Vida De Hospedeira

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Vida De Hospedeira
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Marina Iuvara

VIDA DE HOSPEDEIRA

O mundo é a minha casa

Tradução de Aderito Francisco Huo

Esta obra é protegida e reservada pelos direitos do autor. Todo uso improprio ou difusão da obra ou parte dela trâmite suporte mecânico, electrónico ou qualquer outro, tradução e representação em público sem o consentimento do autor é proibido.

Este livro é uma obra de fantasia. Personagens e lugares citados são invenções do autor e têm o fim de conferir veracidade à narração. Qualquer analogia com factos, lugares e pessoas, vivas ou desaparecidas, é absolutamente casual.

© 2020 - Marina Iuvara

Esta obra es la revisión de la primera edición de «Vida de hospedeira».

Han transcurrido varios años desde la primera publicación de este libro, así que he decidido actualizarlo y completarlo.

Bienvenidos a bordo: this is the next flight.

Marina Iuvara

Anjos do ar

Mulheres independentes, uniformizados, viajando pelo mundo.

Ícone glam de liberdade.

Mulheres, sobretudo, que desenvolvem uma profissão com peculiaridades únicas, e por isso fonte de alegria e satisfação irrepetíveis, mas também densa de repercussões difíceis e reflexos muito importantes na sua vida.

As assistentes de bordo são tradicionalmente identificadas no imaginário colectivo por aquilo que exteriormente parece: os seus uniformes elegantes, as paragens em toda parte do mundo, o contacto e o conhecimento com inumeráveis pessoas, ou as compras por todo o lado. É fácil que suceda de encontrá-las no aeroporto, juntamente com toda a tripulação: são vistas ainda hoje, as vezes, com admiração e um bocadinho de inveja. «Quisera tanto fazer eu também este trabalho», pensam secretamente muitos, ou então o oposto: «não poderia fazer por acaso este trabalho.»

Realmente as hospedeiras – os assistentes de bordo em geral, naturalmente – desenvolvem com eficiência e profissionalismo um papel de grande interesse, e são efectivamente uma componente fundamental da linha de segurança de voo, capazes de gerir com técnica e paciência emergências de todo tipo, devem estar sempre preparados para resolver os mais impensáveis e complicados imprevistos, garantindo além da distância dos afectos e da casa, ou a difícil organização da gestão do seu tempo, e também os efeitos do fuso horário.

Neste livro procurei contar os aspectos menos notáveis e dificilmente imagináveis.

Dedico-o, por isso, a todas nós.

Introdução

A figura da hospedeira aparece pela primeira vez nos anos 30 numa linha aérea americana.

No inicio muitos duvidavam da utilidade desta tarefa: frágeis e graciosas raparigas, cujo peso não devia superar os 52 quilogramas, a altura os 163 centímetros, de idade inferior a 25 anos, vestidas com o mesmo uniforme, rigorosamente formadas como enfermeiras, que convidavam com gentileza para ocupar o seu lugar no avião.

A sua figura e o seu papel sofreram muitas mudanças, ao longo dos anos.

Em 1940, depois do ataque de Pearl Harbour, as hospedeiras foram recrutadas nos aviões militares para servir a pátria.

Em 1950 foi elaborado o primeiro manual da perfeita hospedeira: forte como um soldado, afectuosa como uma mãe, disposta como uma geisha, informada como um guia turística.

Nos anos 60 e 70, as hospedeiras foram motivo de orgulho ao representar as companhias aéreas e chegaram a ser comparadas aos modelos.

Eram vistas como mulheres dotadas de beleza, desejáveis e invejadas, que tinham a possibilidade, não ainda ao alcance de todos, de viajar e conhecer o mundo.

Em 1960 no diário New York Times uma estatística americana descreveu as hospedeiras como mulheres perfeitas porque, percorrendo 300 milhas subindo e descendo nas poltronas, aparecem muito treinadas e de resistência comprovada à fadiga.

Com a chegada da revolução feminista e das posteriores conquistas em matéria de direitos das mulheres, em 1971 foi abolida a lei que proibia elas de casar; em 1974 o salário tornou-se igual àquele dos homens; em 1975 foi eliminado a interdição de maternidade e em 1979 foram abolidas os limites de peso.

Até hoje, a responsabilidade primária de uma hospedeira é garantir a segurança dos passageiros a bordo dos aviões, mas também assisti-lo durante o voo.

Prefácio

Perfeitamente treinadas no campo da segurança aerea, habilitadas e certificadas aos primeiros socorros médicos, competentes em línguas estrageiras, aptas nadadoras, cuidadas, sorridentes, bem educadas, as hospedeiras têm a necessidade de ter não apenas que uma predisposição às relaçoes inter-pessoais, também um excelente equilibrio emotivo e um forte sentido pratico.

O estilo de vida é frenetico, o trabalho é fatigante e stressante, mesmo por causa dos fusos horários, o ambiente em que operam é pressurizado e o solo sobre o qual se movem durante o trabalho não está sempre na posição horizontal, e todavia agem com mestria de si, e devem estar sempre preparadas para orientar-se em situações imprevisíveis.

As hospedeiras ficam ao lado de pessoas de todas as etnias, cultura, educação, proveniência e caracter.

Encontram crianças esplendidas como raios de sol ou, as vezes, mesmo mais turbulentos que as turbulências, pessoas mais velhas às quais reservar prudência e sensibilidade, personalidades que requerem liberdade e privacidade, homens de negócios, celebridades do entretenimento, grupos de turistas elegres e despreocupados, casais romenticos em viagem de núpcias, doentes por cuidar, emigrantes de países longíquos, religiosos e cultores de crenças diferentes. Todos devem ser tratados com cuidado e profissionalismo.

Elas devem gerir as urgentes incumbências por terminar antes de cada descolagem e aterragem, seguir as disposições relativos à segurança e às relativas tarefas e deligências, observar as precisas hierarquias por respeitar, zelar pelos múltiplos pedidos por satisfazer, estão sujeitos a longas e contínuas permanencias longe de casa, e a relações sociais privados tornados difíceis por causa das peculiares ausências determinadas por esta actividade laboral.

Os aspectos onerosos desta profissão sem igual são múltiplos, pelo menos como são pouco imaginados e conhecidos por muitas pessoas que as observam do lado de fora.

Contudo todas as hospedeiras, independentemente de tudo, adverte princípios de melancolia e nostalgia, quando não voa.

Esplendidos postais são guadados nos seus pensamentos e toda eventualidade, e mesmo o voo mais difícil é sempre uma experiencia que enriquece.

Os sushi japoneses, a areia das Maldivas, os aranha-céus de New York, a movida argentina,a alegria brasileira, os paraisos de Londres e o perfume de paris apresentam-se no horizonte, ganham vida, e oferecem únicas emoções, ainda que em restritos espaços de existencia, embora ensopados de cansaço pelo fuso horário, ainda que cada vez mais pricipitados pelo pouco tempo a disposição.

Espectaculares apresentam-se os pores-do-sol vistos por cima, por cima das nuvens.

A bordo dos aviões pode acontecer de tudo: muitos passageiros distinguem-se pela sua classe e o estilo incomparável, alguns revelam-se menos elegantes, outros suscitam ternura.

Pode suceder que algumas pessoas percam o controlo se estiver nervosos ou tensos, muitos têm necessidades de um suporte com reflexos psicológicos porque sofrem de patologias aerofóbicas ou claustrofóbicas. Excepcionalmente, por exemplo, os episódios de quem, bebendo um pouco demais, arrisca de tornar-se violento. É de todas as formas muito amplo, o espectro das possibilidades.

No avião, efectivamente, mesmo o mais pequeno e aparentemente insignificante episódio ou incidente, pode transforma-se em algo que necessita da mãxima atenção.

Os necessitados de cuidados devem ser imediatamente assistidos, as emergências médicas muitas vezes são brilhantemente resolvidos.

E praticamente em cada voo, infalivelmente, verificam-se comoventes experiências impregnadas de profunda humanidade e solidariedade.

Como é que é possível reconhecer uma hospedeira?

- Controlar os objectos que possui em casa: não percebem o que sejam, para que servem, donde provêm?

- observar as fotos que expoe: os cenários parecem pertecer à outra parte do mundo?

- Investigar se nunca saboreou um frango frito das barracas de Bangkok, frequentado os melhores restaurantes franceses e consumido room-service diante dum espelho num luxuoso hotel.

Prestem atenção aos horários em que come ou dorme: não respeitam ritmos habituais?

- Observem-na ao almoço: come muitas vezes em pé, mas não vê a hora de sentar-se?

- Verifiquem na geleira: colocou uns copos plásticos ao lado de garrafas de água?

- Questionem-na onde comprou uma peça de roupa que traz vestido: deveriam apanhar um avião para tê-la também vocês?

- Não pode renunciar àquele par de jeans de cintura baixa vistos em Londres na Oxford Stret, conhece as datas dos saldos da Gap em New York, adquire roupas de marca Gucci nos outlet de Miami, as carteiras de Luis Vuitton nos saldos em Tokio, o palmito para a salada na Argentina, o suco de açaì, o pan de queso e a tapioca em Brasil?

- Consegue adquirir vestuario actual nos convenientes saldos da época nos lugares onde as estaçoes estão invertidas em relação as suas?

- Faz os retoques apenas no seu cabeleireiro preferido em San Paolo ou em alternativa em Milão?

 

- Tem a impressão que os cremes de Tel Aviv e os shampoo orgânicos adquiridos em Toronto são os melhores?

- Observem-na com atenção: tira ou mal puxa os sapatos com a biqueira apenas lhe é possível? (espreitem por baixo da mesa ou no carro)

- Reparem dentro do armário para sapatos: estão presentes muitos decotes da mesma cor?

- Fala com excessiva desenvoltura de lugares para ti alcançáveis só com a fantasia ou dos quais bastaria uma vida para visitá-los todos?

- Questionem-na qual seja o lugar mais interessante e atraente de todos os lugares que tenha por acaso visitado: o sofá de casa é o primeiro na classificaçao?

- Peçam comentários sobre notícias da actualidade seja culturais como politicas, mas sobretudo escandalosas: tem sempre uma última inedeta actualização?

- Verifiquem o conteúdo da sua carteira pessoal: se podem encontrar os objectos mais variados para cada eventualidade? (lima, livro, maquilhagem, pequena lanterna, sombrinha, navegador, maquina fotográfica, pc portátil, meias de reserva, escova de dentes).

- Tem uma infinidade de números telefónicos e contactos de colegas e desconhecidos, mas não consegue recordar o lugar, ano e modalidade em que se conheceram ou frequentados?

- Toda vez que sente o cheiro de fumo, controla a proveniência e prontifica-se para procurar o extintor mais próximo?

- Reconhece à primeira vista qualquer tipologia de caracter e social de cada pessoa, conseguindo relacionar-se com cada um, a partir do mais jovem até ao mais velho?

- Não se perde de alma se deve socorrer alguém em dificuldades?

- Sabe socializar-se brilhantemente em todas as ocasiões, mesmo amando os momentos de solidão?

- Não experimenta tão-pouco um pingo daquele inesperado ataque no estômago que vos atinge mal o avião inicia a sua descolagem?

- Bisbilhotem no quarto: tem sempre uma mala ao alcance da mão à espera duma partida inesperada, consegue fazer entrar tudo, o necessário que poderia ser útil por mais de uma semana em pouco espaço, e não se confunde se tem apenas uma hora de tempo de pre-aviso para fazer uma viagem repentina a partir de Roma até Santiago do Chile?

Se todas as respostas fossem afirmativas não tenham dúvidas: trata-se duma mulher com asas.

Bom voo

Como estavamos.

Volto para a minha terra, na sicilia, pelo menos duas vezes por ano, para as festividades e durante o periodo do verão, turnos e férias permitindo.

Viajar no avião enfim é para mim normal, faz parte do meu trabalho. Ainda que passavam muitos anos, todas as vezes que chego, junto de um intenso cheiro da flor de laranjeira que espalham os pomares laranjais e o vento do sudeste proveniente de Africa, envolvem-me silenciosos mesmo as recordaçoes da minha infancia.

Hoje é uma quinta-feira de Julho: os trinta e seis graus estão na regra.

Durante o verão esta terra fica quente, luminosa e exposta ao sol: tudo parece mais lento e custa para manter um ritmo de vida dinâmico por causa desta temperatura que eu gosto, mesmo sendo as vezes intrometido.

Os raios solares espalham-se sobre todo o espaço livre da pele, penetram até aos ossos, muitas vezes me robustecem, e as vezes deixam-me relaxar até atordoar-me para depois adormecer.

A pausa do meio-dia, usual nesta região, interrompe a produtividade diurna. Escuto o som repetitivo e quase hipnótico das palas do ventilador, colocado em cima dum banco antigo; a sua brisa contrasta o ar quente e sufocante desta tarde de céu azul, desprovido de nuvens.

À noite a temperatura sofre uma ligeira descida, e os amáveis ventos suaves aliviam o clima de noite.

Estou hospedada na casa dos meus pais e cada detalhe sobre a qual os meus olhos debruçam-se faz ressurgir na minha mente cenários vividos e recordados enfim longínquos.

Antevejo uma saia interior de seda cor creme com delicados bordados de um tom ligeiramente mais claro, pendurada no guarda-vestidos estilo Luís XVI que a minha mãe escolheu há mais de quarenta anos para embelezar o seu quarto que desde então ficou sempre o mesmo, inalterado ao longo do tempo; eu dei-me conta, pelo contrário, de ser tão diferente desde quando me agachava debaixo dos cobertores daquela enorme cama para escutar as fábulas narradas por ela antes de ir à cama, e diferente mesmo desde quando, muitos anos depois, já adolescente, às escondidas conseguia experimentar os seus colares mais preciosos, espelhando-me naquela grande moldura dourada de um espelho, colocada no centro do quarto, enquanto dançava de forma espontânea e folgada sozinha, como uma descarada, assim teria dito o meu pai, se me tivesse visto.

Lembro de ter possuído, então, uma saia interior de uma cor idêntica àquela da minha mãe, eu gostava vesti-la pela sensação de ligeireza e frescura que me reconfortava durante os dias mais húmidos.

Na educação por mim recebida esta indumentária era permitido apenas em casa, e vestido tendo o cuidado de encostar as persianas, donde evitar indiscretos olhares externos, visto que a varanda apresentava-se sobre um grande pátio.

Induziram-me desde pequena para esconder-me, e para cobrir-me como deve ser, diante de qualquer pessoa.

Pouco a pouco vinham insinuadas gotas de castidade na minha alma, dia após dia.

«Cubra-te, cubra-te que alguém pode te ver!» chegava aos meus ouvidos se as vezes contemporizava no meu quarto vestindo, esquecendo de puxar as cortinas para fechá-las.

Ainda hoje, antes de despir as roupas, verifico que tudo esteja fechado e que ninguém possa ver-me, mas isto não o confessei por acaso nem para a Valentina, uma minha querida colega que com a qual durante anos partilho um apartamento, perto do aeroporto, na cidade onde actualmente resido: Roma.

Desde criança obedecia com escrupulosa atenção as regras, para evitar de sujeitar-me aos castigos, excessivamente severos muitas vezes.

Havia uma austeridade de ideias e hábitos transmitida de geração em geração. A minha tia Carmela, apelidada por Lina, contava que a primeira vez que ousou dizer um palavrão foi convidada a abrir a boca e tirar para fora a língua.

«Que estranha brincadeira!» pensou.

A sua mãe, a minha avó Giuseppina, pegou um dos ganchos que recolhiam os seus cabelos compridos, e com ele espetou a sua língua.

Vistas as consequências, poucas entre filhas e netas da minha família dizem palavrões, não obstante, nos momentos oportunos, lhes ocorre.

Estou aqui em Catania de férias por uma semana e encontro de novo os antigos sabores, cheiros, sensações.

Acolhe-me o solar sorriso da minha mãe, que se contem ao abraçar-me forte como queria, talvez por medo de esmagar-me.

Acaricia repetidamente os meus cabelos pretos como a pez iguais aos seus, compridos até mais abaixo dos ombros, deixados soltos para libertá-los das constrições das ataduras impostas pelas regras do meu trabalho.

A pele da mamã é branca e delicada, mórbida como a areia, e cheira como pétalas de rosa, misturados a citrinos.

Sempre lhe pareço bastante magra – mesmo estando, do meu ponto de vista, pesada mais ou menos por aí um ou dois quilos, relativamente ao meu utópico peso ideal – por conseguinte convida-me para consumir aquilo que abundantemente coloca no meu prato.

Hoje preparou para mim, a sua Annuzza, os meus pratos preferidos: linguine (tipo de massa) a preto de sépia e peixe-espada no cartucho.

Ela não se farta por acaso de me olhar e acarinhar-me, eufórica e emocionada ao único pensamento de ver-me de novo.

Também as minhas tias e primas demonstraram o seu afecto com todo o gesto todas as vezes que me viam, querendo ouvir tudo sobre as minhas viagens e sobre o meu trabalho.

Eu sou, no imaginário delas, uma parte do mundo delas que foi para um outro: aquele mundo feito de sonhos diante de uma revista, atraente todavia descrito como perigosa, tentacular, capaz de impelir-te irreversivelmente. Eu sou a prova viva de que o mundo sim, muda-te, mas permanecendo tu mesma, porque aquilo vai depender apenas de como és feito por dentro. E elas são, para mim, a parte mais importante daquilo que aprendi durante todas estas viagens: que podes ir longe só se tens um lugar interior donde partiste, e onde regressar. Aprendi que poderás estar em toda a parte, mas na verdade ficarás sempre onde estão as tuas raízes emotivas.

Ficaram maravilhadas pelas fotos que tirei em New York e gostariam de partir comigo para visitar a Grande Maçã. Desejariam também que as levasse para Hong Kong para dar uma volta de passeio ao Starley Market e ao Lady´s Market, os mercados nocturnos dos quais falei para elas muitas vezes e com entusiasmo, ou passar da Casablanca onde existia a Medina com as suas cores e as suas especiarias, onde a hortelã para o chá tem um sabor mais forte e um cheiro mais persistente da nossa hortelã local, e saborear aquelas tâmaras excepcionais que lhes tinha oferecido regressado dum voo. Ou passear comigo nas ruelas fervilhantes de shanghai, mergulhados naquela enchente variegada e aquelas mil cores que tento descrever, e não consigo por ventura como gostaria.

Elas têm um grande sentimento de hospitalidade, uma arte natural de acolhimento transmitida no decurso de séculos, e me saúdam sempre com o habitual beliscão nas bochechas, atirando não próprio delicadamente de ambas as partes, e com um abraço seguido pela mesma frase desde quando era criança: Annuzza bedda, sangu mil!, Zzuceberu mil!

O meu pai, mesmo estando feliz vendo-me de novo, fica sempre muito silencioso, pouco comunicativo e extremamente reservado.

Temos a mesma cor dos olhos, azul celeste, mas nos seus uma ligeira tonalidade violácea faz transparecer constantemente reflexos que as vezes me entristecem.

Ele é frequentemente inclinado a fazer previsões desfavoráveis, impregnadas de ânsia e preocupação, como a minha melhor amiga Stefania, também ela siciliana.

É um homem muito instruído, gosta de estudar e está sempre informado sobre todos os acontecimentos sociopolíticos actuais.

Discreto nos modos e formal no seu comportamento, fica durante horas fechado no seu escritório, mas na hora do almoço e do jantar junta-se a nós e todos juntos à mesa.

O que os meus pais, parentes e a sociedade onde vivi ensinaram-me é a grande importância da família, o respeito das regras e, em particular, o vínculo inviolável do casamento: um valor para defender sempre, a todos os custos, frequentemente com enormes sacrifícios.

Uma união para salvaguardar de todas as formas, mesmo na presença de problemas, que terão de ser superados ou combatidos, as vezes até ignorados.

Esta ligação indissolúvel tem um carácter sagrado absoluto que apenas a morte pode desatar.

Até que a morte nos separe.

Uma promessa que não pode ser mais negligenciada, a partir do momento em que é estipulada.

Uma tarefa rigorosa e constante, oportuno para conservar firmemente as raízes da família.

Não são somente o sentimento de afecto, a cerimónia oficial, o profundo dever que te é incutido com a educação desde criança, a ligar a relação matrimonial, mesmo o juízo premente da sociedade onde vives te induz e trabalha assiduamente até que se mantenha integra a ligação familiar.

No casal, a figura feminina tem um papel muito importante: a lealdade, para com o esposo e os filhos, é absoluta.

O homem dedica-se conduzindo melhor o papel de chefe da família, tem a obrigação de tomar o seu cargo de tutela e de suporte da mesma.

Lealdade e obrigações, amor e respeito.

Não importa se não for notáveis as duas últimas rubricas, entendidas que possam enfraquecer-se.

O casamento é algo sobre o qual contar durante toda a vida, os filhos são o bastão da velhice, o fim não é permitido, ou apenas uma coisa de loucos, algo que vai fora da ordem pré-estabelecida, que é preciso evitar, encontrando qualquer remédio: no ritual do casamento a declaração da fidelidade é uma promessa que se honra, na sua forma absoluta.

Estas são as normas que me foram incutidas desde criança. Sobre o meu destino estava certa, teria respeitado estes ensinamentos.

Tive uma educação muito rígida, feita de atitudes autoritários, ordens, obrigações e punições sem ter a possibilidade de replicar ou de pedir esclarecimentos, chegando, enfim na adolescência, para ter serias dúvidas e confusões no que fosse realmente justo ou precisamente errado.

As rígidas regras seguiam as directivas da educação que foi transmitido ao meu pai nos anos 40, sem se aperceber das profundas transformações sucedidas e dos movimentos dos anos 68, aos quais presenciei apenas com o meu nascimento.

 

Mesmo assim, a revolução social dos anos 70 parecia não alcançar minimamente a nossa realidade, nessa altura.

Tudo era preto ou branco, justo ou errado, concedido ou proibido e não existiam cores matizados, renuncias, meios-termos.

Os modelos e o estilo de vida acompanhados eram antiquados e ultrapassados, a meu ver.

Para mim o branco e o preto eram apenas os extremos de uma múltipla variedade de cores, contudo os ensinamentos deviam ser seguidos, sem réplicas e oposições.

A partir da orientação escolar e até às amizades, aos horários, aos lugares por frequentar, ao vestuário, ao desporto, todas as decisões seguiam pareceres, tendências e gostos não meus e nem sequer iguais às minhas inclinações: apenas àquelas do meu pai.

Ele deliberava as pessoas que podia frequentar, depois de uma cuidada selecção antecipada por uma conversa de apresentação inicial, cujos pré-escolhidos deviam sujeitar-se.

Questionei-me muitas vezes qual fosse o meu caminho, o que fosse realmente importante, quais os meus reais desejos e objectivos, e frequentemente as minhas respostas eram totalmente diferentes daquelas impostas pelos meus pais, que certamente agiam para o bem e para uma melhor formação da minha pessoa, espelhando somente sonhos: deles.

Seguia diligentemente as direcções sugeridas e frequentemente me encontrava ocupada a recitar um papel que certamente agradava aos outros, mas não a mim, e sentir nascer e desenvolver-se desejos que não representavam o papel que interpretava, e que não poderia desvendar, porque sabia que seriam mal suportadas: estava maravilhada pela liberdade e pela independência, pelas viagens e pelos lugares longínquos.

Quase sempre tentei de fechar com a chave estes desejos e sonhos, como um caixote, com um grande cadeado, dentro de mim, dentro da minha mente, dentro do meu coração que batia forte por aquelas atracões que são consideradas bastante desinibidas e inconvenientes.

Os meus sonhos de viajar, querer viver no exterior, afastar-me da família para ir viver sozinha, eram com frequência sufocados e desta forma os tinha bem aprisionados e escondidos: no interior daquele caixote não conseguia perceber grito nem dor causado pelo desgosto daquela renúncia.

Estava orgulhosa por ter encontrado para eles um lugar seguro e, permanecendo naquele lugar tão obscuro, não tinha a possibilidade de tomar conhecimento de forma consciente.

Não desejava que as minhas verdadeiras paixões saíssem ao ar livre, a não queria que tão-pouco existissem, na medida em que teriam arranjado apenas problemas, se por acaso tivessem sido tornados notáveis: não apenas teriam gorado as expectativas, mas, de todas as formas, não teriam tido vida fácil e teriam sido decepados ao nascer.

O meu pai, advogado, estava certo que teria seguido as suas pegadas.

Vivi assim grande parte da minha adolescência sem grandes sofrimentos, e brilhantemente superava os problemas graças ao meu subtil procedimento secreto, isto é sufocando e escondendo os meus reais desejos e procurando satisfazer os outros.

Um dia, porém, uma das tantas gavetas ficou um pouco demasiado cheio e, para maior segurança e não sem esforço, experimentei colocar um outro cadeado.

De forma inesperada rebentou, abriu-se, ouvi gritos, choros, soluços como se fossem de uma criança, pedindo ajuda, suplicasse para sair, para ser ela mesma.

Tranquei ainda uma vez com força, aquela gaveta.

Mas aqueles sons e aquelas imagens tentavam sair e libertar-se.

Eram insuportáveis.

O meu coração batia cada vez mais forte para sobrepor-se em tudo e incapacitar-me para esquecer.

Era uma gaveta, apenas uma!

Tinha apinhado desta forma muitos sonhos, pensando assim de poder ser uma mulher serena e feliz.

Deveria preocupar-me?

O que teria acontecido se tivesse aberto escancaradamente também uma outra vez, e depois talvez uma outra ainda?

A coisa aterrorizava-me, mas não posso não reconhecer que começou a seduzir-me cada vez mais.

Questionei-me, um dia, quem eu era realmente.

Questionei-me onde é que estivesse a ir e quem tivesse escolhido o meu caminho.

O que descobriria ao abrir aquelas gavetas?

Conseguiria reanimar a minha verdadeira essência reduzida à agonia pelos condicionalismos externos?

Nunca estaria em condições de superar as minhas fraquezas e de encarar os meus medos?

Sou uma pessoa optimista, amo a vida; sou social e julgo importantes como fundamentais as amizades.

Entre mulheres, infelizmente, não é insólito instaurar-se de maçadores como inúteis sentimentos de inveja e de ciúme, por isso, chegar à especial solidariedade e à cumplicidade que tende realmente unidas torna-se extremamente raro.

Não é fácil encontrar uma verdadeira amiga, mas quando se tem esta sorte desaparecem orgulho e competição e nasce o respeito total, cresce a confiança cega e a lealdade.

A união torna-se indissolúvel, a amizade torna-se um bem por salvaguardar de improváveis como raros e excepcionais acontecimentos negativos que teriam a força de enfraquecê-la, mas que normalmente nada podem contra o agradável bem-estar que experimente estando unidos, confiando-se segredos mais íntimos, partilhando as risadas, as experiencias da vida, as emoções, mesmo criticando-se mutuamente e encontrar soluções comuns: o objectivo principal é a união e a força do casal.

Conheço uma pessoa especial que espelha estas características. Stefania não é apenas uma amiga, as vezes assume-se como mãe que espalha conselhos, as vezes é a filha a quem dispensar o meu amor; pode parecer estranho, mas vê-la interpretar o papel de namorada ciumenta não é improvável, sobretudo se a ignoro um pouco, mas ela permanece um ombro sobre o qual encostar, uma palavra de conforto, o respeito do meu silêncio, a compreensão das minhas fraquezas, mas também um doce peso por suportar.

Stefania tem um físico atlético, é muito alta, alguns centímetros a mais que eu.

Os seus cabelos são castanhos e luzentes, com umas tonalidades tendentes ao vermelho carregado semelhantes àqueles da madeira de amaranto, muitas vezes colhidos numa trança que se move sinuosa nas suas costas. Veste-se habitualmente de forma casual, tem a predilecção pela prática no que veste; eu, pelo contrário, prefiro usar roupas mais femininas, a seu ver vaidosas e antiquados.

A sua exuberante sinceridade combinada com uma natural fraqueza conflui, as vezes, cruéis juízos.

Não obstante uma estrada de centenas de quilómetros agora nos separa, sei sempre de poder contar com ela, e vice-versa.

Nos suportamos, nos criticamos obstinadamente, nos proferimos opiniões, nos elogiamos e nos mandamos passear… sempre com grande afecto, e é difícil, uma viver sem a outra.

A segurança recíproca torna especial esta verdadeira amizade, um ingrediente que normalmente escapa nas relações amorosas.

Nos une uma grande paixão: partir lá para metas distantes.

Sempre adorei viajar, me dá um sentimento de felicidade.

Quando me distancio de tudo e de todos encontrando-me em dimensões e fusos diferentes é como se conseguisse avaliar o resto por fora: de longe, com efectivo destaque seja físico como mental.

Tiziano Terziani escreveu: a nossa destinação não é por acaso um lugar, mas um novo modo de ver as coisas: e é desta forma também para mim, ou melhor para nós os dois.

Viajando consigo reparar melhor dentro de mim, para ver com clareza quem sou, e para eu poder melhorar.

É como se o mundo com todos os seus problemas se distanciasse, mudasse de horizonte, e eu readquiro as minhas forças, as minhas energias.

Afastando-me da realidade rotineira, uma carga de adrenalina reforça-me tanto assim para me dar vitalidade e positividade enormes, ajudando-me a encontrar as respostas certas.

Viajar é uma invasão de mundos que não são os meus, é sempre uma satisfação que me proporciona um emocionante sentimento de liberdade, e me ajuda a descobrir de novo parte da minha autonomia.