Os bastidores da verdade

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A tarde, ao anoitecer

Toca o telefone. Celina, a empregada doméstica, ainda em casa (sai por volta das 19h), atende:

– Boa tarde, quem fala?

– Boa tarde, sou uma amiga da professora Luísa, será que pode pôr-me em contacto com ela?

– Não sei se a doutora já chegou à casa, espere um pouco… quem devo anunciar?

– Diga-lhe que é a amiga Rita.

Deixa o telefone pousado na credência do hall de entrada e dirige-se ao escritório do apartamento. Bate levemente à porta e pergunta se a pode entreabrir.

– Sim, Celina, o que é? Reparei que o telefone tocou, é para mim?

– Sim, doutora, é a sua amiga Rita ao telefone.

– Diga-lhe que já vou atendê-la…

– Assim farei. Precisa de mais alguma coisa da minha parte?

– Não, Celina, por hoje é tudo… bom fim de semana e até 2ª feira.

– Também para si um bom fim de semana.

Celina retira-se e confirma a Rita que Luísa irá atendê-la de imediato. Passado um momento, Luísa pega no telefone e saúda Rita.

– Olá Rita, que surpresa o teu telefonema, há quanto tempo não falamos!

– Sim, é verdade, a vida que levamos não deixa grande folga (depois de um breve silêncio)… Então como vão as coisas pela escola?

– Tudo na mesma… sabes como é, e contigo?

– Continuo na mesma agência de publicidade, acho que da última vez que falámos já trabalhava lá, fui promovida a directora criativa há 3 anos, por aí tudo bem… e o Alexandre, os teus filhos?

– Tudo sob controlo… o Alexandre cada vez mais atarefado e a Alice está em Barcelona a trabalhar num importante atelier de design de moda. O João Carlos é um adolescente típico, “cabeça no ar”, mas bom rapaz e aluno aplicado q.b., então e tu?

– Olha, é mesmo por isso que pensei em ligar-te (faz um novo silêncio, pigarreia um pouco e continua), nem sei muito bem como dizer-te isto, mas lá vai… sabes que sou casada com o Hélder, ainda te lembras dele?

Luísa sente a hesitação na voz de Rita o que acentua a curiosidade pelo motivo do telefonema, de facto já não falava com esta sua amiga dos tempos de faculdade para aí há uns dez anos, pelo menos.

– Sim, claro que sim… ainda me lembro dele do tempo do vosso namoro, aliás acho que nos encontrámos algumas vezes já depois do vosso casamento… estava aqui a tentar lembrar-me, a última vez foi na passagem de ano em 2005, ou será que foi em 2006? Quando combinámos, com mais uns casais amigos, fazer o réveillon em Vilamoura.

Rita capta a afabilidade da resposta de Luísa, e sente-se menos constrangida.

– É, foi em 2006 e foi tão agradável, nem sei como não voltámos a encontrar-nos depois… enfim, são as boas recordações que ficam. Sim, eu e o Hélder já somos casados há 25 anos, estamos quase a fazer as “bodas de prata”, coisa pouco comum na nossa geração, mas enfim! Não sei se te lembras que temos dois filhos, o Carlos que tem agora 22 anos, deve andar pela idade da tua filha, e está a concluir o mestrado integrado em engenharia mecânica e a Joana que está agora com 18 anos e está no 2º ano de medicina, por aí não tenho razões de queixa, para o que se vê e ouve por aí. Não, o meu problema não é esse. O melhor é ir direito ao assunto… quem me preocupa é o Hélder, anda triste, sorumbático, fechado comigo e irritável, comigo e com os filhos… não sei o que se passa com ele, está diferente…

Luísa começa a adivinhar a razão do telefonema de Rita e decide indagar um pouco mais.

– Mas o que se passa, algum problema no trabalho?

– Não me parece, sabes como é, quem trabalha no sector industrial está sempre sujeito a percalços, mas não me parece que seja esse o problema, deves lembrar-te que ele é engenheiro mecânico, o filho seguiu-lhe as pisadas, e é director de produção numa empresa do sector têxtil, não me parece que seja por aí o problema… aliás, é isso que me preocupa mais, não percebo o que possa estar a acontecer com ele, qual a razão do distanciamento dele. Falei-lhe em consultar um psicólogo ou um médico, mas não aceitou… em desespero de causa tomei a liberdade de lhe falar no Alexandre, e ele encolheu os ombros e disse que talvez aceitasse falar com ele. Achas que é possível que o Alexandre o consulte?

– O que importa é que ele aceite, e compreenda que é uma consulta médica e não um encontro com um amigo. Mas penso que não há esse problema, não acho que eles tenham desenvolvido alguma vez uma relação de amizade, nem nada parecido com isso.

– Concordo contigo, então posso dizer-lhe que entre em contacto com o Alexandre?

– Sim, claro.

– Podes dar-me o contacto telefónico do teu marido? E não te importas de lhe falar sobre o contacto que o Hélder vai fazer com ele, e também sobre a resistência do Hélder em abrir-se sobre o problema que tem?

Luísa aceita o pedido de Rita e informa-a do contacto de Alexandre (reconhece de si para si que sem grande vontade). Mas a que propósito é que esta “marafona emproada”, que nunca lhe agradou por aí além pensou em incomodá-la com os problemas conjugais? O marido anda indiferente e deprimido, pudera ter de aturá-la, não deve ser tarefa fácil! Não pode, ainda assim, deixar de ficar intrigada com o contacto. O que lhe deu para indicar a Hélder o nome de Alexandre sem antes pedir-lhe opinião ou conselho para tal? E a que propósito a envolveu a ela no plot, no papel de go-between entre ela e Alexandre?

Bom, vai estar atenta à expressão de Alexandre ao receber o recado. Melhor ainda, vai preparar o momento estratégico para lho transmitir. São quase 20h e Alexandre deve estar a chegar. Lembra-se de Joca e compõe o número no seu telemóvel… ao fim de um minuto nada, nova tentativa e o mesmo resultado. Decide aguardar que o filho lhe ligue, enquanto pensa, de si para si, que os homens da sua vida são muito controladores.

Enfim, tal pai tal filho. Está nestas “digressões” ideativas quando ouve o toque do filho, sinal para lhe ligar, o que faz de pronto. “Então J, tudo bem?”, “Sim M, tudo jóia… fomos ao museu do conhecimento, um bocado “seca”, mas tudo bem! A malta vai jantar e depois pra Pousada”, “Vê lá, não te deites muito tarde… manda-me um SMS antes de te deitares” e, do outro lado, uma voz de timbre chateado exclama um “Humm que chatice, és sempre a mesma. Vá, não contes muito com isso, mas não fiques preocupada, tá-se bem!”, “Vá, mas tem cuidado, não te deites muito tarde, pouca “folia” Beijão da M”, “Tá beijão também pra ti, até amanhã”.

Desligou e, logo de seguida, foi assaltada pela dúvida de quem iria buscá-lo à estação, será que combinou com o pai? Mas não vai a ligar-lhe de novo, pergunta ao pai mais daqui a pouco. Ouve a chave rodar na fechadura da porta e sente Alexandre assomar à entrada. Sorri excitada, dirige-se para ele e prepara-se para o beijar na face quando se sente abraçada com arrebatamento pela cintura e envolvida num corpo a corpo sensual cumulado por um beijo longo, profundo e intenso em que os lábios se esmagam num choque erótico com notas de café à mistura, e as línguas dançam carícias húmidas e intensas com sabor a menta e chocolate.

Um beijo intenso que parece não ter fim. Ao fim de algum tempo desenlaçam-se, sorridentes, ela enrubescida de prazer, ele “guloso” de desejo, e ela exclama um “Ufa, daqui a bocado sufocamos. Que esfaimado ele vem! É tudo apetite?!”, “Por ti amor, ou já te esqueceste de como te desejo ardentemente?!!”. Ela olha-o, simulando surpresa, e coloca um meio sorriso enigmático enquanto diz “De há uns tempos a esta parte pareces-me um bocado esquecido. Mas afinal ainda te lembras!”, “Nos lembramos” corrige Alexandre com um suspiro de alívio. “Ah, quase me esquecia, tenho aqui uma lembrança para ti”.

Luísa fica especada, surpresa e sem saber como reagir. Alexandre abre a pasta e retira um pequeno embrulho que entrega a Luísa. “Abre, é para ti”. Desembrulha ansiosa o que lhe parece ser uma caixinha quadrangular e apercebe-se que deve ser uma peça de joalharia, mas qual? Levanta a tampa e descobre um escaravelho de ouro pequeno e muito bem lapidado… sente-se emocionada, lacrimeja um pouco e volta a beijar Alexandre nos lábios, agora com emoção mal contida.

– Como te lembraste? – pergunta num murmúrio.

– Nunca me esqueci do que me contaste quando começámos a namorar.

– Tanto tempo! Foi a única coisa que nunca perdoei à minha mãe… ter perdido o escaravelho de ouro que o meu pai lhe ofereceu quando eu nasci. Era para ela, mas tinha a ver comigo!

Diz tudo isto de modo pausado com um timbre triste na voz enquanto enxuga os olhos. Suspira e conclui, no mesmo tom pausado, mas de tonalidade mais firme, quase zangada.

– Era a única coisa que me restava do meu pai…

Ao falar nisto revê mentalmente os últimos anos da relação com a sua mãe, sobretudo desde que o pai decidiu separar-se dela há dezoito anos. Foi um choque tremendo para si e para o seu irmão, mas foi ela quem mais sofreu porque o pai entendeu por bem confidenciar-lhe as razões da decisão já tomada, pedindo um perdão compreensivo para si e um suporte filial para a mulher. Que suplício! Ainda bem que pôde contar com o apoio forte de Alex, senão…

Está nestas cogitações, quando ouve Alexandre dizer:

– Sempre quis restituir-te esta jóia, mas hesitava. Não sabia como irias reagir. Na altura era tudo tão intenso entre nós, mas também muito frágil! Às vezes sentia que o teu apego ao Tiago podia acabar com tudo de um momento para o outro.

– Como? Em que é que a minha preocupação com a fragilidade do Tiago tinha a ver com o escaravelho de ouro? Confesso que não percebo…

Alexandre interrompe-se e baixa os olhos, a expressão pensativa. Levanta o olhar que vagueia em derredor antes de se fixar no de Luísa, e responde numa voz de timbre sereno:

 

– Pressentia que estavas ainda muito ligada a ele, lembro-me que a tua mãe gostava muito dele, ao contrário do teu pai que não “perdia pitada” para o criticar e desaconselhar a que continuasses com ele. Achava piada a isso, que o meu rival putativo pudesse ser um aliado circunstancial – sorriu ao pensar nisto, captou o sorriso de Luísa enquanto limpava uma lágrima furtiva e continuou –, por isso achei por bem guardar esse gesto para o futuro.

– Como sabias que havia um futuro para nós? – pergunta ela, agora divertida e com um sorriso sedutor.

– Vá, reconhece que ambos sentíamos isso! Ainda te lembras dos encontros fugidios no café à beira da tua escola? Estavas com as tuas colegas, eu tomava um café rápido e saía rapidamente enquanto tu te despedias e te esgueiravas até ao carro em que te esperava um quarteirão acima… depois era a viagem até ao lugar secreto do encontro amoroso. – Nota o rubor excitado no rosto de Luísa e pergunta – Ainda te lembras?

– Como poderei alguma vez esquecer?! Que segredo terrível e que fascínio… ficava secretamente sonhando o próximo encontro entre nós, só queria estar contigo! Tinha medo que o sonho me “traísse”, sei lá pronunciar o teu nome com o Tiago ao lado. Depois ficava intimidada quando propunhas que fôssemos para tua casa. Não sei tinha medo que a tua ex aparecesse, ou que o Afonso passasse por casa para fazer qualquer coisa… devia ser a culpabilidade.

Diz isto e ato contínuo lança-se nos braços de Alex, envolve-lhe o pescoço e beija-o com uma paixão reacendida depois de meses de (quase) alheamento amoroso. Sente a resposta forte dele e o encontro de corpos desejantes, a libido inflamada, um fiozinho húmido de suor a amaciar-lhe o dorso e o húmus excitado do seu sexo carente do afago forte do pénis que pressiona em intenso desejo de entrar naquele lugar húmido e acolhedor.

– Que fazemos, jantamos ou “jantamo-nos”? – murmura ela num frémito de gozo que lhe percorre o corpo e lhe aflui às têmporas.

– Estou “esfaimado” de ti, mais ainda do que há pouco quando te beijei à entrada. Vamos esgueirar-nos para o quarto sem ninguém ver, vamos “surripiar” um encontro amoroso àquele casal “chato” que tem aquele puto insuportável, acho que dá pelo diminutivo de Joca!

Luísa sorri com gozo, tira-lhe o casaco enquanto liberta, se liberta, do vestido cintado expondo um corpo de silhueta irrepreensível e “decorado” com uma lingerie erótica que realça as mamas redondas e sumarentas de mamilos pequenos e duros, as coxas firmes e bem desenhadas e o montículo púbico de declive sensual. Alexandre envolve o corpo receptivo de Luísa em brisa quente e húmida de afagos e carícias intensas, a língua deambula sôfrega na cútis aveludada e desejante até se deter na boca num beijo lúbrico, os lábios “colados” de ardor e as línguas serpenteando-se ávidas de orgasmo.

Liberta-se da roupa que deixa cair em desalinho pela sala, depois pelo corredor e até à margem da cama, sempre enlaçado nela. Os corpos mergulhados um no outro em êxtase sensual desaguam na cama, mar largo de vagas eróticas e oceano de sensações orgásticas apaixonadas… únicas!

A noite, ao entardecer

Passaram duas horas. Os sentidos saciados e os corpos aquietados sentam-se à mesa para degustar condimentos saborosos de tempero elegante, liquefeitos em libações gulosas de odor inebriante. Envolvida nesta languidez degustativa, Luísa vagueia pelos lugares da fantasia onírica enquanto dialoga com Alex sobre o tudo-nada do quotidiano, impressões, opiniões, encontros, desencontros, dúvidas, sensações.

Diverte-a uma rêverie em que imagina um céu azul em que voam pelicanos nacarados de asas brilhantes e bicos imensos sobre um deserto colorido em suaves ondulações dunares de cores quentes. Lembra-se com deleite do deserto do Namibe, que calcorreou com Alex na primeira surtida romântica, ainda antes de divorciar-se de Tiago… que aventura romanesca e que álibi mais ousado, uma viagem de turismo-aventura com um grupo de amigos dos anos de faculdade que cultivam, ainda hoje, o gosto pela descoberta de sítios de beleza inóspita, que Alexandre integrou à última da hora e em “missão clandestina”.

Mantém-se em região onírica e visualiza uma árvore de tronco largo e robusto e de folhagem colorida, de cores garridas, faz-lhe lembrar um objecto psicadélico, que se destaca no meio de um grande Canyon de ravinas pronunciadas de aspecto leitoso, como se jorrassem cascatas de um líquido de cor nacarada sobre o vale desértico de terracota arenosa em reflexos turquesa e lápis-lazúli. Uma nuvem perlada de gotículas carmesim destoa da moldura celestial límpida e soalheira. A nuvem paradoxal desperta a recordação do telefonema ao início da noite. A dúvida nebulosa revisita a abóbada da sua mente ensolarada e refaz irrupção momentânea na ambiência descontraída da partilha amorosa. Aconselhada pelo “rastilho” da dúvida, lança um:

– Lembras-te da Rita?

– Quem? – pergunta Alexandre aparentemente distraído.

– A Rita, aquela nossa amiga casada com o Hélder – esclarece Luísa, não sem se dar conta que está a falar umas oitavas acima do timbre pachorrento da troca coloquial de há pouco.

– Aquele casal amigo, aliás aqueles teus amigos com quem saímos algumas vezes aqui há uns anos, oito ou dez, suponho eu?

– Sim, esses mesmo.

O tom descontraído e circunstancial da pergunta de Alex, nada incomodado com a alusão a Rita, serenou-lhe o espírito e alentou-a a prosseguir a conversa com bonomia…

– Imagina que a Rita me ligou, pretextando a nossa relação de amizade (?!!) para me pedir, depois de um blá-blá fútil ao seu melhor estilo, que observasses o Hélder que, segundo ela, andará apático e depressivo… disse-me que ele ia ligar um dia destes para ti a marcar consulta.

– Como é que ela sabe o meu número de telefone, cá para mim mais vale que ligue para o número do consultório… mas o que se passa ao fim e ao cabo?

– Olha, o que queres? Ela tanto insistiu que acabei por dar-lhe o número do teu telemóvel… sei lá, achei-a muito apelativa, genuinamente preocupada, referiu-me a resistência do marido a ser consultado e, se queres que te diga, achei que a situação era um bocado grave.

Em tom de quase gracejo, Alexandre comenta o contraste entre ambos, a exuberância histriónica insuportável de Rita e a timidez monótona e recatada de Hélder, no limite mínimo do masculino.

– É curioso, esse Hélder deixou-me uma recordação indelével… assim a modos de uma ausência de substância masculina. Não quero ser maldoso, mas até me ocorreu que a exuberância da mulher se devia a isso, pelo menos em parte! Mas a que propósito é que se lembraram de mim?!

– A tua fama precede-te!

Graceja Luísa sorridente, e faz o movimento de se levantar e fazer uma vénia.

– Ou segue-me, quem sabe?!! Ah, ah, ah que situação mais divertida, então quer dizer que o Heldinho me vai ligar um destes dias… E o que me ordena a minha ama e senhora? Recebo o “betinho” em consulta ou lá se vai o momento de “graça” que me concedeis?!

Sorriem ambos com gosto da graçola bem-humorada de Alex e levantam-se da mesa. Beijam-se e ele dirige-se para o sofá do espaço de living room da sala de jantar enquanto ela coloca a travessa, pratos e copos numa bandeja que transporta para o lava-loiça da cozinha.

– Queres ajuda? – Lança Alexandre em tom de voz quase inaudível.

– Não sejas dissimulado… queres que te faça um café?

– Pode ser.

Liga a televisão em gesto habitual e desatento enquanto se distrai na leitura dos últimos feed de notícias que afluem ao écran do seu iPad.

Toca o telemóvel que Luísa deixou em cima do sofá, e Alex indaga.

– Queres que te leve o telemóvel?

– Pode ser, já agora vê quem está a tentar falar-me a esta hora, já são quase onze e meia da noite… quem poderá ser a esta hora?

– Está bem… olha, é a Alice, queres que atenda e lhe diga para aguardar que lhe ligues de volta?

– Pode ser, és um querido se me fizeres esse favor.

Alexandre atende a chamada e do outro lado ouve uma voz feminina ofegante em que não reconhece o timbre de Alice perguntar-lhe, “Buenas noches, soy Carmen al telefono, será que puedo hablar con la madre de Alice?”.

Intrigado e subitamente preocupado com a situação, ensaia o seu melhor espanhol e responde “Por supuesto que sí, espere un rato” e dirige-se à cozinha com o telemóvel em riste, que passa à Luísa. Esta diz-lhe para dar atenção ao café que já está na placa eléctrica do fogão e atende o telefonema. “Está, o que se passa?” e escuta um clique metálico de qualquer coisa que se desliga a que se segue um silêncio curto, mas que lhe parece durar uma eternidade… repete, “Está, és tu Alice?” e finalmente ouve a voz rouca da filha dizer-lhe “Sim, sou eu mãe, pede desculpa ao Alex por não lhe ter falado há pouco, mas a Carmen insistiu em que falasse contigo, eu não queria incomodar-te a esta hora, mas ela insistiu…”. Novo silêncio incómodo e Luísa pergunta ansiosa, “Mas diz-me o que se passa, filha, estás doente, aconteceu alguma coisa?”. Sente um lacrimejo do outro lado e ouve a voz da filha trémula e enrouquecida dizer-lhe “Não é comigo mãe, trata-se do pai. Eu não quis dizer-te nada… o avô ligou-me hoje à tarde e estive a debater-me este tempo todo, hesitando se devia ou não dizer-te o que se passa. Se não fosse a Carmen não ia ligar-te. Tivemos mesmo uma discussão por causa disso e ela achou que devia fazê-lo, e aí está o que aconteceu …”.

Novo silêncio e um pigarreio do outro lado. Luísa imagina o pior, embora não saiba ao certo o que pensar e, ciente da dificuldade da filha em falar sobre o assunto referente a Tiago, indaga “O que se passa com o teu pai? Está doente? Teve algum acidente? Algo lhe aconteceu a ele, à mulher ou ao filho?”

Tiago voltou a casar há cinco anos e vive com uma mulher mais nova do que ele, de quem teve um filho agora com três anos de idade… da última vez que ouviu falar dele, pela filha, soube que vivia em Amsterdão e tinha uma posição importante no departamento de bioengenharia de uma universidade local. Do outro lado ouve uma voz soluçante que lhe diz de modo quase inaudível, “O pai está internado em estado muito grave…” e depois de mais um pequeno silêncio em que Alice procura recuperar o tónus vocal remata, “Parece que foi encontrado inanimado em casa pela mulher ontem ao fim da tarde, levaram-no para o hospital e, ao que pude saber, está em coma. Pelo que percebi em coma induzido, não me perguntes o porquê… não sei o que pensar, menos ainda o que fazer!”.

Ocorre a Luísa, subitamente emocionada, perguntar à filha “Soubeste a notícia pelos teus avós?”. “Sim, acho que já te disse, foi o avô que ligou, eles foram para lá logo que souberam, mas não consegui voltar a falar com eles… estou tão confusa!”. E Luísa comenta sensibilizada “Como te compreendo, filha, o que posso fazer para ajudar-te?”.

Um pequeno silêncio do outro lado, durante o qual pressente um diálogo entre Alice e Carmen, e depois de um “espera um pouco” de Alice, ouve esta dizer-lhe, “Olha, o que me apetece fazer é ir aí ter e falar contigo e com o Alexandre, a ver se consigo organizar melhor a confusão emocional em que me encontro e decidir o que fazer. Achas que pode ser?!”, “Ó filha, claro que sim, isso nem se pergunta, achas que podes vir amanhã de manhã em voo directo de Barcelona para cá? Se for preciso ajuda para pagar o bilhete, não hesites”.

Pressente um suspiro de alívio do outro lado e ouve um “Está bem, então fazemos assim… a propósito, a Carmen pode ir comigo?”. Luísa concorda com a vinda de ambas e despede-se com um “Até amanhã”. Abraça-se a Alexandre que está ao seu lado expectante e a enlaça de modo carinhoso enquanto lhe enxuga as lágrimas que lhe rolam pelas maçãs do rosto. Caminham abraçados para o sofá e sentam-se mão na mão. Olham um para o outro por momentos, depois alongam-se no sofá aconchegados um ao outro. Na mesinha de madeira de jacarandá ao lado do sofá repousa o escaravelho de ouro, oferenda à paixão reencontrada.

À bolina

Isabel está ocupada em dar de mamar a Luís, que prefere nomear pelo diminutivo carinhoso Luisinho que lhe faz lembrar os desenhos animados e histórias de animação infantil da Disney que tanto a seduziam na sua infância. E que ainda hoje exercem um efeito sedutor em si, apesar de não ter tempo para se debruçar na releitura dos livros de desenhos animados que guardou da sua meninice e que, com a ajuda da mãe, manteve guardados no sótão da larga e bonita moradia em que vivia com os pais até à morte prematura da mãe há cinco anos.

Uma casa espaçosa, elegante e idealmente situada à beira-mar que conseguiu manter a custo, já que, em aliança com Alberto, o irmão mais velho que ela cinco anos, teve de convencer o pai a não a vender e, secundariamente, a prometer-lhe que não a alienaria da família. Acabou, já casada, por chegar a acordo formal com o pai tanto sobre a primazia na compra da casa, se o pai exercer a opção de venda deste bem do património familiar, como da garantia do seu legado testamentário. Um processo em que teve a ajuda preciosa do seu irmão, do recém-marido e dos sogros. Confessa que prefere ainda esta casa de beira-mar, que visita e em que passa fins de semana sempre que pode, ao apartamento espaçoso em que vive com Leonardo e o filho de ambos Luís, um bebé bonito, tónico e sorridente, em vésperas do primeiro aniversário.

 

Vivem nesta casa desde que se casaram vai para três anos, depois de um namoro intenso e bem-sucedido que não durou mais de um ano. Sempre se têm dado bem e habituaram-se a comemorar a data do encontro amoroso originário, de uma beleza ímpar e que a ambos continua a emocionar. Aliás têm por hábito, sempre que possível, convidar os amigos de Isabel que testemunharam tão extraordinário enlace. Ainda se lembra que foi numa esplêndida esplanada à beira-mar em Vilamoura num final de julho quente e ameno.

Soprava uma brisa ligeira de sudoeste, curioso como se lembra deste detalhe, num final de tarde de sábado e combinava com os amigos uma surtida nocturna a uma discoteca da moda em Albufeira. Na mesa ao lado estava sentado um homem que parecia ser alto e bem proporcionado, de tez morena e cabelo espesso cor de azeviche, cuja atitude postural a seduziu bastante. Lembra-se distintamente que foi a atitude corporal elegante e descontraída de Leonardo que mais lhe chamou a atenção. Estava sozinho a ler um livro e parecia-lhe muito atento à leitura, mas, de repente, levantou os olhos do livro e os seus olhares encontraram-se por um momento rápido de intensa sedução. Foi um momento de encanto intemporal que os deixou especados em mútua contemplação.

Ato contínuo, e esse foi o gesto ousado que irresistivelmente a apaixonou, este homem atraente e encantador, que lhe pareceu ainda mais alto e bem proporcionado que a percepção inicial deixara adivinhar, uma autêntica figura apolínea, caminhou intencionalmente em sua direcção, saudou-a em atitude sóbria e elegante e disse-lhe em tom de voz firme e aveludado de enorme doçura “Boa tarde. Quem é a mulher encantadora que ofuscou a paisagem deslumbrante de horizonte e mar deste fim de tarde que nunca mais olvidarei?”.

Como poderia resistir a este galanteio tão nobre e sedutor? Percebeu que os colegas de mesa, homens e mulheres, estavam imobilizados pela surpresa deste insigne gesto cavalheiresco. Engoliu em seco, suspirou e, fazendo apelo ao melhor da sua espontaneidade, respondeu “Posso saber antes quem é o nobre cavaleiro que lançou o charmoso bouquet a tão singela donzela?”. A resposta não se fez esperar. Fazendo vénia ajustada à ocasião e em galante genuflexão redarguiu “Meu nome, senhora do meu encanto, é Leonardo da nobre genealogia dos Guedes de além-Douro, cujos olhos, cansados de tantas lutas, nunca divisaram tal beleza!”. Sentiu-se inspirada nesta encenação etérea e quase inacreditável para os circunstantes e, lançando o braço direito em direcção ao beija-mão do nobre cavaleiro enamorado perante si ajoelhado, declarou em expressão elegante de timbre solene “Ó bem-aventurado Leonardo, deleite-se nessa beleza que eu, Isabel, descendente em linha directa da esplêndida genealogia dos Alcoforados, tudo farei por que a venere perenemente e em prazer sublime!”.

Momento inesquecível selado com o inevitável beija-mão e a que se seguiu o abraço irreprimível num tête-à-tête emocionante em que ambos se deleitaram com o brilho do olhar do outro, o rosto iluminado por um sorriso de inesgotável bem-aventurança. Como se aquele momento de estranha beleza, de uma mutualidade amorosa inédita, devesse perenizar-se para todo o sempre. Recorda, sempre recordará, os olhos azuis surpreendentes de Leonardo reflectidos nos seus olhos verde acastanhado em nuances de luz daquele admirável fim de tarde algarvio. Também a emoção dos amigos, testemunhas daquele acontecimento de inefável beleza, que acabaram por aplaudir, entre o emocionado e o divertido, o inevitável beijo apaixonado em que os lábios humedecidos e desejantes “selaram” a descoberta do amor. Um amor encontrado-reencontrado por ambos daquele modo tão sonhado e sonhador.

Quando se lembra de tudo isto ainda sorri e, como agora acontece, uma furtiva lágrima de felicidade rola-lhe pelo rosto. É verdade que, mais recentemente, se tem sentido mais cansada com os cuidados que prodigaliza ao Luisinho, sempre tónico, espevitado e exigente. É certo que saúde e alegria não lhe faltam. Mas a verdade é que está longe de estar contente com o facto de continuar numa situação incerta na universidade, em prolongamento de um lugar de postdoc no departamento de genética molecular da faculdade de medicina, enquanto aguarda concurso para uma posição docente nesse mesmo departamento, promessa sempre adiada por motivos diversos e por desculpas, cada vez mais díspares e incredíveis, pelo director do departamento e orientador científico do seu Ph.D., Ramos Nunes.

Por outro lado, a cada vez maior extensão temporal quotidiana da ocupação profissional de Leonardo faz intrusão progressiva na intimidade do casal, a despeito da sua enorme atenção e disponibilidade tanto para a ajudar nos cuidados ao filho lactente como para a afagar, acariciar e mimar sempre que pode. Reconhece que, às vezes, mesmo quando não pode, o que quase a faz sentir culpabilizada por lhe sobrecarregar as horas livres. É certo que esta sobreocupação era previsível desde o segundo ano de casamento quando Leonardo, após ponderação com Isabel, então grávida de Luís, aceitou o lugar de inspector director com responsabilidade de coordenação adjunta do laboratório de polícia científica, para além da chefia que já detinha de uma destacada brigada da polícia judiciária de combate à grande criminalidade.

Quando começaram a namorar, Leonardo já era um inspector chefe da PJ considerado culto e brilhante como investigador criminal e colaborador inestimável da polícia científica, ainda por cima com uma especialização em ciências forenses no âmbito de um doutoramento brilhantemente concluído no King’s College de Londres. Aliás, estava em fase de conclusão desse Ph.D. quando se deu o encontro amoroso com Isabel.

Sempre “à bolina” é a frase que ocorre frequentemente à Isabel para caracterizar os últimos tempos do quotidiano do casal. Hoje, sexta-feira, é a mesma rotina de sempre. São quase dez horas da noite, apresta-se a dar a mamada da noite a Luisinho, que começa a fazer caretas de sono e trejeitos de irritação levemente chorosa ao colo de Isabel, e que ela procura calmar um pouco, colocando-o em decúbito ventral num movimento suave de ambos os braços enquanto o embala levemente. Mas Luisinho não está muito pelos ajustes e deixa cair a chupeta iniciando um choro birrento que anuncia a hora da mamada da noite.

Por esta altura já conta com um dia totalmente ocupado com mimos, afagos, brincadeiras estimulantes da psicomotricidade do filho, monólogos dialogados em voz ritmada e rimas ajustadas às lalações animadas do filho. Não esquecendo os momentos de colo alternados com o conchego ergonómico atento nos momentos em que Luisinho se soergue, as pernitas tesas, em busca de suporte no rebordo interno do parque de brincar em que se distrai por algum tempo sob o olhar sempre vigilante e atencioso da mãe, para além dos cuidados de puericultura, da alimentação à mudança de fralda e aos cuidados com a hidratação da pele.

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