Romancistas Essenciais - Coelho Neto

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From the series: Romancistas Essenciais #11
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— Sabe Deus se já não está arrependida! - suspirou a velha.

— Arrependida! Ela fez tudo com calma, levou todas as jóias.

— Levou!?

— Sim senhora, levou! - A mísera inclinou a cabeça sobre o colo com um suspiro; e Paulo continuou: E ainda a senhora quer desculpá-la. Uma perversa!

— Não fales assim.

— Que é, então? Que lhe faltava aqui? Tinha até demais! Luxo?! - Exclamou curvando-se, com a face contraída, os olhos flamejantes, as mãos espalmadas nas coxas: Ah! Isso não, porque eu não havia de roubar. Isso não! - E pôs-se a passear pelo quarto. Desabafava. A sua cólera contida transbordava e, como na expansão duma válvula há o vapor que se liqüefaz, havia naquela fúria lágrimas disfarçadas; era o pranto que irrompia da cólera e a atitude infeliz de Dona Júlia concorria poderosamente para aquela fraqueza. Tomou, ao acaso, um livro na estante, folheou-o vagamente e, atirando-o à mesa, prorrompeu de novo: Quantas vezes protestei contra aquela mania da janela? Diga! Uma pouca-vergonha. As outras moças chegam à janela, é verdade, mas Violante era desde a manhã até as tantas da noite, todos os dias, até com chuva. Nem sei que parecia. E a senhora? A senhora sempre a defendê-la, porque era moça. Está aí.

— Mas tu queres agora culpar-me, Paulo? Eu podia ver?

— Justamente por isso.

— Ora, meu filho, se ela tinha essa idéia nem que eu ficasse agarrada à sua saia noite e dia havia de levá-la a efeito. Tinha de acontecer e quando Deus quer...

— Deus! Aí vem a senhora com Deus. Pois sim. Eu é que não sei como há de ser agora.

— O quê?

— A minha vida. Tenho o jornal... Da Escola não falo, porque lá não ponho mais os pés.

— Então não te formas?

— Eu? Eu, não! Mas não sei como há de ser. Como poderei cuidar das minhas obrigações tendo de andar por aí à procura de Violante? Não sei.

— Ela há de aparecer. Tenho fé em Deus.

— Vá esperando.

— Por que falas assim?! Nem parece que é tua irmã. Deixa lá, é sina de cada um.

— Ah! É sina de cada um. Pois sim...!

— É, meu filho: é sina de cada um.

Com tais palavras, para evitar as recriminações de Paulo, que não suportava "superstições e crendices", foi-se do quarto, arrastando os passos.

Locomotivas silvavam manobrando, os galos amiudavam nos quintais vizinhos. Era a madrugada. Paulo começou a despir-se, atirando a roupa desordenadamente. As artérias das têmporas latejavam-lhe túrgidas, sentia um grande peso no cérebro. Apagou o gás e, no escuro. sentado à beira da cama, com os pés nus roçando o soalho frio, pôs-se a arrepelar os cabelos e viu, na sombra, vagamente, a cena da fuga: a irmã, de preto, com o embrulho das jóias, a caminhar cautelosa, surdamente e desaparecer diluindo-se como uma névoa.

Deitou-se, cobriu-se, não tinha sono. E pensava: Onde iria? Como encontrá-la? Chegou-se mais à parede e, d'olhos fechados, meditava quando ouviu os arrancados soluços de Dona Júlia no quarto próximo. Pôs-se à escuta e os olhos foram-se-lhe enchendo d'água, uma opressão pesou-lhe no peito como se lho fosse esmagando e, de repente. afundando a cabeça no travesseiro, rompeu a chorar desesperadamente.

III

Eram seis horas da manhã quando acordou em sobressalto, como se houvesse sido violentamente despertado. Sentou-se na cama esfregando os olhos, moído de fadiga e os fatos da véspera afluíram-lhe à memória, nítidos e rápidos. A cena em casa, a caminhada através da noite tormentosa, a subida à polícia, o delegado sonolento. Mas, pensando na mãe, pôs-se de pé, descalço e saiu para a sala, já aberta e em ordem.

Tiniam na rua as campainhas das vacas, trens bufavam rodando pesadamente; às vezes um silvo varava o silêncio. Havia sol. A luz dourada entrava pelas brechas das persianas brilhando no verniz dos móveis e, muito longe, soavam sinos, cometas vibravam.

Ia para a janela, mas recuou pensando nos vizinhos, receoso de alguma pergunta e estava parado, enrolando um cigarro, quando bateram à porta: era o lixeiro. Abriu; o homem passou às pressas, meio curvado, murmurando "Bom dia" e foi-se pelo corredor, com o balde à cabeça. Ele deixou-se estar, indo e vindo na sala estreita, até que o lixeiro tornou, sempre apressado, e saiu. Pareceu-lhe tê-lo visto sorrir, um sorriso irônico de quem se regozija com o sofrimento alheio. Teria ele sabido? Encostou-se à rótula olhando pelas rexas - o homem, trepado a uma das rodas da carroça, despejou o balde e dobrou a tampa que bateu com estrépito, saltou à calçada, deu volta, a correr, e, tomando as rédeas, incitou o animal que arrancou.

Na rua havia ainda grandes poças d'água, posto que os paralelepípedos, já enxutos, aparecessem muito brancos, lavados. O céu, limpidamente azul, resplandecia com um brilho de seda; subiam tufos de fumo das locomotivas, grossos, em rolos muito brancos, aos jatos, como flocos que se iam esgarçando, diluindo-se no ar.

Irresoluto, tão alquebrado d'alma como de corpo, com o desânimo, que é a fadiga moral, onde parava deixava-se ficar inerte, d'olhos imóveis, abandonado. Idéias contrárias debatiam-se-lhe no espírito, sentimentos diversos disputavam: ora o ódio irritava-lhe os nervos, ora a piedade umedecia-lhe os olhos.

Cabisbaixo, lentamente, com as mãos para as costas, seguiu pelo corredor e, na sala de jantar, levantando a cabeça, viu, com surpresa, a mãe parada à ponta do quarto de Violante, a chorar em silêncio, como se já não tivesse gemidos. Não lhe deu palavra; deixou-se cair em uma cadeira e ficou-se a olhar, absorto. Felícia trouxe-lhe o café e ele, distraído, pôs-se a mexê-lo vagarosamente.

Ouvindo bater à porta voltou-se ligeiro e disse à negra: que fosse ver, devia ser o caixeiro. Que lhe falasse lá mesmo, não queria ninguém em casa. A negra seguiu pelo corredor enrolando a trunfa em volta da carapinha grisalha e dura. Dona Júlia, sentando-se, disse, com uma doce expressão de ternura:

— Ela não levou as jóias, Paulo,- foi só com os brincos e com o anel que usava sempre.

— Como não levou?!

— Não, estão aqui; - e mostrou uma caixa verde, que fora de sabonetes, explicando:

— Estavam no guarda-vestidos. Nem as jóias, nem a roupa: está tudo aí. - Paulo conservou-se calado, d'olhos baixos, raspando o soalho com os pés. - Vais à polícia outra vez, não?

— Para quê?

A velha encarou-o boquiaberta.

— Como? Pois não vais?

— Eu, não. Que vou lá fazer? Para o homem dizer-me de novo: Que vai ver? Eu não.

— Mas, meu filho, se a polícia não fizer alguma coisa, quem poderá fazer? Queres que tua irmã fique para aí, atirada no mundo, sem uma pessoa que tome as dores por ela? Se não queres ir eu vou e tenho certeza de que hei de conseguir alguma coisa.

Felícia tornou à sala com os jornais que recebera do entregador. Paulo, em dois goles, sorveu o café morno e, cruzando as pemas, tomou as folhas que a negra deixara sobre a mesa. Lançou os olhos, com ânsia, à primeira página, percorrendo todas as colunas, à procura da notícia da fuga de Violante. Bem podia algum repórter ter aparecido na polícia depois da sua saída levando a informação escandalosa. Tranqüilizou-se, porém, lembrando-se da hora adiantada em que se dera o crime - já todos os jornais deviam estar prontos e nem tão importante era o caso para que o plantonista se arriscasse, por ele, a perder o correio.

Mais calmo, acendendo o cigarro, pôs-se a ler o Equador, achando aqui, ali, notícias que revisara: um desastre no mar, uma tentativa de suicídio e o conto de Aurélio Mendes, ao alto da primeira página, enchendo densamente as duas primeiras colunas.

Com o jornal diante dos olhos pensava nos companheiros. Que diriam eles quando a notícia, saindo da composição, lhes chegasse às mãos? O Brites conhecia Violante, e o Bruno, que a vira, uma vez, na redação, numa terça-feira gorda, ficara impressionado pelos seus olhos "que ardiam" - Que diriam eles quando lessem a prova infame? E, como se já sentisse a vergonha que lhe estava reservada, passou a mão pela fronte, depois, atirando um murro à mesa, ergueu-se: "Não! Não volto!" exclamou respondendo a um pensamento. Dona Júlia levantou os olhos marejados encarando-o em silêncio. "Não volto!" repetiu debruçando-se à janela que abria sobre o quintalejo. Lá estavam os caixotes com violetas e malvas, à sombra do muro. Eram os canteiros de Violante.

Ao fundo, num cercado de ripas, as galinhas cacarejavam assanhadas, com fome. Um gato caminhava lentamente pelo muro, ao sol e, entre as folhas miúdas duma esponjeira, uma camaxirra chilreava trêfega, na alegria da luz, entre o brilho das gotas da chuva, engastadas nas folhas.

Paulo, com o rosto nas mãos, os cotovelos no beiral da janela, elevou o olhar pensativo. De vez em vez sacudia a cabeça com um sorriso magoado. Amofinava-o aquela idéia dum possível comentário dos companheiros na sala da revisão, perto dele: o Bruno, sensual, a invejar o homem que arrebatara Violante; o Amaro, com quem tivera uma rusga, a rejubilar vingativo; o Malheiros a rir, com a sua eterna ironia, e os compositores, até o Lúcio, retranca, toda aquela gente a espetá-lo com olhares perversos ou curiosos. Talvez mesmo algum, mais ousado, lhe pedisse pormenores oferecendo-se para ajudá-lo na pesquisa ou com um empenho para o chefe, não porque o quisesse auxiliar, em desinteressada camaradagem, mas para entranhar-se no escândalo, conhecer as minúcias, todos os pequeninos incidentes. "Não! Não volto!" E encolheu os ombros.

Não eram somente os revisores do Equador, toda aquela multidão promíscua do jornal que lhe aparecia, inclemente, a rir, num surdo remoque: eram os estudantes, seus colegas da Escola, troçando o caso em volta do tabuleiro da Sabina, nos anfiteatros, nos corredores, até diante das mesas de dissecção.

 

Nas ruas também, quando passasse, haviam de mostrá-lo: "É aquele!" E ririam, com escárnio, da sua desonra; talvez o responsabilizassem por ela. Fariam dele um carrasco e da irmã uma vítima - que fugira para evitar tormentos, que se libertara do verdugo, preferindo as misérias do meretrício à vida humilhada e torturada. E ele, inocente, seguia, vexado, sob a dureza daqueles olhares que lhe infligiam um injusto castigo. Teve um novo movimento de cólera e Dona Júlia, que o olhava, perguntou:

— Que é?

Encolheu os ombros, deixando a janela e, molemente, abandonadamente, encostou-se à mesa brincando com a colher que ficara na salva de metal. De repente, numa inspiração, exclamou:

— Vou procurar o Mamede.

— Mamede?! Para quê? perguntou a mãe.

— Para descobrir Violante.

— E Mamede sabe, meu filho!?

— Mamede? Mamede conhece toda a cidade, é íntimo dessa gente da polícia. Se com ele eu não descobrir Violante, então... - esticou o beiço, desanimado. - A senhora bem sabe que ele foi agente de polícia, era um dos melhores; saiu por causa do gênio.

— E sabes onde ele mora?

— Mora em uma estalagem, na Rua do Riachuelo. Vou já. Hoje é domingo; ele deve estar em casa.

— Então, vai. E a polícia?

— Qual polícia! Penso lá em polícia!? Descanse. - Deu alguns passos e voltou-se: Olhe, se eu tivesse dinheiro ainda bem, mas assim...

E caminhou para a cozinha. Felícia talhava a carne sobre a mesa encardida e acumulada; o gato miava, fazendo voltas, com a cauda hirta e, numa gaiola, o gaturamo gorjeava, pulando, todo arrufado e úmido do banho. Paulo saiu ao quintal e, descalço como estava, foi seguindo direito ao banheiro. Felícia, vendo-o passar, correu com um par de tamancos e uma toalha felpuda:

— Olhe, nhonhô.

Ele tomou os tamancos, atirou a toalha ao ombro e empurrou a porta do banheiro sombrio e úmido. Despiu-se e, nu, passeando, a esfregar o peito, d'olhos no chão, esteve algum tempo a pensar.

Na vizinhança, uma voz de mulher cantava; estalavam roupas batidas e, de instante a instante, eram berros de locomotivas que chegavam, que partiam, arrastando comboios. Ficou debaixo do chuveiro, hesitante, com frio; esteve um momento parado a olhar o crivo que pingava, depois uma aranha, que se balançava na teia, a um canto, junto à caixa d'água; por fim, resoluto, puxou a corrente e a água jorrou copiosa. Refrescado, saltou para a tábua e, envolvendo-se na toalha, pôs-se a esfregar-se. Vestiu-se, calçou os tamancos e saiu.

Passando pela cozinha recomendou à Felícia que lhe arranjasse qualquer coisa para almoçar: um bife e ovos - e, apressado, fechou-se no quarto para vestir-se. As botinas estavam encharcadas; tomou uns sapatos amarelos e surpreendeu-se a assobiar, esquecido da agonia que lhe toldava a vida, dantes tão calma e feliz naquela casinha alegre. Vestido, mirou-se rapidamente ao espelho, compôs a gravata e passou à sala de jantar.

Felícia estendera a toalha e já o prato o esperava. Sentou-se; e arrastando uma cadeira para junto dele, ficou a enrolar uma ponta da toalha, suspirando a espaços. Quando a negra apareceu com o bife e os ovos ainda rechinando na frigideira, Paulo partiu o pão e pôs-se a comer às pressas, sem levantar os olhos. Cigarras chiavam nas árvores vizinhas e na rua um vendedor de frutas prolongava um pregão monótono.

— Que vais dizer ao Mamede?

— A verdade.

— Que ela fugiu de casa?

— Então?

Calou-se, pensativa. e tornou por fim, receosa:

— Não sei. Eu, por mim, não dizia. Mamede, com aquele vicio...

— Ora, vício. Mamãe há de ver.

— Enfim...

— A senhora pensa que a polícia é uma coisa e ela é outra. Olhe o Alves.

— Que Alves?

— Um colega meu. Um copeiro levou-lhe de casa todas as jóias da mãe e das irmãs e depois? O Alves fez tudo e, até hoje, não conseguiu da polícia outra resposta senão: "Que os agentes estão na pista do gatuno!" Vai já para um ano, e o Alves tem dinheiro para gastar. A senhora pensa que é só chegar lá e pedir? Pois sim! Vou arranjar-me com o Mamede. Se hei de gastar com um desconhecido, gasto com ele, que é amigo, e com mais probabilidade de êxito, porque Mamede pode ser tudo, mas estima-nos.

— Isso é verdade, concordou Dona Júlia, ajuntando: e tem obrigação. Seria um ingrato se não nos estimasse.

A palestra foi-se tornando calma entre mãe e filho, como se houvessem esquecido o desgosto. Dona Júlia chegou a notar que um dos punhos do filho tinha uma mancha de ferro e propôs substituí-lo.

— Não, serve este mesmo, - disse ele levantando-se e batendo forte com os pés para ajeitar os sapatos. Ainda mastigando, recebeu de Felícia a xícara de café; tomou-o em três goles e, dirigindo-se a Dona Júlia, disse-lhe: E agora não fique para aí chorando: almoce descansada. Eu vou ver. Tenho esperança de conseguir alguma coisa com o Mamede.

Tomou o chapéu, mas Dona Júlia adiantou-se com a escova.

— Espera um pouco, não vás assim! - e pôs-se a escová-lo vagarosamente.

— Lembre-se de sua saúde; a senhora anda doente. Eu estou aqui. Não vá agora amofinar-se por uma ingrata, que nem é digna da sua amizade. Eu, palavra de honra, se não fosse pela senhora, nem me abalava - que se arranjasse. - Dona Júlia curvara-se para escovar-lhe as calças.

— Isso não! É minha filha, é tua irmã!

— Pois sim...

— É teu sangue.

— Meu sangue, não! - negou indignado. - Não, que eu trabalho, faço pela vida. não ando a embonecar-me. Mas ela há de ver o bonito... - Oh!

— Não fales assim, Paulo! Deixa-a. Deus é grande! - E passando-lhe a mão pelas costas, para tirar um fiapo que esvoaçava repetiu: Deus é grande e é pai.

Paulo tomou a bengala e partiu.

— Deus te acompanhe! murmurou a velha.

Ele esteve um momento indeciso, a pensar nos vizinhos, imaginando uma resposta para os que lhe perguntassem pela irmã, mas resolvendo-se, abriu a porta e saiu, de cabeça baixa, como preocupado, para evitar os cumprimentos.

A cidade, depois da noite de chuva, muito arejada e lavada, tinha um aspecto asseado e agradável. O sol tépido brilhava num puro azul e, pelos telhados vermelhos do casario, aqui, ali, clarabóias dardejavam ofuscantes. Um realejo melancólico resmoneava ao longe. Paulo atravessou a rua sem voltar os olhos. Ouvia vozes na vizinhança - uma mulher que silvava psius! os gritos frenéticos de uma criança, latidos de cães. Quando dobrou a esquina sentiu-se aliviado, tranqüilo, como se houvesse escapado a um perigo; moderou o andar.

No quartel estrondava um dobrado entusiástico. Instintivamente foi ritmando os passos pela música; de repente, porém, como se se sentisse observado, fez uma leve parada e seguiu devagar, fugindo aos compassos, até que se achou diante da estação Central.

Gente escoava em massa para o largo, chalrando: pequenos apregoavam jornais, perseguindo os passageiros que chegavam dos subúrbios. Homens, sentados ou acocorados diante de cestas de frutas, acamavam maçãs rosadas ou conversavam alegremente. Grandes tabuleiros de doces atraíam a garotada, os doceiros apregoavam, afugentando as moscas que esvoaçavam em torno dos pães louros, lentejoulados d'açúcar cristalizado e os engraxates, de joelhos junto das caixas, que batiam, chamavam os transeuntes. Bondes faziam a curva, outros seguiam cheios e os de São Cristóvão cruzavam-se, apinhados, com gente nos estribos.

Os carros, em fila, estendiam-se ao longo do terreno vago e em torno de um quiosque cocheiros discutiam em algazarra; outros, atracados, mediam forças ou gingavam em meneios capoeirosos, enquanto um pequeno, junto a um dos carros, estalava um chicote, rindo-se quando a água de uma poça espirrava para os lados, lamacenta e negra.

Os montes, muito azuis, tinham uma nova alegria. A Tijuca, desanuviada, cravava o seu cimo no céu; e o parque em frente, denso e verde, parecia de um arvoredo tenro: lisa era toda a folhagem, como nascida naquela manhã; a grama verdejava viçosa, como se por ali houvesse andado a primavera mondando as plantas, recolhendo versas e ramalho para mostrar, em todo o esplendor da beleza, a sua residência mais amada.

Ia atravessando a rua quando uma matula de garotos arremangados, descalços, brandindo paus, aos berros, abalou da estação, a correr em direção ao quartel, donde partiam, vibrando na serenidade da manhã luminosa, clangores fortes de metais. Deteve-se, empolgado por aquele troar de guerra, que os ecos iam prolongando gloriosamente. Era um batalhão que saía, precedido pela cainçada lépida, que ladrava.

A molecada esperta, aos saltos, corcoveando, em destros arremessos, bradava atirando, desviando golpes, numa excitação de luta e a banda rompeu estrondosa como uma muralha resplandecente que se movesse, seguindo para o campo fronteiro, onde já se haviam reunido grupos de curiosos.

Apareceram depois os oficiais a cavalo - um dos ginetes, negro e luzidio, caracolava garboso: logo depois o primeiro pelotão, com as baionetas rútilas inclinadas, formando um revérbero e passavam, com intervalos, serenamente, pelotões sobre pelotões, até que houve um claro e a bandeira verde, solta ao vento, palpitou vitoriosa. Retiniram cometas, novos pelotões desfilaram: por fim vários soldados, num bando desordenado, saíram na coda e um carneiro, lanzudo e gordo, precipitou-se rebolando entre cães que ladravam, engalfinhando-se, numa alegria estróina. Bondes esperavam travados até que o batalhão atravessou a rua airosamente.

A um brado do comandante, que sofreava o corcel, os pelotões recuaram ficando toda a tropa em linha, imóvel e direita. Súbito, num relâmpago, moveram-se as baionetas fazendo uma linha perpendicular, cintilante. Uma pancada atroou, os tambores rufaram e um dos oficiais, à rédea frouxa, partiu em revista à formatura.

Os passageiros voltavam-se nos bondes para olhar e Paulo, entretido, acompanhava as manobras quando se lembrou do Mamede. Lançou um olhar rápido ao relógio da estação - eram oito e meia. Foi-se lentamente até ao portão do parque, sempre a ouvir a música guerreira que estrugia como um hino forte à luz magnífica do sol.

As aléias estavam ainda úmidas e marcadas de pegadas, mas que frescor na folhagem! O lago, liso e cristalino, refletia o céu e um ganso, alvo de neve, nadava sem mesmo frisar a água dormida. O relvado cintilava emperlado de gotas límpidas e um aroma silvestre de bosque virgem saturava o ar fino.

Ele seguia contemplativo, sentindo o hálito das árvores, cercado pela vegetação forte, refeita com a rega farta da noite.

Passarinhos cantavam nos ramos, iam dum a outro, perseguindo-se; uniam-se no ar como trocando beijos e lá iam, de novo, juntos, d'asas frementes, metiam-se num meandro folhudo, onde, por certo, tinham o ninho agasalhado. Folhas caíam girogirando, flores murchas manchavam a relva, amareleciam ou ensangüentavam as alamedas.

Num banco um casal espairecia vendo o filho, um pequenito enfezado, ir e vir, arrastando a bengala, a fazer garatujas na areia. Súbito, porém, um som rouco e fanho de buzina e um retinir de tímpano alarmaram os dois felizes: o homem levantou-se, tomou o petiz nos braços, mas não teve tempo de voltar ao banco porque dois ciclistas, curvados sobre as máquinas, pedalando com fúria, passaram rápidos, com uma leve crepitação da areia.

Homens caminhavam passo a passo, como convalescentes e uma velha negra, abordoada a um pau, trêmula e tarda, passou com resmungos, num solilóquio de idiota, a cabeça toda branca, a pele engelhada, os olhos sumidos, enevoados no fundo das órbitas. Paulo chegava à praça central quando alguém lhe falou. Era um vizinho, empregado no Correio:

— Por aqui?

— É verdade.

— Os seus, bons?

— Graças a Deus. E os seus?

— Assim... - tocou no boné e seguiu ligeiro, gingando. Outros ciclistas deslizavam, uns céleres, como em vôo rasteiro, outros lentamente, ziguezagueando, oscilando ora à direita, ora à esquerda, esbaforidos, suados.

Bem felizes eram aqueles que por ali andavam descuidados! Para eles a natureza ria, o sol era alegre, jacundos os passarinhos, as flores obrantes e no sorriso de enlevo manifestavam a alegria de viver. Tudo, em torno, acenava-lhes afortunadamente. Só ele ia magoado, com a alma denegrida, fugindo aos homens, receoso das próprias coisas, porque aquelas mesmas árvores, aquele mesmo céu, aqueles mesmos pássaros pareciam recebê-lo com ironia pungente vendo-o infeliz, toldando com a sua tristeza a alacridade daquela manhã triunfal.

 

Um velho maltrapilho cochilava num banco, sob a ramagem verde e basta duma árvore em flor, com o cajado entre as mãos engelhadas. Era um triste, talvez, tinha também o seu drama; mas abriu os olhos lentamente, cravou-os no céu e, como um sino ressoasse perto, sonoro e grave, tirou o chapéu desabado, descansou-o no banco, persignou-se e, baixando a cabeça branca, de emaranhados e amarelecidos cabelos, ficou imóvel.

Dominado por aquela figura venerável de crente, Paulo descobriu-se, mas com vergonha dos transeuntes, que o podiam tomar por um carola, pôs-se a passar a mão pelos cabelos - no íntimo, porém, fazia votos a Deus, àquele Deus de Misericórdia que a voz grave do sino recordava no esplendor da manhã.

Vivamente outros sinos, mais límpidos, bimbalharam em festivo repique, e lá iam os devotos ao som do reclamo, como ovelhas correndo à buzina do pastor, por entre os pedrouços e a urze brava do monte, aos quais bem podem ser comparadas as agruras da vida.

Quando chegou ao portão, em frente aos Bombeiros, teve de recuar à zoada das trompas de outros ciclistas, que vinham em caravana, apostando, uns mais avançados, rindo, galhofando em tom de vitória. Atravessou a rua e, fustigado pela preocupação, amiudou os passos.

Subindo a Rua do Senado por entre o casario pobre, vendo às janelas os bustos arremangados das caseiras e, na calçada, os homens que gozavam a sua manhã de folga, em mangas de camisa, os braços nus, guedelhudos e fortes, tinha, por vezes, palpites de que a irmã estava refugiada em uma daquelas casas. Ouvia-lhe o riso, reconhecia-lhe o timbre da voz fresca e lânguida; voltava os olhos e, rapidamente, devassava interiores modestos.

Num botequim, junto à barreira esbarrondada, abancados a mesas sórdidas, preguiçavam madraços, e, mais adiante, numa casa de pasto, escura e lôbrega, ao longo de compridos bancos, trabalhadores almoçavam chalrando estrondosamente.

Enxames de moscas esvoaçavam na calçada e um velho, sentado no limiar de uma casa, com a perna esticada, envolta em estropalho imundo, alrotava, estendendo a mão aos transeuntes. Paulo atirou-lhe uma moeda.

Ganhando o aclive da Rua do Riachuelo, seguiu lentamente, curvado, chegando ao alto alagado em suor.