não haviam de viver sempre em dificuldades. Deus havia de ter pena deles. Paulo revoltou-se: "Não! não empenhava jóias. Ela que escrevesse uma carta ao Fábio, ele não fazia favor nenhum. Mais pedira ele ao pai." A velha meneou com a cabeça:

— Não, meu filho; não escrevo. Para quê? Pois não viste que nem mais aqui apareceu para me ver? Falou, prometeu e... até hoje, nada. Não! Que tem? empenhas hoje, tiras amanhã; não é vergonha. Nós não podemos ficar desprevenidos. Não estás procurando emprego? Então... Eu também farei, por meu lado, o que puder. Já agora não penso em Violante... Que Deus tenha pena dela. Não me escreve, não se lembra de mim... paciência, não vou amaldiçoá-la por isso. Leva; não saio, não uso jóias. Que tem? É melhor do que ficarmos aqui sujeitos a alguma coisa. Quando puderes tiras.

Ele recebeu o embrulhinho, deixou-o sobre a mesa, e a boa velha, satisfeita por lhe haver acalmado o espírito, saiu do quarto, sorrindo. Ele desfez o pacotinho e viu um grande broche antigo, de ouro, cravejado de pedras. Não se lembrava daquela jóia, nunca a vira ornando o colo materno. Era uma relíquia do passado, um remanescente dos tempos felizes. Calculou que daria uns quatrocentos mil-réis e, como andava com Mamede em excursões noturnas, de tasca em tasca, de espelunca em espelunca, lembrou-se de tentar a sorte com o que sobrasse do dinheiro, pagas todas as contas.

— É possível que eu não venha jantar, disse ao sair; vou dar uns passos por aí a ver se encontro alguma coisa.

— Não te esqueças da casa.

— Não me esqueço.

— E olha: Eu também talvez saia um pouco com Felícia, à noite.

— A senhora?!

— Sim.

— Onde vai? - perguntou sorrindo, achando um "quê" de cômico naquela resolução da velha.

Dona Júlia hesitou um momento, depois, também sorrindo, disse:

— Vou aí a um lugar... Quero ver se arranjo umas costuras.

— Pois a senhora quer coser para fora?

— Então, meu filho?!

— Ora, mamãe... deixe-se disso. A senhora pode lá com costuras!

— Não te importes. Tenha eu saúde.

— Pois sim... E a chave?

— Isto é que é... Já me lembrei de a deixar à janela, por dentro, com um barbante para se puxar.

— Ou embaixo da porta, lembrou.

— Sim, é melhor. Pois fica assim: deixo embaixo da porta, do lado esquerdo.

— Bem. Até logo.

— Até logo. E Deus te acompanhe.

Paulo saiu com ânsia de chegar à casa de penhores, para conhecer o valor da velha jóia. Dona Júlia foi à cozinha. Felícia estava no quintal, lavando, ao sol, com o cachimbo nos beiços. Chamou-a. A negra levantou o busto, passando as mãos pelos braços, a raspar a espuma que os cobria, e caminhou para a velha, que se encostara a um dos alizares da porta:

— Estou com vontade de ir hoje, Felícia. Pode ser?

— Como não? Mas minh'ama falou a nhonhô?

— Falei.

— Dizendo que ia lá? - exclamou alarmada.

— Estás doida!

— Ahn... E vosmecê há de ver como se descobre tudo. - A fisionomia da negra iluminou-se. - Vosmecê já devia ter ido.

— Não acredito nessas coisas.

— Por que, minh'ama? Então vosmecê não acredita nas almas?

— Não sei. Depois, tenho tanto medo... Tanta gente tem endoidecido por causa dessas histórias.

— Ora o quê, minh'ama!

— Ora o quê?!

— Pois eu sei de muitas pessoas que ficaram sofrendo depois que se meteram com o espiritismo. Enfim, seja o que Deus quiser. Como não faço mal a ninguém, nem vou com más intenções... A que horas começa?

— Às sete e meia. A gente saindo daqui às sete, chega lá com tempo.

— Pois sim.

X

Era noite fechada. Na sombra vasta do mar fogos piscavam e, longe, fulgiam as luzes litorâneas de Niterói, como pedras de um adereço em escrínio. Dona Júlia, enquanto a negra fechava portas e janelas, com os cotovelos na cômoda, a face inclinada sobre as mãos postas, rezava. Quando Felícia apareceu, traçando o xale, persignou-se e soprou a lamparina. A luz de um fósforo, foram as duas seguindo vagarosamente pelo corredor escuro.

O céu estava negro e pesado e um vento frio soprava do mar. Felícia fechou a porta e, cautelosamente, raspando a soleira, escondeu a chave no lugar convencionado.

— Vamos, minh'ama.

Foram caminhando. A negra ia orgulhosa da conquista que fizera, já imaginando as perguntas com que a haviam de assaltar no Centro, quando a vissem entrar com uma senhora respeitável. Sentia-se superior com aquela glória de iniciadora e, sôfrega, bem que Dona Júlia não pudesse sair do passo vagaroso, apressava-a: "Que já era tarde. Podiam encontrar a sessão no meio". E a velha, de cabeça baixa, sondando o terreno com o guarda-chuva, lá ia.

— Mais devagar, Felícia; eu não vejo bem e a noite está tão escura. Não há um bonde para lá? Eu a pé não agüento.

— Há bonde, sim senhora: ali no largo.

— Sim, porque eu já não sei andar; depois com a falta de vista, está sempre me parecendo que vou cair num buraco. - De repente, como ia pensando na sessão, cochichou: Não vá aparecer por lá algum conhecido. Deus me livre que Paulo saiba que ando metida nessas coisas.

— Não tenha medo, minh'ama: eu conheço todo o mundo que vai lá.

No Largo da Lapa, diante dos tílburis estacionados junto à igreja, Dona Júlia teve um sobressalto, aconchegando-se à Felícia.

— Não vá um desses cavalos disparar, rapariga.

— Não tem perigo, minh'ama. Que medo de vosmecê. Vamos por aqui.

Mas um bonde partia, e a negra, esquecendo a senhora, precipitou-se, a correr, com o xale a espadanar, aos psius! A velha fez um esforço supremo e foi levando o pesado corpo aos rebolos, arquejando e, ao alcançar o bonde, com as pernas trêmulas, ofegante, agarrou-se aos balaústres, guindando-se.

— Você foi correr, Felícia... sabendo que eu não posso - repreendeu esbaforida. - Estou aqui pondo a alma pela boca.

O bonde partiu.

A velha encolhia-se, receosa; mal olhava para os lados, indiferente às casas que fulguravam, profusamente iluminadas, com refletores radiantes; às músicas, que ressoavam em tarambotes; à multidão que formigava às portas dos chopes, como nuvens de mariposas em torno de claridades. Aterrava-a a idéia de um encontro com o filho e, quando a negra mandou parar o bonde em frente ao teatro São Pedro, teve um choque e perguntou baixinho:

 

— É aqui?

— É ali adiante.

Atravessaram a praça em direção à Travessa da Barreira. Na esquina, junto a um quiosque, marinheiros chalravam. Entraram em uma viela escura e, diante duma porta estreita, Felícia deteve-se segredando com mistério:

— É aqui, minh'ama...

Dona Júlia sentiu um grande abalo, as pernas curvaram-se-lhe e, hesitante, lançando os olhos pela comprida escada, sussurrou:

— Não sei que é, Felícia... mas estou com medo.

— Medo de que, minh'ama? Aqui não há nada que meta medo, é uma casa santa, vosmecê vai ver Nosso Senhor lá dentro. Vosmecê tem medo de entrar na igreja?

— Ah! na igreja...

— Pois isto aqui é como uma igreja - a gente reza e ouve os conselhos do irmão.

Um homem magro passou por elas encolhido, sem voltar o rosto e foi-se vagarosamente, escada acima, a tossir.

— Quando me lembro de Dona Amélia...

— Então vosmecê pensa que Dona Amélia ficou maluca por causa do espiritismo? Ela nunca veio aqui, isso eu juro a vosmecê; nunca veio. Pode ser que em outros lugares haja falta de respeito, aqui não. Mas vamos, minh'ama. Não sei que parece a gente aqui parada, feito duas tolas. Minh'ama experimenta; se não gostar não volta e está acabado.

— Pois sim.

Entraram. Dona Júlia, com as mãos geladas, o peito oprimido, subia lentamente. Em cima, suspirando, cansada, lançou os olhos pela sala vasta e sombria, escassamente alumiada por dois amortecidos bicos de gás. Junto à escada havia uma caixa de esmolas e ela procurava dinheiro no bolso fundo do vestido, quando a negra chamou-a para apresentá-la a um crioulo que estava de sentinela a um grande livro aberto sobre uma mesinha.

— Minh'ama, seu Damião.

O crioulo inclinou-se, estendendo a mão áspera e suada e, mostrando o livro, pediu: que assinasse. Trêmula e receando que, mais tarde, algum conhecido descobrisse ali a sua assinatura, escreveu simplesmente "Júlia" em letras tortuosas, mas o crioulo insinuou sorrindo:

— É o nome todo, minha senhora.

Tomou de novo a pena e completou a assinatura.

Logo o crioulo apresentou-lhe uma folha de papel implorando alguma coisa para o irmão Norberto, "que continuava enfermo, cercado e filhos". Ela deu-lhe uma nota, limitando-se a escrever na lista: Uma cristã. Felícia adiantou-se.

— Vamos, minh'ama. - Dona Júlia dirigia-se para a frente da sala quando a negra a deteve: É por aqui. Lá é para os homens.

Renques de cadeiras ocupavam todo o recinto abrindo uma estreita passagem central. As primeiras filas eram exclusivamente destinadas às mulheres. Dona Júlia sentou-se junto duma negra magra, de trunfa, que cabeceava com uma garrafa ao colo. Da sombra triste e calada rompia, de quando em quando, uma tosse rouca.

A sala não tinha outro ornamento senão as estrelas de ouro no papel azul que a forrava, dando-lhe aspecto celestial. Ao meio do teto havia um embrechado de madeira como um imenso ralo, braços de gás pendiam de ponto em ponto. Duas portas ao fundo - a da esquerda fechada, a da direita aberta sobre escuro corredor. Estantes carregadas de livros ladeavam a grande mesa pousada sobre um estrado. Acima duma das estantes inclinava-se um quadro preto com a imagem de Cristo agonizante e, justamente por trás da mesa, na parede constelada, brilhava, em caixilho d'ouro, a legenda:

Fora da caridade

não há

salvação.

Mais adiante, em moldura esguia, o aviso: "É proibido fumar." Felícia, vendo que Dona Júlia andava atentamente com os olhos de um para outro lado, disse-lhe baixinho:

— Então? Vosmecê estava com tanto medo... e agora? Não é uma casa séria? Eu sei que muitos falam daqui, mas é de inveja, minh'ama. Vosmecê não imagina como a gente sai consolada desta casa.

A velha conservava-se calada, olhando sempre, examinando todos cantos. Passos soavam na escada, depois um toc-toc como de muletas que viessem batendo pelos degraus. Duas negras entraram, falando com intimidade ao crioulo da porta. Uma trazia uma criança pela mão e outra ao colo, tossindo, com a cabeça deitada sobre o seu ombro, em prostração doentia. Depois apareceu uma cabrocha magrinha, enfezada, com a pele toda em rugas, os olhos miúdos como vidrilhos, brilhando sinistramente no fundo das órbitas, muito corcovada, abordoando-se a uma bengala. E, pouco a pouco, a sala se foi enchendo - as mulheres tomavam os lugares reservados, iam os homens para as últimas cadeiras ou para as janelas.

Dona Júlia começava a impacientar-se, quando surgiu do corredor escuro, em mangas de camisa, arrastando chinelas, um mulato arremangado. Logo ao entrar na sala, reconhecendo uma das negras, estendeu-lhe a mão, muito alegre, detendo-se a conversar, mas passou adiante, afagando uma criancinha que choramigava. Por fim, levantando a cabeça, bradou com autoridade:

— Estamos na hora!

Os que entravam caminhavam em pontas de pés, sentando-se cautelosamente. Três marinheiros apareceram ao alto da escada, olharam, e já se dirigiam para as primeiras filas, quando o mulato falou: "Não, lá pra baixo, patrícios. Aqui é das senhoras." O mulato olhava insistentemente para Dona Júlia. Felícia chamou-o: ele adiantou-se risonho.

— Esta é minh'ama que vem fazer uma consulta.

Dona Júlia baixou os olhos, vexada, temendo que a negra falasse do seu tormento, contando a um estranho as angústias que lhe alanceavam o coração. Mas a um psiu, vindo do fundo corredor, o mulato voltou-se.

Na moldura de trevas, como essas figuras ebúrneas da arte bizarra dos japões, coladas sobre cetim negro, apareceu uma mocinha pálida, magrinha, de cabelos ruivos despenteados. O mulato acudiu-lhe ao chamado, cochicharam e, logo em seguida, ele subiu ao estrado e acendeu os dois bicos de gás que iluminaram a mesa. Houve um sussurro na sala abafada - cadeiras arrastadas, pigarros; uma criança pôs-se a chorar.

Da rua entraram na sala taciturna as rajadas alegres de um dobrado. Um dos marinheiros foi à janela, outro seguiu-o, mas a música perdia-se, morria na distância, como levada pelo vento, e o silêncio recaiu. Dona Júlia, vendo o movimento dos assistentes, compreendeu que se iam passar coisas estranhas, e chegou-se muito à Felícia, numa necessidade de proteção. Cortava apenas o silêncio uma tosse intermitente que vinha de um canto.

Súbito, rompendo da treva do corredor, um homem apareceu, ligeiro, irrequieto, com o lenço em volta do pescoço. Subiu logo para o estrado, sentou-se à mesa e disse: "Deus esteja convosco". Um murmúrio correu pela sala, como a passagem do vento nas árvores. Uma mocinha, que ocupava uma das primeiras cadeiras, a cabeça pendida sobre o colo magro, estremeceu violentamente, com um suspiro entrecortado, e a cabrocha, persignando-se, deixou cair o cajado, com estrépito; todos voltaram-se, como assombrados.

O menor incidente para aquele bando passivo assumia o caráter de uma revelação superior; de tudo tiravam presságios, descobrindo nos mais ligeiros e insignificantes ruídos - o sussurro da chama do gás que o vento vergava, uma folha de papel que voava, o rangido de uma porta, influências misteriosas de espíritos visitadores. O homem, todo de preto, com uma barba curta, olhinhos miúdos, profundamente encovados, vivíssimos, o cabelo escorrido, empastado na testa, com o cotovelo fincado na mesa, a fronte apoiada na palma da mão, folheava atentamente um livro.

Um dobre de sino rolou longamente. Alguém suspirou com sofrimento: "Ai! meu Deus". Cabeças voltaram-se, curiosas daquela mágoa e o infeliz, um velho esquelético, de grandes barbas amarelecidas, pendeu a cabeça sobre o peito, como a um peso grande e insuportável.

Lentamente o homem pôs-se a ler uma passagem evangélica. As palavras saíam-lhe da boca engroladas, quase ininteligíveis; por vezes eram como um murmúrio, e todos tinham os olhos nele, imóveis, extáticos. Uma criança rompeu em pranto e, como se quisesse aproveitar aquele rumor, que interrompia a pregação, o enfermo, encantoado, pôs-se a tossir cavernosamente.

Em passos surdos um homem atravessou a sala - os sapatos gastos, sem salto, não faziam rumor. Velho, calvo, com uma barba rala emoldurando a face lívida, seguiu direito para a mesa, abanando-se ligeiramente com um leque. O que lia ergueu-se e, cedendo-lhe o lugar, pôs-se de pé, fechou o livro e entrou a falar da Piedade:

"O espírita não tem o direito de matar, mesmo em legítima defesa não deve levantar mão criminosa contra o seu semelhante. Se algum dia um de vós, meus irmãos, for atacado por um homem cuja razão obscurecida o leve ao crime, em vez de responder ao fogo com o fogo, ao ferro com o ferro, deve procurar chamar o transviado ao bom caminho com palavras virtuosas e, se não conseguir convencê-lo, é preferível deixar-se matar a cometer o crime nefando de assassínio, porque, na outra vida, esse ato de piedade cristã será premiado largamente por Deus.

"Os espíritos sofrem nas reencarnações. Eu, por exemplo, meus irmãos, fui Pedro Arbues, o grande inquisidor. E hoje, por que sofro tanto a calúnia, a ameaça de morte, as dores físicas, as provações morais? Pelo que faço nesta vida de agora? Não, porque, iluminado pela claridade divina, o meu espírito segue pelo caminho direito da Verdade.

"Sofro pelo que fiz na primeira encarnação; sofro porque fui surdo aos lamentos dos infelizes que eram levados às fogueiras; sofro porque não dei atenção aos gritos dos pobrezinhos, aos gemidos das crianças, aos soluços dos inocentes.

"E vede: Pedro Arbues, que foi um rancoroso, é santo, teve a canonização, a Igreja deu-lhe um lugar honroso no coro de Deus e eu padeço por ser justo, sofro vexames e tormentos porque não me desvio da virtude.

"Não julgueis, porém, que me revolto - resigno-me e bendigo todos os sofrimentos, que são a expiação de antigas culpas. Terei a recompensa quando deixar esta carne efêmera para residir, em puro espírito, à direita do Eterno. Nunca penseis em vingança, meus irmãos!" - exclamou fanhosamente.

O velho, d'olhos fechados, repoltreado na cadeira da presidência, abanava-se ligeiramente, como os acrobatas japoneses, virando, revirando a cabeça. O outro continuou: "Os nossos padecimentos são insignificantes em relação aos nossos crimes. Ainda penando devemos ser gratos à misericórdia divina". Dona Júlia acenou afirmativamente com a cabeça. "Quando virdes um homem torturado, lastimai-o, mas não o julgueis vitima de uma injustiça de Deus, não! Ele buscou, com atos, aquelas dores; ele mesmo abriu as feridas em seu corpo e preparou a ruína da sua casa. Os julgamentos de Deus são retos e inexoráveis."

Limpou o suor da fronte, depois, atirando o lenço à mesa, disse, inspirado, cravando os olhos em Dona Júlia:

"Não vos revolteis contra Deus. Por que duvidais do seu poder? Por que blasfemais? Por que o vosso filho, desvairado pelas paixões, desprezou o vosso carinho, enveredando, alucinadamente, pelo caminho do vício? Confiai na Providência e a ovelha tornará ao redil, trazida pelo arrependimento."

Dona Júlia estremeceu na cadeira e chegou-se mais à Felícia, com os olhos imensamente abertos, a boca em hiato, trêmula e fria. Era justamente a história lamentável da sua vida que aquele homem denunciava; era a sua chaga que ele esvurmava, expondo-a aos olhos de todos e ela, humilhada, envergonhada e medrosa, repuxava o xale da negra, chamando-a em voz surda:

— Felícia... Felícia. - A negra inclinou a cabeça para ouvi-la: Ele sabe?

— Como não, minh'ama!?

— Foste tu que lhe disseste.

A negra mirou-a sem dizer palavra. Mas o homem continuava pregando a misericórdia, mostrando Jesus a perdoar as ofensas, até quando as lanças se lhe embebiam nas carnes. Dona Júlia não ouvia, preocupada com as palavras misteriosas que ele pronunciara, tão de feição à sua angústia e foi preciso que Felícia a chamasse para que ela saísse do êxtase doloroso e desse atenção ao pregador:

"Meus irmãos, concentremo-nos para que os nossos bons fluidos se convertam em medicina, preparando a água que deve curar os enfermos.

Uma velha ajoelhou-se e, d'olhos no teto, mãos postas, estatelou-se em ascese; e o homem pôs-se a dizer a prece lentamente, com o surdo e arquejado acompanhamento de toda a devota assembléia.

"Imploramos aos Bons Espíritos e aos nossos Anjos da Guarda, em nome de Deus, nosso Bom Pai de Amor, para envolver-nos com os seus fluidos salutares, a fim de transmiti-los a esta água, que será medicamento, porque servirá de veículo aos nossos bons fluidos. Desejamos, antes dos curativos dos nossos corpos, curar os espíritos, arrancando de nós o ódio, o crime, o orgulhoso egoísmo, que são enfermidades d'alma, piores que todos os sofrimentos da vida terrestre. Bom Pai, nós queremos nos regenerar e, animados pela fé ardente no vosso divino amor e pela certeza inabalável na vida futura, pedimos a proteção dos Espíritos Elevados, nossos filhos e nossos irmãos amados, em vosso santo nome, para que se faça em nós, sempre, a vossa santa vontade."

 

Terminada a prece, persignaram-se todos, com um murmúrio devoto, e o homem declarou:

'Que os doentes podiam ir encher as suas garrafas."

Produziu-se sôfrego alvoroço. As mulheres tiravam garrafas debaixo nos xales, desembrulhavam-nas e lá iam, aos apertões, arrastadamente, em direção à pia, cuja torneira jorrava gorgolejando.

Era a água santa, impregnada de fluidos espirituais, benzida pelos anjos de Deus, e aqueles que a recebiam veneradamente saíam consolados. Uns bebiam ávidos, não por sede, mas porque sofriam e logo, aliviados, como se os bálsamos angélicos houvessem operado instantaneamente, retiravam-se fazendo lugar aos que chegavam. E interrogavam-se sobre as melhoras: se já caminhavam com mais segurança; se viam melhor; se as dores haviam abrandado.

Um velho meteu-se a um canto com a sua garrafa e, despejando a água no côncavo da mão, pôs-se a banhar os olhos, e a negra, despertando a criança enferma, chegou-lhe à boca seca um copo d'água, que a pobrezinha sorveu com sofreguidão, aos grandes goles, arquejando. O homem da prédica, enquanto os crentes cercavam a pia, dirigiu-se a Dona Júlia. A velha, profundamente abalada por aquele espetáculo estranho, só deu pelo apóstolo da santa missão quando Felícia chamou-a:

— Minh'ama.

Voltou-se e, vendo o homem, muito trêfego, a agitar-se diante dela, com os olhinhos vivos e lampejantes cheios de malícia, sentiu um arrepio, mas passivamente, dominada, encolheu-se cruzando os braços.

— É a primeira vez que vem aqui, minha senhora?

— Sim senhor.

— É a senhora de quem eu falei a vosmecê: minh'ama - disse Felícia com um sorriso servil.

O homem acenou afirmativamente com a cabeça e, como a velha cabrocha se aproximasse, batendo com o cajado, chamou-a e, apresentando-a, disse:

— Olhe, minha senhora, esta criatura que aqui está demonstra, à evidência, a verdade da nossa crença. Eu sei que por aí assoalham que vivemos a explorar a ignorância dos ingênuos, entretanto, quando apresentamos provas, riem com ironia porque não podem refutar a verdade dos fatos. Aqui está uma. - Dirigindo-se, então, à cabrocha, perguntou: Para que é que você vem buscar esta água?

A interpelada, como se não quisesse confessar a sua crença em presença de uma estranha, respondeu secamente:

— Porque venho!

— E porque tem sentido melhoras, não?

— Apois... se eu não sentisse não vinha.

Mas a língua desatou-se-lhe, gárrula, e contou toda a história da sua moléstia: Três meses entrevada numa cama, gemendo, sem uma ora de alívio, até que uma conhecida lhe deu uma garrafa daquela água. Foi pronto beber que logo começou a melhorar, como por milagre. Ao cabo de quinze dias estava outra: andando, trabalhando. Mostrou a garrafa e, avaramente, guardou-a, de novo, debaixo do xale roto.

— Eu também não acreditava, minha dona, nem queria saber dessas coisas, mas vi! Não foi coisa contada, foi comigo. Estou assim. - Levantou a saia e mostrou o pé hediondamente deformado pela elefantíase, uma perna monstruosa, com a carne grossa, engelhada em dobras encoscoradas, coberta de cicatrizes.

Dona Júlia olhava, quando uma mocinha parou diante dela, com uma sacola, esmolando para os pobres. Felícia atirou umas moedas, por ela e pela ama e o homem chamou a crioula que ninava a filha enferma.

— Então: como vai ela?

— Parece que agora vai um pouquinho melhor, com a graça de Deus.

— É outro caso, - explicou o apóstolo. - Esta criança não dormia, com a coqueluche, estava inchada e, com cinco dias de tratamento... Cinco dias, não?

— Cinco, sim, senhor; uma colherinha d'água no café.

— Está melhorando. E dorme bem, não?

— Ainda tosse, mas não tanto como tossia.

— Vê? - Dona Júlia concordou. - E seu marido?

A cabrocha encolheu os ombros.

— Esse é que está no mesmo, coitado!

— Mas... - e coçando o queixo com frenesi: tem feito o que eu disse?

— Tenho sim, senhor.

— E donde vem essa água? perguntou Dona Júlia.

— Da caixa; é água da caixa, mas impregnada de fluidos superiores.

— E cura?

— A senhora não está ouvindo?

O mulato, porém, chamou-o, e os dois ficaram cochichando. Mas o apóstolo mostrava impaciência e logo tornou à velha:

— A senhora deve hoje experimentar a sessão íntima. Nós, aqui fora, não trabalhamos, oramos apenas; para os trabalhos superiores temos outra sala. Para a senhora entrar basta que se filie a um dos grupos que constituem a Confederação. Paga a mensalidade e recebe um cartão permanente, podendo vir todas as noites concorrer para a grande obra santa da regeneração da Humanidade. É a primeira vez que assiste a uma sessão?

— É, sim senhor.

— Nunca trabalhou particularmente?

— Não senhor.

— Minh'ama tem medo, - explicou Felícia.

— Medo! - exclamou o homem corcoveando. - Medo de quê? - E, superiormente: Tenha medo dos vivos, minha senhora, que nos impelem ao pecado, concorrendo para a perdição da nossa alma; mas dos puros espíritos, que nos regem, que nos iluminam, que são os nossos conselheiros, desses não deve ter medo porque só baixam ao mundo para fazer bem. - Chegou-se muito à Dona Júlia e continuou, com mistério: Quantas e quantas vezes tem a senhora seguido os bons conselhos de um espírito protetor? Vai praticar um ato e ouve uma voz íntima que lhe aconselha a desistir da idéia, por ser inspiração do Mal. Dizem: é a consciência. Engano, - afirmou, categórico: é o espírito superior que nos guia. Ninguém observa. Os incrédulos procuram explicar tais fatos com razões absurdas. Observe, minha senhora, observe, e há de convencer-se de que a vida na terra é dirigida pelos espíritos que formam as legiões de Deus. Os mortos governam os vivos. Para o verdadeiro espírita a morte não é um motivo de aflição. Por que choram tanto os que vêem sair o enterro de um parente ou de um amigo? porque imaginam que o perdem, não é verdade? Com o espírita não se dá tal; o espírita sabe que os mortos não se ausentam: respondem ao apelo dos que ficaram em penitência na vida e demoram-se com eles, conversando, aconselhando, como se vivos fossem. É uma consolação: a mãe continua a viver com o filho, a esposa continua a sentir a presença do esposo. Há a eterna aliança espiritual. Não há doutrina mais consoladora! - suspirou, com os olhos em alvo.

— Minh'ama entra, assegurou Felícia.

— Pois sim, - concordou resignadamente a velha e, enquanto o homem foi procurar o livro de inscrições, ela interrogou a negra:

— Fala com franqueza: tu contaste o que se deu lá em casa?

— Não contei, minh'ama; toquei nisso uma vez, na rua, mas não disse com quem era. Disse que estava muito triste porque tinha acontecido uma coisa com uma pessoa da minha amizade, mas não disse o nome de vosmecê, nem o de Nhá Violante. Ele sabe tudo, vosmecê pensa?! só vendo. Ele não adivinha, são as almas que contam. Vosmecê ainda não viu nada, com o tempo é que vosmecê há de ver.

O homem acenou à Dona Júlia - estava junto da mesinha, inclinado sobre um livro. Logo que a viúva chegou pôs-se a falar:

— Aqui tem, minha senhora: pode escolher um grupo à vontade: Círculo Espírita Conciliação, Sociedade Espírita Allan Kardec, Grupo Espírita Maria Nazaré...

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