Ndura. Filho Da Selva

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DIA 3
SOBRE COMO COMEÇA O MEU SOFRIMENTO

Algo estava me atacando, sentia como me picava por todo o corpo. Levantei-me de um salto, totalmente desperto de modo súbito e gritando. Olhei para minhas mãos e estavam cobertas de formigas avermelhadas com a cabeça muito grande, meu corpo estava completamente coberto delas. Picavam-me por todos os lados. Tirei a roupa, quase arrancando-a, comecei a esfregar o corpo com as mãos, a saltar, a me agitar e retorcer como o rabo de um lagarto, dando gritos e gemendo de dor. Algumas entravam pela minha boca, me obrigando a cuspir de vez em quando, e outras pelo nariz, nas orelhas, por toda parte. Era como se um enxame inteiro de abelhas houvesse decidido me atacar ao mesmo tempo. Pouco a pouco consegui me desvencilhar das formigas, mas demorei uns dez minutos até que notei que nenhuma mais corria impunemente pelo meu corpo. Por onde havia estado deitado, passava uma coluna interminável de formigas9. Tinha o corpo vermelho dos golpes que me havia aplicado para arrancar as formigas e cheio de pontos ainda mais vermelhos que as picadas recebidas por esses malditos insetos. Tudo me ardia, e tanto, que não sabia por onde começar a me coçar. Ainda que não houvesse nenhuma sobre mim, de vez em quando me dava a impressão de notar como se algo se mexesse por algum lado e voltava a me agitar convulsivamente.

Quando dominei um pouco minha frustração, peguei a mochila e sacudi também todas as formigas, e fiz o mesmo com a manta e com a roupa que havia atirado ao chão.

Calcei apenas os tênis e o resto guardei na mochila. Agarrei umas pedras e uns ramos e os atirei com raiva sobre a organizada coluna, enquanto insultava as formigas. Durante um momento perdi o controle, a ira me invadiu. Sim, as formigas tinham culpa de tudo, tinha que acabar com as formigas, elas me haviam levado a esta estúpida situação e iriam pagar por isso. Pisei nelas mais uma vez e mais outra, frenético, como que possuído por um ardor de destruição irrefreável. Algumas subiam pelas minhas pernas picando-me novamente, mas já não sentia nada, a dor havia deixado de existir por um momento. Um solitário pensamento em minha cabeça: acabar com as formigas. Sapateava, pisoteava sobre as que estavam no solo e esmagava com fortes tapas as que tinha pelo corpo, massacrando-as contra minhas pernas, meus braços ou meu peito. Durante uns minutos essa foi a minha única guerra, meu único mundo: pisadas, golpes com a mão, gritos de fúria, de frustração contida durante tempo demais. Um Guliver furibundo destruindo o mundo de Lilipute. Assim que me afastei uns passos, desmoronei no chão e fiquei um tempo como se estivesse ausente, totalmente abandonado à minha sorte, cego ao que ocorria ao meu redor, ignorante de qualquer outra coisa que não fosse o nada, o vazio interior. Ao final, reagi. Durante a noite me havia parecido ter ouvido o murmúrio de uma corrente de água por perto, então fui procurá-la, nu, apático, tremendo, com o corpo todo ardendo, cajado na mão e mochila no ombro. Atrás de mim, uma miríade de formigas amassadas e muitas outras correndo ao redor em seu baile particular de desorganizada loucura.

Efetivamente, meu ouvido não havia me enganado. Um rio de uns cinco metros de largura abria caminho entre a floresta diante dos meus olhos. Minha primeira intenção foi tirar os tênis e jogar-me na água, mas me lembrei de algo sobre sanguessugas e primeiro inspecionei a água da margem com cuidado, deixando que a prudência fosse mais forte que o meu desespero por um momento. Só a ideia de que alguma delas grudasse ao meu corpo me estremecia. Enganchada, chupando meu sangue. Ao tocar a água com a mão, notei que não estava fria demais para que pudesse suportar. Não me parecia ver nada, exceto uns belos e pequenos peixes coloridos, alguns mais coloridos que outros, que eram pequenos demais para alimentar e bonitos demais para matar. Tinham o corpo comprido e aplanado, a cauda dividida em três partes, sendo a central parecida com plumas de aves, os olhos proporcionalmente grandes com relação à cabeça, tinham uma coloração azul iridescente, mas quando os raios do sol refletiam em seu corpo, toda uma incrível gama desde o azul até o violeta se difundia por suas escamas10. Procurei alguma outra coisa, como piranhas, crocodilos ou algo assim e não encontrei nada. Assim, decidi me molhar e depois beber um pouco d'água.

Entrei um pouco na água, assegurando primeiro com o cajado que o solo era firme, com os tênis calçados, porque tinha medo de que algum bicho me picasse ou que me cravasse algo nos pés. A primeira impressão me produziu um calafrio pelo contraste da temperatura da água com a do exterior, ainda que tenha me acostumado depressa. Ao meu redor voavam algumas libélulas de cores vivas, com suas formas alongadas e seu voo rápido e seguro; também havia grande quantidade de insetos, tanto voando como correndo pela superfície da água como se fosse uma pista de patinação.

Quando a água me chegava aos joelhos, parei e me molhei todo o corpo ajudando com as mãos. O efeito refrescante da água sobre as infinitas picadas das formigas, e nos inúmeros arranhões e sobre o joelho inflamado me produziu uma sensação de alívio indescritível. Poder estar por um momento na água, esquecendo-me de tudo, desfrutando de cada segundo, produziu em mim um estado de relaxamento profundo. Fechei os olhos e submergi a cabeça prendendo a respiração o máximo possível, sentindo como o frescor corria pela minha pele, rodeando-a e acariciando-a com suavidade. Durante breves instantes todos os problemas e preocupações se desvaneceram. Também bebi grandes goles de água, até que me senti completamente saciado. Ao sair da água estava decidido a sobreviver como pudesse; meus ânimos se encontravam reforçados, meu espírito disposto para a luta.

Ouvi um ruído em uma árvore próxima e me escondi no matagal rapidamente. Já me haviam encontrado, nu e desprevenido, certamente iriam me matar sem piedade alguma, sacrificar-me como a um vil animal. Não queria morrer. Não poderia tê-los despistado? Não merecia um pouco de tranquilidade? Não havia sofrido o suficiente com as formigas?  As imagens de Juan metralhado pelos rebeldes apareceram na minha cabeça como uma sucessão de curtos flashes, e o corpo sem vida de Alex sentado no avião após o choque, com o sangue escorrendo pelo rosto, me atormentou mais uma vez. Imaginei-me sangrando por vários buracos no meu corpo produzidos pelos disparos dos rebeldes, jogado ao chão ao pé de uma grande árvore, eles rindo e eu agonizando. A dor… Observei atentamente entre as folhas das árvores e finalmente descobri a origem do som: um macaco de uns cinquenta centímetros de altura com uma cauda de igual comprimento, a cara azulada, a cada lado entre olho e orelha uma banda de pelo escuro, uma banda transversal clara em cima dos olhos, a maioria do corpo pardo-amarelado e a garganta, o peito e o ventre brancos11. Talvez não estivesse predestinado a morrer nesse dia. Pouco a pouco foram aparecendo mais e se juntaram cinco deles, saltando de galho em galho e lançando alguns gritos agudos. Deviam estar jogando ou algo assim, se empoleiravam em um galho e o agitavam com energia enquanto gritavam. Na melhor das hipóteses estavam na época do cio, não fazia ideia, mas era um espetáculo grandioso. Meu coração voltou pouco a pouco a bater no seu ritmo normal. A última coisa que vi foi um deles pegar do chão algo que de longe me parecia uma lacraia e comê-la.

Na outra margem do rio apareceu outro macaco de forma parecida mas com cores diferentes. Esse tinha a cara negra, costeletas e barba brancas que continuavam no peito e parte dos braços. Sua cor era mais enegrecida e tinha uma mancha triangular avermelhada-alaranjada no lombo. Era maior que o anterior e bem mais robusto12. Bebeu um pouco de água, levando-a à boca com a mão e desapareceu. Fiquei um pouco observando os outros a jogar e saltar. Era uma experiência única, que nunca pensei que chegaria a viver. Mais uma vez me lembrei de meus amigos mortos e de como eles curtiriam estar vendo isto, principalmente o jovial Alex, sempre tão curioso sobre todas as coisas. Agora com quem comentaria estes momentos, com quem os compartilharia? Não havia ninguém que os houvesse vivido comigo, que pudesse entendê-los. Não! Não devia pensar nisso, não me ajudava a seguir adiante e agora o que precisava era juntar a maior quantidade de energia possível para poder sobreviver.

 

Sair desta maldita selva deveria ser o meu único objetivo. Escapar deste inferno verde.

Descalcei os tênis, torcendo-os um pouco para que a água se escorresse e os enganchei na ponta de um galho para que secassem. Então, peguei a garrafa de água e procurei um local com água corrente para enchê-la. Parecia-me haver lido que era pior coletar de lugares onde a água estivesse parada porque haveria mais possibilidades de que não fosse salubre ou tivesse algum tipo de bichos. Claro que podia ter me lembrado disso antes de beber. Meu corpo inteiro não parava de arder, ainda que com menor intensidade do que antes. Sentia a coxa latejar e quando me virei para ver se havia algum ferimento, localizei uma sanguessuga que ficou grudada à minha perna. Era uma espécie de lesma, talvez mais fina. Primeiro me assustei, logo reagi e pensei em como soltá-la. Se mal me lembrava, podia-se soltar as sanguessugas com sal ou queimando-as. Saquei o isqueiro e aproximei a chama do animal, até que ele se encolhesse, momento em que aproveitei para desgrudá-la com a navalha. Onde havia estado agora só restava uma mancha vermelha, e uma gota de sangue exsudava da borda. Queimei a ponta da navalha com o isqueiro e cauterizei a ferida com cuidado. Não tinha nem ideia se as sanguessugas infectavam ou não a ferida que produziam, mas não queria me arriscar. Doeu tanto que tive que fazer grandes esforços para não gritar com todas as minhas forças. Verifiquei o resto do meu corpo para ver se não tinha mais alguma, mas era a única. Agora na perna tinha a forma da ponta da minha navalha gravada ao fogo. Ia fazer uma tremenda bolha. Talvez não devesse ter feito essa barbaridade.

A preguiça tomou o controle do meu corpo e decidi me dar uma manhã livre. Tantas emoções seguidas cansavam, estava destroçado e o corpo me pesava enormemente. Procurei um local com sombra e quando me sequei, vesti a roupa e usei a camiseta de lembrança da Namíbia que levava na mochila para cobrir toda a cabeça, inclusive o rosto, para evitar os incômodos e abundantes mosquitos que demarcavam as margens. Antes de me deitar, observei um arbusto que havia por perto, havia visto já diversos como este, com um virtuoso fruto de cor carmim com pequenas sementes azuladas13. Seria comestível? Esmaguei uma formiga desnorteada que ainda não tinha conseguido sacudir da roupa. Fechei os olhos e me deixei levar por um estado de sonolência, de torpor; o calor e a umidade produziam peso nos músculos e na vontade.

Um disparo, uma rajada de alguma arma automática, mais disparos. Pus-me de pé num salto. Ouvia-se na outra margem do rio, ainda que distante. Agora sim que não estava imaginando, iam me encontrar a qualquer momento. Subitamente recuperei a consciência de que minha situação não me permitia relaxar, e que não manter todos os meus sentidos em alerta constante seria certamente a minha perdição.

Rapidamente, catei todas as coisas, guardei a camiseta na mochila, calcei as meias e os tênis e peguei o cajado. Ainda estavam molhados, mas nesse momento não tinha tempo de me preocupar com essas minúcias. Decidi que o melhor caminho possível para chegar a algum lugar seria continuar pelo leito do rio, mas como segui-lo ao lado da margem me parecia muito perigoso, adentrei a selva mais uma vez para passar despercebido entre a folhagem e andar quatro a cinco metros paralelo ao rio. Era um mundo fechado, onde em qualquer direção não via mais que um muro verde impenetrável, sem saída alguma. Quando muito, via três ou quatro metros de distância diante de mim. Logo perdi o rio e, mais uma vez, encontrei-me a caminho de lugar nenhum.

Estive andando a um ritmo às vezes forte e outras vezes mais suave durante toda a tarde com escassos momento de descanso. Justamente para recobrar um pouco o fôlego e escutar se ouviam-se mais disparos. Tive que aguentar permanentemente o som semelhante ao produzido quando se pisa em um charco que faziam meus tênis em cada passo que dava e esporádicos avisos de cãibra na panturrilha. A densidade da folhagem aumentava em alguns momentos, sumindo nas sombras de alguns lugares. Havia mosquitos por todos os lados, não deixavam de me incomodar como se fosse uma batalha sem fim. Às vezes me faziam lembrar os kamikazes japoneses da Segunda Guerra Mundial, lançando-me o ferrão como seu objetivo, sem lhes importar a vida. Os mosquitos eram iguais, jogando-se sobre meu corpo de forma contínua e sem lhes importar as baixas que causavam meus tapas, usando minhas mãos à guisa de artilharia antiaérea. Alguns eram tão grandes que mais que caças de combate pareciam gigantescos bombardeiros, cuja presença propriamente dita já causava apreensão no inimigo. Quando os via aproximarem-se ficava imediatamente tenso, preparado para me esquivar deles. Sempre havia algum com apetite e tinha uma infinidade de picadas pelos braços e pernas, ali onde minha roupa não cobria meu corpo. Algumas estavam inclusive sobre as próprias picadas que as formigas me haviam feito ao acordar. Era uma batalha que estava perdida de antemão, uma luta banal, inútil, já que eles não tinham fim e eu estava cada vez mais cansado. Incomodaram-me tanto que decidi cobrir as partes onde não tinha roupa com terra úmida, formando uma barreira impenetrável para eles. Essa ideia fugaz me salvou. Era difícil me movimentar, sobretudo quando secava, mas seus ataques contínuos eram piores. Graças a esse truque pude me esquecer dos insetos implacáveis durante um bom tempo. Se não consegui a vitória, ao menos uma trégua temporária. Além disso, tive o efeito surpreendente de conseguir que parassem de me picar onde as formigas haviam estado. Alguma sorte, afinal.

Não parava de observar tudo ao meu redor, tinha a sensação constante de estar sendo seguido, que estava cada vez mais encurralado, acuado em uma selva ilimitada. Inclusive, parecia-me ouvir passos e vozes atrás de mim ou ver rostos rápidos de guerrilheiros olhando-me com frieza entre as árvores, vigiando sem cessar. A verdade é que não cheguei a ver ninguém com clareza, nem sequer pude verificar nenhum rastro de sua presença na região. Tinha a impressão de que as árvores se dobravam sobre minha cabeça, aprisionando-me mais e mais em uma cela de madeira viva. Não sabia se estava ficando paranoico ou o quê, mas tinha que conseguir me acalmar para sobreviver nesta selva desconhecida e mortal.

Nesse deambular demente me deparei com um espetáculo dantesco. O que parecia ter sido uma família de primatas, do tamanho de um chimpanzé ou semelhante, jazia em uma clareira sem mãos, pés e cabeças em meio a grandes poças de sangue ressecado e rodeados por miríades de moscas e todo tipo de insetos e animais carniceiros. O fedor que expeliam era insuportável e não pude evitar o vômito que subiu instantaneamente pela garganta. Juntei coragem e voltei a olhar. Havia dois que deviam ser adultos e um menorzinho. Não parecia haver nenhuma cria. O que não sabia era por que não foram capturados, presos ou por que não foram levados para serem vendidos no mercado ilegal. Sabia que havia determinadas partes de animais que se vendiam muito bem como afrodisíacos nos países asiáticos: chifres de rinocerontes, ossos de tigres e coisas assim. Na melhor das hipóteses, seria algo desse tipo. Decidi me afastar desse lugar maldito o mais rápido possível. Essa descoberta não apenas me demonstrou mais uma vez a crueldade humana, mas também me fez ver que andava por zonas frequentadas por caçadores furtivos, certamente pouco amigáveis com estranhos.

Sentia-me demasiadamente afetado por tudo o que estava acontecendo. Houve um momento em que finalmente me deu uma forte cãibra na panturrilha direita, o que me obrigou a parar para esticá-la enquanto apertava a boca com força por causa da dor e me retorcia no chão. Tive que permanecer sentado por um bom tempo até que pudesse me mover outra vez e fiquei incomodado pelo resto do dia. Diversas vezes pensei que a puxada voltaria e tive que parar para esticar a perna. Quando começou a anoitecer, estava completamente esgotado e não havia avançado muito por causa do ritmo lento que tive que assumir. Sobretudo, minhas pernas estavam exaustas de tanto caminhar, o joelho e a panturrilha doloridos e os pés dormentes. Observando do ponto de vista positivo, a minha barriga de cerveja que havia começado a se formar já estava me deixando. Já era alguma coisa. Não deveria perder meu senso de humor, isso talvez viesse a me salvar. Era a única coisa que me sobrava. Isso e minha vontade de sobreviver. Elena, o que eu não daria agora por um abraço seu, pelo seu sorriso! Ou por uma daquelas refeições maravilhosas que você me preparava!

Sentei-me sobre um tronco caído e comi todo o marmelo que me sobrava, com um grande gole d’água. Ao meu redor,

sobrava apenas um quinto da garrafa e nada de comida. Esta terceira noite passaria novamente sobre uma árvore. Depois da experiência com as formigas não acreditava que conseguiria pegar no sono, já que as formigas estão tanto no chão como nas árvores, muito menos me agradava a ideia de que os canalhas dos disparos me encontrassem dormindo. Como na primeira noite, busquei uma árvore adequada e quando a encontrei, encarapinhei-me sobre o galho escolhido, subindo por uma trepadeira. Quando coloquei a mão nela tive que retirá-la rapidamente pois senti uma picada aguda. A trepadeira era espinhosa. Esfreguei a mão dolorida e procurei outra árvore. Quando a encontrei, subi com muito cuidado e me dispus a passar outra noite mais neste inferno. Tirei os tênis e as meias e rezei para que estivessem secos na manhã seguinte, ainda que duvidasse bastante, já que o ar estava quase permanentemente úmido. Meus pés estavam enrugados e de uma cor verde-amarronzada escura. Sequei-os como pude, mas a sensação de mal-estar persistiu. Tentei me aquecer, mas não houve jeito nem com a manta, nem me esfregando o corpo. As picadas dos mosquitos e das formigas me molestavam sem parar, mas não podia fazer nada. O único que me aliviava essas moléstias era quando passava barro úmido pelo corpo para evitar as picadas; nesses momentos o ardor constante se via transformado em uma reconfortante sensação que não sabia como descrever. Nas pernas sentia uma dor constante sem conseguir localizar, o mesmo que nas costas. O braço direito estava dormente devido ao esgotamento de estar todo o dia fazendo movimentos de machadadas com a vara. Estava tão esgotado que dormi logo. Meu último pensamento foi a esperança de que ao acordar no dia seguinte estivesse um café da manhã me esperando com um copão de leite com mel e um par de torradas cheias de manteiga e geleia de morangos ou de amoras.

DIA 4
SOBRE COMO ENCARO UMA TEMPESTADE TROPICAL

Um ruído muito próximo me despertou e quase caí no chão com o susto. Agora sim. Haviam me descoberto, estava acabado. Tanto esforço para nada, havia deixando que me pegassem desprevenido, descuidado e agora ia pagar caro. Agarrei-me fortemente ao galho e olhei aterrorizado em todas as direções, procurando pelos rebeldes, gritando não atire, não atire! Mas não vi nada. Se tivessem sido eles, teriam disparado ou ao menos me feito descer da árvore, mas era um alarme falso. Queria saber que tipo de animal havia passado por ali, estava um pouco obcecado.

– Será que não posso acordar um dia com tranquilidade?, –resmunguei em voz alta–. Não podem me deixar tranquilo um momento?

A verdade era que não importava. Desci e me espreguicei dando grandes bocejos. Havia dormido umas boas horas seguidas, mas as costas me doíam uma barbaridade. Além disso, conforme me limpei um pouco voltei a notar as picadas contínuas nas pernas e braços, onde as formigas e os mosquitos haviam fincado o ferrão. Isso de dormir em um galho não deveria ser muito bom para o corpo, mas às vezes me parecia preferível ao chão, onde estava à disposição de toda pessoa ou animal que passasse por ali. Olhei com atenção minhas pernas e braços e vi que algumas feridas, sobretudo as roçaduras com plantas, estavam infectadas. Era o que me faltava. Ouvi um rugido crescente, que na verdade era o meu estômago. Tinha uma fome atroz e não me restava nada para colocar na boca. Minha prioridade para esse dia era encontrar comida, já que água no momento não era um problema porque havia voltado a localizar o rio. Gostaria que o sensato Alex estivesse ao meu lado para poder escutar seus sempre meditados e sábios conselhos. Mas eu estava sozinho, Alex estava morto, Juan estava morto e eu estava sozinho. Por minha culpa, tudo por minha culpa.

 

Aproximei-me do rio para lavar o rosto um pouco e beber água. Também enchi a garrafa. Bebi tanta água que fiquei momentaneamente saciado, mas isso duraria pouco. Sentei-me sobre uma pedra e me pus a refletir sobre o melhor modo de conseguir alimento. Enquanto eu tentava encontrar uma solução fixei a atenção em uma árvore próxima que me fez lembrar de algo. Observei-a com atenção. Sabia que algo me escapava, era aquela sensação de ter algo na ponta da língua e não saber o quê. Então me lembrei. Era essa mesma árvore onde havia visto aquela espécie de papagaios comendo seus frutos. Foi aí que se acendeu a lâmpada, onde a ideia finalmente quebrou os moldes do esquecimento, onde a necessidade acabou com a estagnação da minha mente. Se os animais comiam aqueles frutos, possivelmente eu também poderia. Havia lido que alguns tinham o metabolismo capaz de digerir frutos venenosos, mas a maioria dos que arrancavam deveria ser comestível para mim também, principalmente se um macaco o podia comer, que era o animal mais parecido com o homem que havia por esses lugares.

Levantei-me e fui até a árvore. Depois escalei por entre os galhos e colhi dois ou três frutos dos que me pareceram mais apetitosos. Logo desci com eles e abri o primeiro pela metade com a navalha. O interior me lembrava cabelo de anjo em sua forma e textura, mas de cor vermelha. Descasquei uma das metades e dei uma pequena mordida.

Mastiguei devagar, quase chupando. Tinha um sabor estranho, mas era bom. Comi as duas metades com voracidade e descasquei uma segunda fruta que também comi. Quando parti a terceira pela metade vi que tinha uns bichos e joguei-a fora. Voltei a subir na árvore e colhi mais meia dúzia. Cinco delas entre as mais duras, pensando em levá-las comigo na mochila para que me servissem nos outros dias; as outras para comer nesse mesmo instante.

Terminei o café-da-manhã e me senti plenamente satisfeito, tanto por haver conseguido comer como pelo feito em si de haver conseguido encontrar comida. De todo modo, propus-me a permanecer muito atento a partir de agora para encontrar outras fontes de alimento, fossem frutos ou qualquer outra coisa, já que não podia estar unicamente à base dessa fruta. Decidir fixar-me nos pássaros e nos macacos. Ademais, devia pensar em alguma forma de comer carne sem ter que cozinhá-la, já que ainda que tivesse isqueiro, não podia arriscar-me a fazer fogo por medo dos rebeldes, a menos que descobrisse como fazer fogo sem fazer fumaça. Talvez se a comesse em pedaços bem pequenos não seria tão difícil. Algo parecido com carpaccio dos restaurantes italianos.

Olhando para o rio em busca de algum peixe com aparência comestível, notei umas plantas que cresciam na ribeira. Tinham mais de meio metro de altura, de cor verde ou avermelhada nas folhas mais novas. Estavam cobertas em seu talo por pelos eriçados. Suas folhas eram ovaladas de contorno com as bordas serrilhadas, como pequenos dentes14. O que me chamou a atenção de verdade foi o seu cheiro. Tinha um intenso aroma de menta. Pensei que talvez me pudesse ser útil e colhi um bom punhado de folhas.

A selva não parava de me surpreender. Talvez eu realmente conseguisse sobreviver. Novamente a euforia. Nesse dia decidi seguir como na tarde anterior: paralelo ao leito do rio mas sem andar pela costa. Que me lembrasse, a República do Congo não tinha saída para o mar, de modo que o rio só desembocaria no oceano em outro país, onde não havia rebeldes e eu poderia encontrar ajuda. De todo modo, o método alternativo de me guiar pelo sol não parecia me levar a lado nenhum, já que não fazia a menor ideia de como me orientar.

A manhã se passou tranquila. Andando e descansando; ainda que com uma sensação de cansaço permanente que fazia com que minhas pernas pesassem vinte quilos cada uma. De vez em quando tinha a sensação de estar sendo vigiado, uns olhos fixos permanentemente em minhas costas, mas por mais que olhasse nunca via ninguém, nem sequer algum rastro de vida humana. As meias surpreendentemente haviam secado. Os tênis ainda estavam úmidos, mas pelo menos já não faziam aquele ruído desagradável, ainda que tivessem infectado meus pés com algum tipo de fungo, como se houvesse estado em uma piscina pestilenta. Quando via algum pássaro ou qualquer animal ficava totalmente quieto e observava pra tentar descobrir o que comiam, mas não tive sorte, apenas os vi se moverem de um lado para outro sem aparentarem ter muita fome. Sorte deles.

Em um dado momento algo caiu no meu nariz, passei a mão e observei, parecia água. Olhei para cima e vi como caía uma gota e outra e logo outra, até que em um dado momento as nuvens pareciam estar desabando sobre mim. O céu escureceu quase de repente. Estava chovendo, digo, caindo um dilúvio de um jeito que nunca havia visto antes. Muito longe soavam trovões e, de vez em quando, entrevia o fugaz resplendor de um relâmpago, fulgores que iluminavam ao redor como se fosse um farol. Rapidamente busquei um lugar onde pudesse me refugiar. O único que encontrei foi a possibilidade de ficar debaixo de uma árvore agachado no chão com a mochila sobre as minhas pernas. Vesti o gorro e cobri meu corpo com a manta. Logo, imitando as aves em momentos assim, me dispus a permanecer sem mover nem um dedo para me molhar o mínimo possível, deixando que a água se resvalasse sempre pelos mesmos lugares.

Esteve chovendo sem parar durante muitas horas, tantas que me pareceram dias. Tinha fome mas não me atrevia a me mexer. A água havia encharcado completamente a manta e a camiseta, e já notava filetes caindo por algumas partes de minhas costas. Também caia pelo tronco da árvore passando em algumas partes por baixo de mim. Mais água, mais trovões, mais flashes de luz. Nessas horas em que não movi nem mesmo a cabeça, distraía-me tentando vislumbrar algum pequeno inseto no chão e, quando o encontrava, me entretinha vendo como as gotas caíam em cima dele ou como a correnteza o arrastava. Também localizei um par de minhocas fazendo uma festa, esfregando-se na lama da superfície. E seguia chovendo e trovejando, como se o Deus criador bantu, Bumba, estivesse acumulando forças e soltasse toda sua raiva em um único golpe, sobre minha cabeça, para acabar comigo. Sentia frio e comecei a tremer, os dentes se batiam até mesmo contra minha vontade, de forma incontrolável. Em algumas partes se haviam formado pequenos riachos, que corriam desviando dos obstáculos em direção desconhecida. Atrás de mim ouvia como o rio rugia com mais força do que o normal, supunha que aumentado de volume devido à chuva. A fome apertava cada vez mais meu estômago, e a chuva continuava e continuava. E mais trovões e mais faíscas elétricas produzidas pelas descargas dos combates entre as nuvens. Cada vez estava mais molhado. Isso de ficar quieto devia ter efeito com pequenos chuviscos, mas com tormentas assim somente valia ter um teto e quatro paredes, porque não creio que nem sequer um guarda-chuvas me livrasse de ficar como se tivesse acabado de nadar no rio. Agora já não tinha que me preocupar porque meus tênis estavam molhados, agora só queria saber quando o céu terminaria de se esvaziar sobre minha indefesa cabeça.

Estava desesperado. Comecei a pensar que isto poderia durar por dias ou até semanas. Lembrei-me das monções asiáticas e de seus efeitos devastadores. Não estranhava que houvesse árvores tão altas na selva se eram regadas assim amiúde. Se isso durasse muito mais tempo ia logo parecer um aquário com macacos em lugar de peixes. Curiosamente, com a chuva, se apagaram a maioria dos sons e ruídos habituais. Devia ser que o estrondo da água caindo apagava todos os outros, cujos responsáveis haviam ido para casa se refugiar. Todos menos eu, que estava ali, no meio da tempestade do século sem mal conseguir onde me abrigar, na mais absoluta intempérie. Se continuasse descendo neste ritmo tão rápido a próxima coisa que cavaria seria minha tumba, para poder me sepultar quando morresse de esgotamento físico e mental. Do jeito que estava não me parecia uma opção tão ruim, quase um descanso desejável.

Um raio caiu sobre uma árvore a uns dez metros à minha frente partindo-a pela metade. O estrondo que produziu me deixou sem poder ouvir durante alguns segundos. O chão tremeu, o fim do mundo se aproximava e eu estava perdido. A parte superior da árvore caiu ao chão em meio a um forte alvoroço, logo grudado ao tronco de outra árvore que se mantinha de pé e queimando na sua extremidade. Um cheiro estranho inundou tudo. De início fiquei petrificado pensando no perigo que corria estando tão próximo de outra árvore, imaginando um raio atravessando o meu corpo, fritando-me instantaneamente por dentro; mas logo me peguei observando o fogo e decidi que, já que estava completamente ensopado e não fazia diferença ficar quieto ou não, ao aproximar-me do fogo teria ao menos um pouco de calor, algo que nesse momento desejava com todas as minhas forças. Levantei-me e todas as articulações me doeram como se me cravassem uma infinidade de grandes agulhas, principalmente nos joelhos. Tive que tentar três vezes e esfregar muito as pernas até que consegui alguma mobilidade. Aproximei-me da chama apenas alguns centímetros.

9Fauna: Formigas legionárias, Dorylus Spp
10Fauna: Tetra do Congo, Phacogrammus interruptus
11Fauna: Cercopitemo mona, Cercopithecus mona
12Fauna: Cercopitemo diana, Cercopithecus diana
13Flora: Cola digitata
14Flora: Hortelã-da-água, Mentha aquatica
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