A Lista Dos Perfis Psicológicos

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A Lista Dos Perfis Psicológicos
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A

lista

dos

Perfis

Psicológicos

Juan Moisés de la Serna

Traduzido por Susana Franco

Edições Tektime

2019

“A lista dos Perfis Psicológicos”

Escrito por Juan Moisés de la Serna

Traduzido do espanhol por Susana Franco

1a edición: octubre 2019

© Juan Moisés de la Serna, 2019

© Edições Tektime, 2019

Reservados todos os direitos

Distribuído por Tektime

https://www.traduzionelibri.it

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Prólogo

― No início não havia nada, a não ser a luz. Pelo menos isso era o que me tinha dito, e também que isso seria, precisamente, o que veria nos meus últimos momentos. No entanto, aquilo não era o que eu esperava. Sentia-me estranhamente leve, como se todas as preocupações que me andavam a atormentar nestes dias se tivessem desvanecido. Nem sequer a pressa que me fizera acelerar tanto na estrada, tinha agora o mínimo interesse para mim. Sentia-me tranquilo, leve, sem preocupações.

Parecia ver tudo agora com mais clareza e perspetiva. Na verdade, tinha desperdiçado demasiado tempo da minha vida com tanto esforço desnecessário em aparências e para conseguir alcançar mais do que os outros, que agora tudo me parecia tão banal.

Dedicado aos meus pais

Índice

CAPÍTULO 1. O CONVITE

CAPÍTULO 2. ELA

CAPÍTULO 3. NOVA IORQUE

CAPÍTULO 4. A SURPRESA

CAPÍTULO 5. O REGRESSO A MALTA

CAPÍTULO 6. O DIA DO JULGAMENTO

CAPÍTULO 7. ANOS DE JUVENTUDE

CAPÍTULO 1. O CONVITE

― No início não havia nada, a não ser a luz. Pelo menos isso era o que me tinha dito, e também que isso seria, precisamente, o que veria nos meus últimos momentos. No entanto, aquilo não era o que eu esperava. Sentia-me estranhamente leve, como se todas as preocupações que me andavam a atormentar nestes dias se tivessem desvanecido. Nem sequer a pressa que me fizera acelerar tanto na estrada, tinha agora o mínimo interesse para mim. Sentia-me tranquilo, leve, sem preocupações. Parecia ver tudo agora com mais clareza e perspetiva. Na verdade, tinha desperdiçado demasiado tempo da minha vida com tanto esforço desnecessário em aparências e para conseguir alcançar mais do que os outros, que agora tudo me parecia tão banal. De repente lembrei-me dos melhores momentos da minha vida, quando estava com os meus pais, na altura em que eu ainda era uma criança; e na minha adolescência, com o meu primeiro amor; e até do meu casamento e dos meus filhos. E, em contrapartida, não havia nem rasto dos meus grandes êxitos pessoais ou pelo menos aqueles que eu considerava como tal, como a minha graduação, o meu primeiro emprego ou as minhas promoções. Também não vi nada do que tinha conseguido alcançar, como a minha casa, o chalé ou o carro. Apenas via episódios cativantes, cheios de amor e ternura, que me reconfortavam e me faziam pensar que aquilo era precisamente tudo o que realmente importava na vida – o amor incondicional – e não aquilo que alcançamos ou desejamos alcançar.

― Muito bem! Está a fazer progressos. Cada vez tem mais consciência do que lhe aconteceu, embora ainda pareça ter algumas falhas.

― O doutor acha que falar disto vai-me ajudar a lembrar?

― É a única forma que conheço. Quando alguém passa por uma situação como a sua, em que esteve tão próximo da morte, e além do mais, com as consequências que isso lhe deixou, é importante falar disso.

― Mas, porque é que não me lembro de mim? Porque é que não sei nada do meu passado, nem sequer da minha pessoa?

― Querido, tu tens de focar-te é naquilo de que te lembras, mesmo que sejam momentos após o acidente. Eu podia dar-te alguma informação sobre o relatório dos bombeiros que participaram no teu resgate, mas preferia que fosses tu a lembrar-te disso ― indicou a mulher que estava sentada ao seu lado.

― E se eu nunca chegar a recuperar a memória? ― Protestou, enquanto se remexia naquele sofá estofado, desgastado pelas horas que ali haviam passado as centenas de pacientes que, anteriormente a ele, se tinham recostado para escutar o doutor. ― E se não voltar a lembrar-me de quem sou?

― Normalmente isto é superável, apenas tem que ter muita paciência e sobretudo confiança na natureza humana, já que, embora nos pareça inacreditável, quase tudo se soluciona por si mesmo, no seu devido tempo.

― Já aconteceu? Refiro-me a um caso como o meu que se tenha solucionado.

― Não com as mesmas características ― afirmou o psiquiatra enquanto acabava de fazer algumas anotações no caderno que utilizava para registar a sessão.

― Então como pode ter tanta certeza de que irei recuperar a memória? ― Insistiu o paciente enquanto se endireitava, ao escutar o tom melodioso do relógio, assinalando o fim da sessão.

― Não se desespere, tudo a seu tempo. Por agora seria bom que se focasse nesses sentimentos que me descreveu, que de certa forma são muito positivos. Tomara que tivesse sido assim tão positivo antes. ― Disse o psiquiatra com um leve sorriso, enquanto colocava a esferográfica, que usava para escrever naquele caderno, atrás da orelha esquerda.

― Bem, farei o que me diz, já que, na verdade, é a única esperança que tenho de saber quem sou ― comentou enquanto se levantava e se dirigia ao psiquiatra para se despedir.

― Então, continuaremos a nossa conversa na próxima semana ― ele disse enquanto apertava a sua mão e o conduzia à porta, dando-lhe uma leve pancadinha nas costas.

Abrindo a porta, despediu-se deles com um pequeno gesto de mão, observando-os enquanto abandonavam o seu consultório. Já com a porta fechada, esperou que se tivessem passado alguns segundos e expirou vigorosamente.

“Que difícil que é para alguns deles!”, pensou para si enquanto regressava à sua secretária, onde o aguardava um sofá confortável, ricamente decorado com estampados floridos e um acabamento em madeira de mogno, que lhe dava um certo ar de dignidade, tal e qual como ele havia desejado quando o adquiriu naquele leilão de caridade.

Presumia-se que tinha pertencido a alguém da alta sociedade, a um desses nobres de Solera talvez, nada mais, nada menos do que a um visconde ou algo assim parecido… mas sem certezas disso, o que poderia afirmar era que quando se deixava cair sobre a sua almofada macia e depositava os seus cotovelos sobre os braços do sofá, sentia-se bastante importante.

“Quase que posso imaginar, quando semicerro os olhos, como seria a vida num palácio, onde não teria que lutar para ganhar o pão de cada dia e cuja única tarefa seria passear pelos campos da propriedade para me certificar de que estava tudo em ordem. Uma vida privilegiada destinada a uns quantos, filhos de berço de ouro, que eternizam nos seus descendentes uma casta real.”

Estava concentrado nos meus pensamentos quando o telefone tocou:

― Doutor, já não há mais pacientes por hoje, os outros dois que faltam cancelaram durante a tarde por diversas razões ― disse a voz da secretária do outro lado do auricular.

― Marcou-lhes consulta para outro dia? ― Perguntei surpreendido.

― Sim, poderá recebê-los na próxima semana, como é habitual.

― Perfeito, então se quiser, terminamos por hoje, continuamos amanhã. Muito obrigada.

― Com certeza! Então, até amanhã.

Desliguei, ainda surpreso com aquela casualidade, que me deixava a meio da tarde sem clientes para atender. Era normal que ao longo da semana tivesse um ou dois cancelamentos, quase sempre por motivos pessoais ou devido a algum imprevisto, mas não dois de seguida.

Peguei no jornal e abrindo-o com alguma ansiedade, procurei por alguma informação relevante por entre aquele emaranhado de notícias, umas mais chamativas do que as outras.

― Não pode ser, ninguém deixa uma consulta para ir ao balé… muito menos por isto, uma estreia de cinema a meio da semana também não é caso para tanto… Ah, muito bem! Agora compreendo, o final da Liga Juvenil. Provavelmente têm algum filho na equipa local ou então são grandes fãs deste tipo de desporto.

Apesar de não compartilhar daquele passatempo que, em alguns casos, chegava ao fanatismo, concordava que houvesse uma atividade em que as pessoas se pudessem libertar das suas inibições e que se identificassem com um grupo a que normalmente não pertencessem, longe das suas casas ou dos seus trabalhos.

Era reconfortante ver como as pessoas se reuniam nos cafés a acompanhar as vitórias das suas equipas e a sofrer por cada passe mal feito ou por cada remate não realizado; e igualmente, explodir de emoção quando o ponta de lança roubava a bola, avançava por entre os seus adversários e conseguia finalmente marcar golo.

 

Mas se isso era saudável e até purificador, libertando assim emoções primárias, o que mais me chamava à atenção era o efeito que aquilo provocava nas pessoas quando jogava a equipa nacional; aquilo era uma repulsa de sentimento nacionalista, de fraternidade sobre as diferenças, de unidade perante as adversidades.

Algo que pude comprovar e que me surpreendeu quando viajei para o estrangeiro, foi quando me vi diante de pessoas que não conhecia de lado nenhum e que me trataram como um irmão quando havia um jogo em que jogava a equipa nacional, independentemente do país onde me encontrasse.

Uma explosão de alegria e emoção que parecia ter levado os meus dois pacientes desta tarde a trocar as suas consultas pelos seus passatempos.

Naquele momento, pude ouvir a porta da entrada fechar-se. A minha secretária tinha saído de forma tão sorrateira, quanto ela era. Nunca queria interromper-me, pois por vezes ficava a rever casos, tirando anotações nos relatórios dos pacientes que acabava de atender, ou a consultar algum desses livros de psiquiatria volumosos que se acumulavam nas estantes da biblioteca.

― O saber não ocupa espaço! ― Dizia-lhe eu, quando ela me recriminava por não fazer um intervalo de descanso entre um paciente e o outro. Penso que, por isso, já não se preocupava em avisar-me que iria sair, mesmo que fosse só para ir buscar um café da máquina à receção.

Olhei pela janela que dava para um parque mais próximo e reparei que tinha começado a chuviscar. Eram cinco horas da tarde, mas o sol, parecia apressado hoje, pois quase que já não se o via na rua, por entre aquelas nuvens negras que se tinham apoderado daquele céu limpo com que amanheceu.

“Vou esperar que clareie um pouco e então depois saio”, disse para mim mesmo enquanto regressava à minha poltrona. Pus-me a observar ao meu redor, por entre aquelas quatro paredes, onde tinha passado uma boa parte da minha juventude, tentando ajudar as pessoas a melhorar as suas vidas, naquilo que elas se permitiam a si mesmas fazer.

Era reconfortante ver como algumas delas com tão pouca ajuda conseguiam avançar e superar aqueles pequenos momentos difíceis da vida que nos atrasam no nosso desenvolvimento; e, por outro lado… havia outras que por muitas sessões que tivessem eram incapazes de se dar conta da sua situação e do quão prejudicial isso era para elas próprias e para as suas relações com os outros.

“Ah! Se as paredes falassem!”, pensei para mim. Fechei o relatório do paciente que tinha acabado de atender, após fazer algumas anotações sobre o seu progresso e levantei-me para o guardar no ficheiro que tinha separado para todos os clientes que estava a atender de momento, deixando as gavetas de baixo para os que já tinham superado ou abandonado a terapia.

Estava à procura do lugar onde colocar a pasta do paciente com base no seu apelido quando a campainha tocou.

“Que estranho! ― Disse para mim mesmo. ― A minha secretária tem a chave. Talvez seja um dos dois pacientes que cancelaram. Às tantas, o jogo foi cancelado devido à chuva e vem recuperar a hora da consulta”, pensei enquanto saía da sala, e atravessando a receção, aproximei-me da porta.

Abrindo-a apressadamente, vi que do outro lado da porta encontrava-se uma senhora de idade, um pouco desleixada, que começava a escorrer água sobre o tapete da entrada.

― Pode entrar, minha senhora ― eu disse com suavidade enquanto lhe cedia passagem e afastava-me da frente da porta.

― Obrigado meu jovem, e desculpe por vir assim toda molhada.

― Não se preocupe, ninguém fazia ideia de que o tempo iria mudar assim tão depressa ― comentei, justificando o facto de não estar a usar guarda-chuva, uma vez que a única coisa que usava para se proteger, era um simples lenço na cabeça.

― Onde é que posso deixar isto? ― Perguntou, enquanto retirava o lenço, em gesto de o querer escorrer.

― Por aqui tem uma pequena casa de banho onde pode escorrê-lo, se é isso que quer ― disse-lhe enquanto a indicava e fechava a porta atrás de si.

― Obrigado, peço desculpa pelo incómodo.

― Não há problema.

A senhora entrou na casa de banho e ali escorreu, sobre o lavatório, uma boa parte da água que tinha conseguido bloquear com o lenço, evitando assim ficar toda ensopada.

― E o casaco? ― Perguntou ao sair da casa de banho.

― Eu coloco-o no cabideiro ― Respondi, enquanto o recolhia.

― É muito amável. ― Insistiu. ― Já agora, sabe se o doutor pode-me atender hoje? ― Perguntou com uma voz suave.

― Claro que sim, sou eu o doutor. ― Respondi com um leve sorriso.

― Ah! Mas você ainda é tão jovem, até parece que foi ontem que saiu da universidade ― comentou contrariada.

― É que me conservo muito bem, sabe como é, um pouco de exercício diário e uma boa alimentação.

― Ah! Então vai ter que me dar a receita, pois a mim os anos não me têm tratado tão bem ― protestou enquanto colocava a mão sob o ombro, creio que seria por se recordar de alguma fratura que tivesse tido ou algo assim. ― Bem, onde é que podemos conversar? ― A senhora perguntou com voz impaciente.

― Pode ser no meu escritório. ― Indiquei, surpreendido por aquela pergunta.

― Prefiro ali. ― Disse, apontando para o sofá da sala de espera.

― Pois então se prefere aí…

― Sim, obrigado. ― Ela disse, dirigindo-se para a poltrona.

Segui-a e sentei-me na cadeira da secretária, que coloquei de lado para poder ficar de frente para ela.

― Pode dizer-me a que é que se deve a sua visita?

― Sabe o que é doutor, é que tem noites em que não consigo dormir e não entendo o porquê, mas isso está a começar a afetar-me. No início, apenas me sentia esgotada, e bom, isso até era tolerável, mas agora nem sequer posso sair à rua, porque num instante já não sei onde estou nem o que vou fazer. E se entro num café para tomar alguma coisa, adormeço sobre a mesa.

― Já consultou o seu médico de família para ver o que tem?

― Já fui a todos os especialistas, mas nenhum me soube dizer a que se deve isto.

― Há alguma coisa que o possa ter provocado? Refiro-me às primeiras vezes em que se apercebeu deste problema. Sabe se houve alguma alteração na sua vida, que em consequência a faça sofrer disso?

― Bom, nada de que me lembre, ou talvez sim, não sei se tem alguma coisa a ver, é uma caixa que encontrei num parque. Não me leve a mal, mas com o pouco que ganho da minha reforma, às vezes recorro ao que encontro a ver se me pode ser útil. Sei que acumulo demasiado, mas não sabe o que passei na minha juventude.

― Acumula? ― Perguntei surpreendido com aquele comentário.

― Sim, você sabe, tem um nome muito estranho, mas não o consigo evitar. Tudo o que encontro tem um lugar especial na minha casa, sei exatamente onde colocar.

― Sofre de Síndrome de Diógenes?

― Sim, foi algo do género que os senhores dos Serviços Sociais me disseram, daquela vez que foram esvaziar o meu apartamento. Consegue imaginar… você passar uma vida inteira a guardar coisas, para que da noite para o dia deixem tudo vazio, sem um mínimo objeto?

― Mas você sabe que isso não é saudável, não sabe? ― Salientei, estranhando o rumo que aquela conversa estava a ter.

― Sim, eu sei, mas sou muito limpinha, embora um pouco descuidada, mas sempre tive tudo organizado, e nunca ninguém se tinha queixado.

Não quis aprofundar mais naquilo, primeiro porque parecia ser um tema doloroso para a senhora e pelo qual se sentia um pouco envergonhada, e segundo, porque não entendia o que é que aquilo tudo tinha a ver com as insónias, o que me levou a tentar aprofundar um pouco mais esse segundo aspeto.

― E então? Que relação acha que existe entre a sua falta de sono e esse objeto que encontrou?

― Ah! Sim, isso ― respondeu um pouco confusa. ― Sabe, eu acho que é valioso, mas nem sequer me atrevi a abri-lo. Está tão bem embrulhado que me deu pena rasgar o papel que tem em volta.

― Mas se não sabe o que é, como é que isso lhe pode tirar o sono? ― Respondi, deixando em evidência a incoerência das suas palavras.

― Precisamente por não saber o que é, já viu se são uns sapatos novos?

― Uns sapatos? ― Perguntei confuso.

― Sim, ou um lindo lenço para a cabeça. Nem sabe a falta que me faz. ― Respondeu emocionada com um largo sorriso.

― E porque não abre para ver o que é? ― Indiquei, perplexo.

― Porque está coberto com este papel de embrulho tão bonito.

― Como o de um presente? ― Perguntei, tentando obter mais informações daquele objeto.

― Sim, isso mesmo, e de cor vermelha, um pouco vistoso demais para o meu gosto, e nota-se que tinha um laço, mas agora já só resta um pequeno pedaço ali colado.

― Mas, havia alguém lá quando o encontrou?

― Não, não, até fiquei com ele um pouco na mão enquanto me pus a observar, mas ninguém que passava por mim parou para o reclamar.

― E o que quer que eu faça? ― Perguntei um pouco confuso com a situação.

― Que me ajude a dormir.

― E com o embrulho? ― Insisti naquele detalhe.

― O que tem o embrulho?

― O que vai fazer com ele?

― Ah! Pois, não sei, vou deixá-lo onde estava. Acha que faço mal?

― Não, de maneira nenhuma, é que pensava que, como isso poderia ser a origem da sua insónia…

― Sim, diga… ― interrompeu-me, prestando muita atenção.

― Pois bem, se assim for, creio que tudo voltará à normalidade se se desfizer do embrulho.

― Acha que sim?

― Com certeza! ― Afirmei com convicção, embora no meu interior não tivesse tanta certeza.

A senhora olhou para mim com pena, como se aquela notícia lhe tivesse causado muita dor ao chegar ao coração.

― O que acha que devo fazer?

― Não sei, mas para resolver a situação, terá de o abrir.

― Ao embrulho?

― Sim, ao embrulho ― esclareci.

― Mas, como vou abrir um presente que é para outra pessoa?

― Se é você que o tem então ele nunca chegará ao seu destinatário, e provavelmente a pessoa já o deve ter dado como perdido ― comentei, tentando evidenciar o quão absurda era toda aquela situação.

― Prefiro que seja você a ficar com ele ― afirmou a mulher depois de pensar um pouco.

― O quê? ― Perguntei, surpreendido com a decisão da mulher.

― Sim, assim você poderá dizer-me o que é e voltar depois a embrulhá-lo, e eu deixá-lo-ei onde o encontrei. ― Respondeu com um sorriso nervoso.

― Mas se eu o abrir…

― Com muito cuidado ― interrompeu a mulher, com os olhos arregalados e um olhar penetrante.

― Sim, está bem, mas se eu o abrir, não perderá o seu encanto?

― Não, você vê o que tem no seu interior, diz-me o que é e depois volta a fechá-lo, tal como estava. Penso que assim já poderei dormir melhor.

Pessoalmente, não estava nada convencido que a solução fosse aquela, mas era óbvio que a senhora estava disposta a tomar-me o resto da tarde se não atendesse ao seu pedido.

Na verdade, nunca tinha passado por uma situação tão absurda e desconcertante como aquela. “Podia ela mesma abrir o embrulho sem necessidade de vir à minha consulta!”. Mas como queria dar o assunto por terminado, disse-lhe:

― Deixe-me ver esse presente!

A senhora retirou uma caixa branca com uma tampa vermelha, e um laço da mesma cor, de dentro de um saco de supermercado. “Realmente parece uma caixa de sapatos”, pensei para mim.

Retirei, com cuidado, o laço que ainda tinha e entreabri a caixa, de costas para a senhora, tal como me tinha pedido. Qual não foi o meu espanto ao ver o que continha no seu interior.

― O que vem a ser isto? ― Perguntei em voz alta, entre um tom de alarme e surpresa.

― São uns sapatos? ― Perguntou a senhora, ansiosa e emocionada.

― Não, é um anel de noivado e um convite para um espetáculo de balé.

― De balé? ― Perguntou a senhora, desiludida com as minhas palavras.

― É o que parece, além disso, tem uma dedicatória. “Embora não nos conheçamos ainda, tenho a certeza de que os nossos caminhos se cruzarão”.

― Não disse que era um anel de noivado? ― Ressaltou a mulher, tentando olhar por entre as mãos, pois tinha tapado os olhos para não ver o embrulho.

 

― Sim, porquê? ― Perguntei sem entender a sua expressão.

― Como pode ser um anel de noivado se não conhece a outra pessoa? ― Questionou a senhora.

― Não faço a mínima ideia! ― Eu disse desnorteado, sem saber se aquilo se tratava de alguma brincadeira ou algo do género.

Tudo me levava a crer que ninguém tinha perdido aquela caixa, mas sim, que a tinham deixado lá de propósito para que alguém a encontrasse. Uma espécie de “mensagem na garrafa”, como se lê nos livros. Mas o convite para o balé era o que mais me intrigava. Seria um encontro às cegas? Mas quem é que estaria disposto a ir a um encontro com alguém que nunca tinha visto?

― Que desilusão! ― Afirmou a senhora, preparando-se para abandonar a consulta. ― Esperar tanto tempo para isto.

― Bom, pense pelo lado positivo, agora que já sabe o que é, já vai poder dormir melhor. ― Afirmei com um sorriso forçado.

― Pois já! Mas se ao menos fossem uns sapatos, mesmo que não fossem o meu número ― protestou a senhora.

― Tome a sua caixa! ― Eu disse com a intenção de a devolver uma vez que já estava fechada tal e qual como estava antes.

― Não a quero. Que bela perda de tempo! Adeus ― concluiu a senhora, enquanto fechava a porta atrás de si.

Fui atrás dela, com a intenção de que voltasse para levar a caixa consigo e a colocar de volta no lugar onde a tinha encontrado, mas a senhora não quis mais saber do assunto, e metendo-se no elevador, fechou as portas de ferro e pressionou o botão para descer.

Aquela foi a última vez que vi aquela mulher estranha, que em vez de pedir ajuda para o seu problema de acumulação de lixo, tinha perdido o sono por causa de uma caixa, que só estava associada ao prazer.

“Boa, e eu a pensar que tinha acabado!”. Disse para mim próprio enquanto regressava ao escritório, sentindo-me satisfeito por ter feito uma boa ação por uma desconhecida. “Agora já pode dormir tranquila”.

Olhei pela janela do escritório quando o vistoso relógio de parede soou. “Caramba! Já é tão tarde”, pensei enquanto levava as mãos ao casaco para me certificar de que tinha as chaves do escritório.

“Agora sim terminei por hoje”, disse a mim mesmo enquanto olhava ao meu redor para me certificar de que estava tudo em ordem antes de deixar o meu local de trabalho, que era como uma segunda casa para mim. Se bem que, na verdade, passava mais tempo ali do que em casa.

Aquelas quatro paredes, carregadas de títulos e de livros, tinham-se tornado tão habituais, que às vezes nem sequer me dava conta de que ali estavam. Só quando alguma coisa estava fora do lugar, é que parecia que se tinha quebrado o ponto de equilíbrio da sala até que a voltasse a colocar no seu devido lugar.

De repente, já com a mão no interruptor, prestes a apagar as luzes, vi sobre uma das cadeiras do escritório aquela caixa de embrulho que tinha desiludido a minha última visita.

“Às vezes é mais importante a ilusão que temos das coisas do que aquilo que realmente podemos esperar delas”, pensei para mim, tendo em conta as circunstâncias em que aquela senhora tinha perdido o sono fantasiando sobre o conteúdo daquela caixa.

“Se ao menos tivesse espreitando antes, teria evitado muitas voltas na calma”, refleti sobre o que aquela caixa tinha representado para aquela mulher, “mas entendo que, por vezes, a ilusão seja a única coisa que nos resta. E perdê-la talvez seja o mais difícil”.

Fiquei a observar a caixa, pensativo, e disse “E agora?”. Não sabia se devia desfazer-me dela ou deixá-la ali a ver se a senhora voltava no dia seguinte para a levar. Curioso, voltei para o escritório, aproximei-me daquela caixa tão bem embrulhada e chamativa, e voltei a abri-la.

Procurei certificar-me se havia mais alguma coisa entre o papel de oferta e aqueles três objetos, mas não encontrei nada. Depois verifiquei se algum dos bilhetes, o do espetáculo e a nota, tinham mais alguma coisa escrita para além do que já tinha lido antes, e surpreso, reparei que a data e hora do espetáculo de balé era para hoje, dentro de uma hora.

“Bem, pelo menos sei onde posso encontrar o dono desta caixa! É melhor devolvê-la, embora não me tenha ficado esclarecido a sua intenção ao deixar a caixa abandonada à sua sorte. Por isso, vou ao balé!”. Eu disse decidido, enquanto pegava na caixa, fechava-a da melhor forma possível e saía do escritório, apagando as luzes atrás de mim.

“Eu a ir ao balé? Há que anos que não vou a um evento artístico como este…muitos anos mesmo”, eu disse tentando-me lembrar da última vez que tinha ido a um. Talvez me tivesse focado demasiado nos meus pacientes, a quem acudi como se se tratasse de um encontro, e quando se atrasavam sem me avisar, ficava nervoso.

Já fazia tanto tempo que não tirava férias, visto que, por diversas vezes, quando regressava de uma viagem de lazer, encontrava um paciente que tinha piorado, pelo simples facto de não ter recebido aconselhamento semanal comigo.

Por isso mesmo, e pela minha forte convicção de que a saúde devia estar em primeiro lugar, fui aos poucos abandonando as viagens de lazer de que tanto gostava. Não tanto pelo facto de poder apanhar banhos de sol numa praia paradisíaca, até porque a minha pele era clara e queimava facilmente quando exposta ao sol, mas para poder fazer visitas culturais a lugares diferentes, aventurando-me pelos seus museus.

Embora que para alguns aquilo pudesse ser enfadonho, para mim era enriquecedor ver como pensavam e atuavam em outras latitudes, com costumes e formas de expressão tão singulares e características. Mas bem, tudo isso tinha ficado para trás e tudo o que restava agora era algum álbum de fotos ou coisa parecida.

― Táxi! ― Gritei ao sair do edifício, depois de me ter despedido do porteiro, com o qual tinha desenvolvido uma boa relação, pois embora não me quisesse meter nos seus assuntos pessoais, vez por outra, procurava-me para o consultar a respeito disso.

Por vezes, custava-me manter a distância dos outros, principalmente quando tinham conhecimento da minha profissão e queriam consultar-me devido a algum caso pessoal ou de algum familiar.

A verdade é que não os podia censurar, embora por vezes fosse desconfortável ter que me negar a atendê-los no meio do corredor ou na rua, sem se darem conta de que existe todo um protocolo estabelecido para que cada paciente usufrua de um tempo, espaço e tranquilidade durante a sua consulta.

Jamais ocorreria a alguém pedir a um cirurgião que lhe operasse no meio da rua, pois era exatamente isso que me pedia, que “operasse a sua alma” em qualquer sítio.

― Táxi! ― Voltei a gritar, enquanto levantava a mão.

― Para onde quer ir? ― Perguntou o condutor quando entrei no seu carro.

― Ao balé, para ver esta obra ― referi, enquanto lhe mostrava o bilhete que tinha deixado fora da caixa, a qual eu levava comigo.

― Vai ser uma longa noite? ― Interrogou o taxista com um sorriso matreiro.

― O quê? ― Falei, estranhando o seu gesto.

― Esta noite vai engatar, de certeza ― respondeu, piscando-me o olho.

― Está a referir-se à caixa? ― Perguntei, reparando que não tirava o olho dela ― pois saiba que não é minha e que tenho que a devolver ao dono, embora não saiba quem ele é.

― Claro! Claro! ― Disse o motorista enquanto remexia na sua camisa ― Olhe, esta é a minha mulher, já estamos casados há dez anos e conhecemo-nos num sítio como esse. Quer dizer, foi numa ópera, embora não me agradem essas coisas, ela adora tudo isso de se aperaltar e ir a sítios elegantes. Estive quase três meses a poupar para poder ter uma noite inesquecível, e no fim, deu tudo certo. A única coisa que lhe disse foi para se vestir de forma elegante e tirar a tarde de folga no trabalho. E foi lá que lhe fiz a derradeira pergunta, e desde então, estamos juntos até hoje ― comentava o taxista enquanto olhava com ternura para a foto desgastada da sua mulher.

― Bom, eu vou fazer perguntas, mas não vai ser essa ― esclareci, embora sem sucesso.

― Chegámos. ― Disse o taxista com um largo sorriso no rosto. ― Boa sorte!

― Sim, obrigado ― respondi sem querer entrar em mais detalhes acerca daquela tarde anormal, em que tinha aceitado consultar de improviso uma mulher com uma caixa, que eu agora trazia comigo e que me levava até um espetáculo de balé que eu desconhecia.

Não é como se eu fosse fã desta arte, mas em certas ocasiões, sobretudo quando ia a congressos, organizavam-se eventos culturais lá perto, dignos de se contemplar pelo grande esforço feito por parte dos seus organizadores.