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O Inferno

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ADVERTENCIA DO TRADUCTOR

N'este memoravel anno de 1871, o sacerdocio militante da christandade lusitana subiu aos baluartes mais desamparados, aos pulpitos de grande parte do reino, e desembestou certeiras fréchadas ao rosto da impiedade.

No pulpito da egreja de S. Martinho de Cedofeita, d'esta cidade do Porto, – que não é a mais peccadora, porque é a menos ociosa, – discorreu apostolicamente um padre italiano, que eu não ouvi.

Não fui ouvil-o, porque já tenho muitissimos annos e bastante leitura para conhecer que direitos tem Deus e o proximo ao meu amor.

Não o fui ouvir pela mesma razão que evito alguns livros prohibidos, receoso de que elles estremeçam os alicerces da minha fé.

Não fui ouvil-o, emfim, porque ha um sermão que eu sei de cór, e repito quando tenho sêde de fé, ancias de misericordia, tibiezas de esperança: é o sermão da montanha, prégado aos pobres por nosso Senhor Jesus Christo.

Este sermão ainda meus filhos o não sabem; mas hão de aprendel-o quando as primeiras lagrimas lhes tiverem delido as manchas escuras do intendimento. É preciso ter chorado para comprehender a bem-aventurança dos que choram. Jesus Christo, se houvesse dito aquellas divinas palavras aos felizes, não seria intendido no apostolado, nem seguido na vida, nem chorado na morte, nem confessado no martyrio.

Levantei, pois, o pequenino e fragil oratorio das minhas preces humildes sobre a confiança do divino Pae; e, se em minha alma sinto o desejo de não ter nascido para dôres deseguaes ao alento de cada homem, reconheço que o oratorio do peccador está tanto á vista de Deus que o anjo da paciencia abre as suas luzentissimas azas sobre os meus abysmos escuros.

Ora eu sei de triste experiencia que os discursos do missionario em Portugal me desataviam o espirito das vestes graves com que costumo entrar nos templos.

Na minha mocidade estudei grammatica, fui examinado em logica, decorei a inutilissima cousa chamada rhetorica, cursei muito pela rama algumas aulas de theologia; finalmente, poli quanto pude a razão para que se espelhassem n'ella os preceitos e conceitos dos oradores sagrados.

Pois acontecia que todos aquelles predicados, desde a grammatica de Lobato até á theologia do bispo de Leão, cá no meu interior despiam a casaca e a dalmacia venerandas, para galhofarem d'uns certos padres que se imaginavam favorecidos da infusão scientifica, uma só vez milagrosamente concedida pelo Espirito Santo aos santissimos ignorantes do Cenaculo.

Arguiam-me de indiscreto os bons amigos que me ouviam deplorar a decadencia da oratoria sacra, justificando o proposito pelos resultados, a uncção do prégador pelo soluçar do auditorio, a fertilidade da palavra pela emenda das culpas.

O soluçar do auditorio era tão acceitavel e prestadio como as lagrimas no theatro, que denotam, quando muito, corações sensiveis; aquillo, porém, de emenda das culpas é que vinha desconceituar a argumentação dos meus amigos.

As culpas! o desconcerto da vida, a irreverencia a Deus, o desamor ao proximo, as intranhas descaroadas do rico, a rebellião cubiçosa do pobre, a mão que se esquiva em levantar da lagem o orphão – estas e outras más fibras do coração humano poderá retemperal-as a consciencia illustrada; mas a consciencia espavorida pelo medo dos castigos eternos, essa não.

E os missionarios, que ludibriavam a minha devoção ou curiosidade, demonstravam a precisão de sermos continentes, sobrios, humildes, caritativos, christãos emfim, para não sermos eternamente refervidos no lago de sulphur candente.

Eu nunca ouvi dizer na casa da oração que a providencial justiça tem o seu tribunal em meio dos vivos; que o vicio deshonra, infama, e tolhe o goso dos bens d'esta vida; que a repulsão do delinquente é um castigo; que a sociedade pune primeiro que a lei; e que, se a justiça dos codigos algumas vezes erra, a justiça complexa da opinião publica mantém a disciplina do supplicio, invisivel mas exulcerante na consciencia do culpado.

Nunca ouvi missionario que me parecesse mais illustrado que a maioria dos seus ouvintes, nem vi espectaculo onde reluzissem mais vivos e tristes reflexos da edade-media. Historias horrendas e ás vezes esqualidas de castigos infernaes; immersões em caldeiras rubidas das lavaredas; corpos espedaçados por dragões e logo recompostos para nova e eterna dilaceração; imborcações de peçonha na bôcca dos gulosos; amplexos de serpentes escamosas de brazas n'aquelles que lubricamente deleitaram os corpos n'este mundo: era isto, não era o penetrante pejo do vicio que chamava aos olhos do auditorio as lagrimas restauradoras.

Mas, ao fechar da missão, o peito oppresso do peccador atterrado desafogava-se na esperança de illudir o diabo com uma confissão geral e um profundo pesar na hora da morte, visto que o missionario promettia o céo aos que, nos ultimos instantes, se sentissem vivamente magoados de terem sido perversos.

O céo!

E que promette o padre aos justos, aos que desde a juventude até á decrepidez apenas prevaricaram venialmente? o céo.

E aos apostolos que vão á fogueira offerecendo ao divino martyr o tributo de suas agonias? o céo.

O céo para o facinora contricto no ultimo momento, e o céo para o santo de toda a vida! O céo para o martyr e o céo para o algoz que houve remorso de o haver matado! Ó fé, revérbero de Deus, estarias apagada, se não fosses divina!

Em compensação, porém, que profusa prodigalidade de infernos além-tumulo! Infernos legendarios, imitações do grego, do egypcio, do indostanico, todos os infernos, excepto o verdadeiro – o inferno d'esta vida, a corrente do remorso ao pelourinho da consciencia, e a desgraça implacavel ainda para os que não têm consciencia nem remorso.

Pois esta doce e misericordiosa alliança de Jesus com os attribulados, com os frageis por compleição e por mal dirigidos na mocidade, comporta em si a hypothese de Satanaz, que nos espia o ensejo favoravel e nos faz cambapé ás suas voragens? Comprehendem acaso que Deus se não amerceie de homens fraquissimos, vencidos por um gigante que não coube no céo? Não vêm que Lucifer se atreveu com o Creador, e, depois de vencido, teve por homenagem o reinado de um mundo, e o generalato de legiões immensas, todas a manobrarem na terra para vencerem… a quem? um descendente de Adão, do logrado do Eden, Adão, que tinha em si a plenitude da força, da sciencia; a força do corpo ainda aquecido da mão de Deus; a força da alma iriada dos reflexos do seu Creador! E o homem, debilitado pelo attrito de seis mil annos, que querem que elle seja? Porque lhe decretam a elle – ao fraco – o inferno, se Deus apenas condemnou o forte a viver do suor do seu rosto?

Estas e outras meditações, dignas de que Deus m'as perdôe, se a palavra não friza bem com a lisa intenção, me preoccupavam, quando li este livro de Callet, com certo medo de violar o meu salutar costume de não lêr livros prohibidos, tirante os uteis, os desenfastiados e principalmente os instructivos.

O auctor, comquanto excommungado, usou a christã bem-querença de prevenir-me de que a sua obra estava condemnada. Decidi logo que o livro não seria de todo mau. E, depois que o li, reflexionei que os cardeaes seriam mais discretos esquivando-se a dar voga a escriptos que andariam menos procurados sem a chancella da prohibição.

A mim me quer parecer que o Inferno de Callet sahiria com fóros de orthodoxo da assemblêa dos primitivos christãos, quero dizer, dos seguidores de Jesus Christo anteriores áquella pestilencial sciencia chamada Theologia: tal é a pureza, luz, amor e christianissimo espirito que ungem as paginas d'este consolativo livro.

Augmenta-lhe o valor o encontrar-se com os missionarios portuguezes, cada vez mais attidos á rhetorica ardente do inferno, como se elles e ouvintes não houvessem dado ainda um passo desde que é dia, desde que a razão fez pazes com a fé illustrada.

É tão verdade que este systema de moralisar nada aproveita, quanto é certo que nas aldeias, onde mais trovejam as ameaças do missionario, encontrareis o demonio da corrupção fazendo tregeitos ao padre ás portas das cabanas, onde o vicio avulta mais esqualido com a hediondez dos seus farrapos.

Não melhorareis a sociedade a prégar. E todavia, serodios apostolos, na vossa sinceridade, creio eu, por não ter grande confiança na vossa illustração, e me ser muito custoso suspeitar que sois hypocritas.

Ora lêde este livro que se vos offerece em portuguez correntio, e dizei, se, apagado o inferno, não será possivel accender pharol mais humano e mais divino pelo qual se norteie a posteridade da peccadora Eva, esta immensa familia d'hoje, estygmatisada seis mil annos antes!

Julho de 1871.

Camillo Castello Branco.

PREFACIO DA SEGUNDA EDIÇÃO

Aos 20 de Junho de 1862 a sagrada congregação do Index condemnou em Roma este livro ácerca do inferno. Caridosamente advirto a leitoras e leitores que temos aqui fructo prohibido.

Perguntam-me o que vem a ser a congregação do Index? Eis-aqui o pouco que sei d'isso: o papa Paulo III publicou em 1539 um catalogo de livros cuja leitura prohibiu aos fieis sob pena de excommunhão. Este catalogo, chamado Index, foi approvado pelo concilio de Trento, enriquecido de numerosos artigos, e por elle, antes de dissolver-se, recommendado a Pio IV. O papa Sixto V, que não tinha vagar para lêr, creou, mais tarde, uma commissão permanente de cardeaes encarregada de examinar e condemnar livros. Esta commissão de cardeaes é o que se chama a sagrada congregação do Index.

Convém saber que Paulo III, velho amigo de Alexandre VI, e tanto, como elle, muito desacreditado por seus vicios, desmembrou dos dominios de S. Pedro as cidades e territorios de Parma e Placença que elle deu com plena soberania, e com titulo de ducado, a Pedro Luiz Farnezio, um dos seus filhos naturaes. Este tal fundou a inquisição, instituiu a ordem dos capuchinhos, exercitou a astrologia, fomentou e applaudiu a carnificina dos vandezes. Não discuto similhantes actos; recordo-os porque elles se ligam á mesma idêa que creou o Index.

 

Pio IV, a rogo dos Jesuitas, acrescentou algumas contas ao rozario, augmentando-lhe as virtudes; fez estrangular o cardeal Caraffa, sobrinho do seu predecessor Paulo IV; fez decapitar o duque de Palliano, irmão d'aquelle cardeal, e outros muitos personagens cujas cabeças ensanguentadas, por sua ordem, foram expostas sobre a porta do castello de S. Angelo; abafou o processo instaurado em Espanha contra o clero accusado de libertinagem; mas em compensação accendeu por toda a parte a guerra contra os herejes. Accuzam-no de haver beneficiado mais a sua familia que ao povo romano. Eu por mim não lhe contesto as virtudes, e menos ainda a orthodoxia. Na famosa bulla de 24 de Abril de 1564 declarou excommungados, ipso facto, quem quer que no futuro imprimisse, vendesse ou lesse algumas das obras inscriptas no Index pelo concilio ou por elle mesmo; e bem assim quem, não as tendo lido, as emprestasse ao visinho, ou, sem as ler ou communicar a alguem, as fechasse na sua bibliotheca ou n'algum esconderijo da sua casa. Urgia, pois, queimar os livros prohibidos quem quizesse evadir-se á excommunhão, e em seguida á condemnação eterna. Como não podesse queimar os auctores, Pio IV desforrava-se fazendo-lhes queimar as obras.

A vida de Sixto V é bastantemente conhecida, não tem que vêr com a de S. Pedro; mas sobejavam-lhe intelligencia e indole sufficientes ao exercicio do poder absoluto. Era manhoso e cruel este grande papa, cujo systema de governar compendiou em duas palavras: pão e páo.

Dispensam-se pois os povos de pensar, como coisa perigosa: é bastante que elles não morram de fome e que tremam sempre diante do algoz. Depois erijam-se obeliscos e edifiquem-se templos.

Este papa mandava decapitar os padecentes debaixo das suas janellas, antes de sentar-se á meza, dizendo que isto lhe abria o appetite. As cabeças dos suppliciados, que elle expunha e deixava apodrecer aos olhos dos caminhantes, ameaçavam de peste a cidade. Apezar dos juizes, fez enforcar um mancebo de 16 annos por haver resistido aos quadrilheiros que o prenderam. Ordenou que cortassem as mãos e que traspassassem a lingua d'um auctor epigrammatico. Excommungou a rainha Isabel, desquitando a nação do juramento de fidelidade; excommungou o rei de Navarra, o principe de Condé e o rei de França, exaltando até ao delirio o fanatismo dos partidarios da Liga; e depois do assassinio do desgraçado Henrique III, elogiou em pleno consistorio Jacques Clement, comparando-o a Judith e Eleazar, debeis mas fieis instrumentos do Deus dos combates. E como signal sensibilissimo de sua terna solicitude pela salvação das almas, restabeleceu ao mesmo tempo o santo officio e cumulou de indulgencias a confraria do Santo Cordão. Era proprio d'este grande e devoto papa continuar a guerra declarada por seus predecessores á razão humana e á liberdade da consciencia, instituindo de par com o santo officio a congregação do Index.

Não cuideis, porém, que os livros condemnados por esta congregação fossem lidos pelo papa ou sequer pelos cardeaes encarregados d'isso. Por via de regra os cardeaes nada lêem. Á laia de Sixto V, encarregavam outros d'esse officio. Á volta da congregação do Index formigavam monges e obscuros theologos de toda a parte, chamados consultores, a quem incumbia o encargo quasi sempre fastidioso de lêr obras novas. As formidaveis sentenças do Index, mediante as quaes uma familia inteira era excommungada e condemnada, promanavam do relatorio d'estes consultores: tal era a sorte de quem recusasse queimar um cartapacio jansenista, herança de avó piedosa, ou as Maximas dos Santos de Fénelon, ou os Pensamentos de Pascal, ou as Reflexões moraes de Quesnel, embora approvadas pelo cardeal de Noailes, arcebispo de Pariz, ou a Theologia de padre Lequeux – primeira edição – ou a Philosophia de Cousin. Pelo que me toca, julguei que o inferno é uma concepção immoral, profunda e forçosamente immoral pelas razões que adduzi. Tambem mostrei, a diversas luzes, o perigo de similhante crença para o genero humano. Por isso fui condemnado em Roma. Optimamente! Agora exijo que me respondam. Graves e leaes são as minhas objeções: o decreto do Index as deixou subsistir em todo o seu vigor.

Quando a soberania temporal do papa, que não é dogma, deixar de absorver os esforços todos dos defensores da fé, espero que elles tenham vagar de cuidar no inferno, que é um dogma, e dogma tanto em perigo e tão vacillante – fiquem-no sabendo – como o throno de Paulo III, de Pio IV, e Pio V.

INTRODUCÇÃO

DOGMAS HEBRAICOS

É crença anterior á prégação de Christo, quanto ao texto, mas diversa do espirito do Evangelho, a eternidade das penas. Prende esta crença com outros dogmas rabbinicos, tão obscuros quanto descaridosos, que a Egreja nascente adoptou e que ainda hoje formam o essencial da theologia christã. Podemos reduzir aquelles dogmas a cinco, consubstanciados todos no Inferno. Vem a ser: a Rebellião de Satan, o Castigo de Satan, o Paraiso terreal, a Maldição dos homens, o Povo de Deus.

Não intento esquadrinhar o sentido philosophico de taes dogmas: tal canceira, superflua para leitores instruidos, seria insipida e inutil para os ignorantes. Que Satanaz, inferno, peccado original, etc., sejam ou não horrendos symbolos do antigo pantheismo asiatico, – expressão viva d'um systema de methaphysica mais terrivel que especioso, onde liberdade e mal se confundem, e o nada divinisado tem consciencia de si, e Deus quasi deixa de ser – questões são essas proprias de academias. Taes dogmas para mim são o que á letra significam; sei d'elles o que nos ensinam; vejo-os como nos mandam vêl-os, como a multidão os vê, coisas reaes, pessoas verdadeiras, e não chimeras. Considero-os pois sob a fórma com que elles, ha muitos seculos, influem no genero humano: e não ha mais seguro modo de lhes apreciar o valor moral.

Entremos na exposição, clara quanta fôr possivel, d'estes dogmas mysteriosos.

I
Rebellião de Satanaz

A historia de Satanaz não se encontra na Biblia nem no Evangelho. Passou tradicionalmente da synagoga á Egreja. No Thalmud e nos Padres é que vem escripta.

Satanaz era um anjo – como quem diz um espirito incorporeo, um sôpro de Deus. Pureza, força e benção eram o principio e constituição de sua essencia. Estava elle no ceo resguardado de exemplos e conselhos maus. Creado para o bem alli vivia em condições em que não é possivel conjecturar-lhe intenções más, contemplando Deus rosto a rosto, actuando e reclinando-se em seu seio, testemunha intelligente d'aquella superlativa sabedoria, bondade e omnipotencia que transpõe espaço e tempo.

Infelizmente Satanaz era livre e peccou. É obra sua o mal que antes d'elle não existia. Concebeu-o elle, e – caso estranho! – produziu-o alli mesmo no ceo, em meio dos resplendores increados, e eternas bem-aventuranças, e depois quiz-lhe como a seu, e propagou-o por entre os anjos.

Este peccado, aliás inqualificavel, visto que lhe não conhecemos a especie, é, como vou demonstrar, o verdadeiro peccado original. É a primitiva e inexhaurivel fonte de dores do genero humano, posto que ainda não houvesse genero humano na desconhecida época em que elle perturbou o céo. Todos os transtornos do universo, mal physico e mal moral, é aquelle peccado que os explica.

Saibamos como Satanaz foi castigado.

II
O Inferno

Deus não quiz anniquilar Satanaz nem perdoar-lhe. Creou o inferno, e precipitou-o lá com os seus cumplices.

Fogo, frio, esvahimentos de fome, tedios da saciedade, golpes de ferro, trances de agonia, inveja, remorsos, tudo isso não basta a dar-nos muito em sombra idêa dos tormentos d'aquelle abysmo. Corôa-lhe o horror não ser ahi conhecida a morte. Se a morte lá podesse entrar, a esperança iria com ella, deixando entrever o nada como acabamento de tão enormes penas.

Se, porém, foi recusada a Satanaz esta miseravel consolação, goza-se de outra em desforra. Deus, que o reduziu á desesperação, deixou-lhe a faculdade de o molestar, atravessando-se-lhe nos intentos, contrariando-lhe as leis, multiplicando e perpetuando o mal por toda a parte, salvante o ceo.

É o inferno o senhorio de Satanaz; mas não cabe lá. É-lhe toda a creação campo franco para a sua malfeitora actividade. Verdade é que leva comsigo, onde quer que vá, a sua immortal tristeza, e, pelo tanto, toda a parte lhe é inferno. Não obstante, é incomprehensivel que elle de lá sahisse, se lhe não fosse algum hediondo regalo n'isso de fazer tudo quanto quer, excepto o bem – poder singular que Deus lhe concedeu, e elle exercita incansavelmente, seu prazer unico, necessidade propria da sua desgraça, e que hade durar tanto como elle.

Tal é o castigo de Satanaz. Crime e castigo são por egual espantosos e inintelligiveis.

Agora, vejamos o que d'ahi resulta.

III
Paraiso terreal

No segundo e terceiro capitulos do Genesis, refere Moysés a creação e queda do homem. Esta breve passagem foi diffusamente glossada por hebreus e padres da Egreja, e raro haverá quem a não haja ouvido explicar do pulpito, como eu brevissimamente a vou explicar, acrescentando-lhe reflexões minhas.

Adão e sua companheira tinham recebido no Eden uma lei moral simplissima e muito clara: era-lhes licito saborear todos os fructos d'aquella mansão de delicias, tirante o fructo d'uma só arvore: feito isto, a sua felicidade seria perfeita. Conta-se que elles estavam alli mais innocentes que os recemnascidos e ao mesmo tempo mais instruidos que os anciãos d'hoje em dia. Obedecia-lhes a natureza e elles comprehendiam-lhe a voz. Cuidados nenhuns, nenhumas lagrimas, primavera eterna, e a mocidade immorredoira em todo o seu ser. Deus folgava descer-se do ceo para n'elles contemplar a sua viva imagem; e então lhes mostrava seu rosto e lhes fallava.

Entretanto Satanaz foi esperal-os debaixo da arvore da Sciencia, cujo fructo lhes fez comer. Não se corromperam per si mesmos como Satanaz; mas eram livres e o tentador estava alli. Quem tinha seduzido os anjos como deixaria de seduzil-os a elles? Que considerações o reteriam? Não receia Deus por que Deus lhe não póde aggravar o supplicio, pois que esse supplicio é eterno, e o inexprimivel horror de tal castigo consiste na eternidade d'elle. Pelo que respeita á piedade, é sentimento que Satanaz não conhece, pois que Deus lh'a não mostrou a elle, o primeiro de todos os seres que a necessitára. Á semelhança das outras creaturas, tem sómente aquillo que recebe; e o que brilha em si não é o amor divino, é a divina colera que o conserva devorando-o.

Quaes foram as consequencias da queda?