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Memorias de José Garibaldi, volume I

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I
MEUS PAES

Nasci em Niza, a 22 de julho de 1807, não só na casa, mas no proprio quarto em que nasceu Masséna. O illustre marechal era, como ninguem ignora, filho de um padeiro. Nas lojas d'aquelle predio ainda hoje se conserva uma padaria.

Antes de fallar a meu respeito seja-me permittido dizer duas palavras de meus estimados paes de que o excellente caracter e profunda ternura tanta influencia tiveram na minha educação e disposições physicas.

Meu pae, Domingos Garibaldi, natural de Chiavari, era como meu avô maritimo. Vindo ao mundo o primeiro objecto que seus olhos viram foi o mar, e era no mar que devia passar quasi toda a sua vida. Estava bem longe de possuir os conhecimentos que são o apanagio dos homens da sua classe, e principalmente do nosso seculo. Não havia formado a sua educação em uma escóla especial, mas sim nos navios de meu avô.

Mais tarde capitaneou uma embarcação com grande felicidade. Soffreu immensos incidentes uns felizes, outros desgraçados, e muitas vezes ouvi dizer que nos poderia ter deixado mais bens de fortuna do que nos legou.

Mas que importa isso! Meu pobre pae era livre de gastar como intendesse um dinheiro tão laboriosamente ganho, e eu não lhe sou menos reconhecido por esse facto. De mais ha uma coisa, de que estou intimamente convencido e é, de que todo o dinheiro que dispendeu n'este mundo o que gastou com a minha educação foi o que com mais prazer saín das suas algibeiras apesar dos grandes sacrificios que para isso era obrigado a fazer.

Não julguem por isto que a minha educação foi aristocratica. Meu pae não me mandou ensinar gymnastica, jogo d'armas ou equitação. A gymnastica apprendi-a trepando pelos cabos dos navios, e deixando-me escorregar pelas enxarcias; a esgrima defendendo a minha cabeça e tentando o melhor que podia quebrar a dos outros, e a equitação tomando os exemplos dos primeiros cavalleiros do mundo, isto é, dos Gauchos.

O unico exercicio corporal da minha mocidade, para o qual tambem não tive mestre, foi a natação. Não me lembro quando, e como aprendi a nadar, mas julgo que sempre o soube, pois desconfio que nasci amphibio. Assim não obstante o pouco prazer que tenho em me prodigalisar elogios, como sabem todos aquelles que me conhecem, não posso deixar de dizer que, sou um dos melhores nadadores existentes. Sendo conhecida a confiança que tenho em mim é escuzado dizer que nunca hesitei em me atirar á agua quando era necessario salvar um dos similhantes.

Entretanto se meu pae não me mandou ensinar todos estes exercicios a culpa não foi sua, mas sim da epocha calamitosa porque atravessavamos. N'estes tempos desgraçados o clero era o senhor absoluto do Piemonte, e todos os seus esforços eram tornar os mancebos em frades inuteis e mandriões em logar de cidadãos aptos para servirem a nossa desgraçada patria. O amor profundo que me consagrava meu pobre pae, até lhe fazia receiar que se eu recebesse alguma instrucção, isso me fosse funesto para o futuro.

Rosa Raymundo, minha mãe, era, digo-o com bastante orgulho, o modelo das mulheres. Todo o bom filho deve dizer o mesmo de sua mãe, mas nenhum o dirá com mais justiça do que eu.

Um dos remorsos de toda a minha vida, talvez o maior, foi e será o ter tornado desgraçados os seus ultimos dias! Só Deus sabe quanto ella soffreu com a minha vida aventureira, porque só Deus sabe o immenso amor que minha mãe me consagrava. Se em mim existe algum sentimento bom, confesso-o, e com bastante ufania, é a ella a quem o devo. O seu caracter angelico devia forçosamente deixar-me alguns vestigios. Não será á sua piedade pelos desgraçados, á sua compaixão pelos infelizes, que eu devo este amor pela patria, amor que me mereceu a affeição e sympathia dos meus compatriotas?

Não sou supersticioso, mas devo dizer que nas circumstancias mais criticas da minha vida, quando o oceano rugindo erguia o meu navio como um pedaço de cortiça, quando as bombas assobiavam a meus ouvidos como o vento da tempestade, quando as ballas cahiam em volta de mim como a saraiva, via sempre minha pobre mãe ajoelhada aos pés do Senhor orando pelo filho das suas entranhas. Se algumas vezes mostrei uma coragem de que muitos se admiraram, é porque estava convencido de que não me succederia desgraça alguma quando tão santa mulher, quando similhante anjo orava por mim.

II
OS MEUS PRIMEIROS ANNOS

Os primeiros annos da minha mocidade foram passados, como são os de todas as creanças, isto é, rindo e chorando sem saber porque, estimando mais o prazer que o trabalho, os divertimentos que o estudo, e não aproveitando, como devia ter feito, os sacrificios que meus paes faziam por meu respeito. Cousa alguma extraordinaria aconteceu durante a minha infancia. Tinha um excellente coração, sendo este um bem emanado de Deus e de minha mãe. Escusado é dizer que os impulsos d'esse coração eram por mim immediatamente satisfeitos. Tive sempre grande compaixão por tudo o que era fraco e soffredor. Esta compaixão estendia-se até aos animaes, ou antes começava por elles. Lembra-me de que um dia apanhei um grillo e que levando-o para o meu quarto, ahi passei alguns momentos brincando com elle, até que com essa inepcia ou antes brutalidade da infancia lhe arranquei uma perna: a minha dôr foi tal, que passei muitas horas encerrado no meu quarto chorando amargamente.

Outra vez indo a Var á caça com um primo meu, parei ao pé d'um profundo fosso aonde as lavadeiras costumavam lavar a roupa e aonde n'aquelle momento se achava uma pobre mulher lavando a sua. Não sei como, mas esta desgraçada caiu no fosso. Apesar de ser mui novo – tinha então oito annos – atirei-me á agua conseguindo salval-a. Conto este caso para provar quanto é natural em mim um sentimento que me leva a soccorrer o meu similhante, e para se conhecer o pouco valor que tem o fazel-o.

Entre os professores que tive n'esta epocha da minha vida, contam-se o padre Giovanni e o senhor Arene, a quem eu conservo um reconhecimento particular.

Com o primeiro aproveitei pouco, porque, como já disse, tinha mais disposição para brincar e vadear, do que para trabalhar. Resta-me sobre tudo o pesar de não haver estudado o inglez, como o teria podido fazer, porque sendo o padre Giovanni de casa e quasi de familia, as suas lições resentiam-se da muita familiaridade que entre nós existia. Todas as vezes que sou obrigado a tractar com inglezes, que não são poucas, este sentimento renova-se sempre. Ao segundo, optimo professor, é a quem devo o pouco que sei, mas o que mais lhe agradeço, e porque lhe serei eternamente grato, é haver-me ensinado a minha lingua materna pela constante leitura da historia romana.

A grave falta de não ensinar ás creanças a lingua e historia patria é frequentemente commettida em Italia, e principalmente em Niza, onde a proximidade de França influe muitissimo na educação. É pois a esta primeira leitura da nossa historia, e á persistencia com que meu irmão mais velho, Angelo, me recommendava o seu estudo, que eu devo o pouco que sei da sciencia historica e a facilidade de exprimir os meus pensamentos.

Termino este primeiro periodo da minha juventude narrando um facto que, apezar da sua pouca importancia dará uma idéa da minha disposição para a vida aventureira.

Fatigado de estudar, e soffrendo muito pela vida sedentaria que era obrigado a levar, propuz um dia a alguns dos meus companheiros que fugissemos para Genova. A proposta foi logo approvada e desatando um barco de pesca fizemo-nos de véla para o Oriente. Estavamos nas alturas de Monaco quando um pirata, mandado por meu excellente pae nos apanhou e entregou cheios de vergonha ás nossas familias. Um abbade que nos havia visto foi o denunciante. D'este facto é que provavelmente vem as poucas sympathias que sinto pelos abbades.

Os meus companheiros n'esta aventura eram, se bem me recordo, César Parodi, Rafael de Andreis e Celestino Dermond.

III
AS MINHAS PRIMEIRAS VIAGENS

«Oh! primavera, juventude do anno. Oh! juventude, primavera da vida!» disse Metastasio, eu ajuntarei: Como tudo se aformosea ao sol da juventude e da primavera!

Foi illuminado por esse bello sol que tu linda Constanza, primeiro navio em que sulquei os mares, me appareceste. Os teus robustos flancos, a tua elevada e ligeira mastreação, a tua espaçosa coberta, e até o busto de mulher que se patenteava soberbo na tua prôa, ficarão eternamente gravados na minha idéa! Como os teus marinheiros, verdadeiros typos dos nossos Ligurios, se inclinavam graciosamente sob os remos!

Com que alegria me dependurava na amurada para ouvir as suas canções populares.

Cantavam canções de amor; ninguem então lhe ensinava outras, e estas por mais insignificantes que fossem, enterneciam-me e arrebatavam-me. Se esses cantos tivessem sido pela patria, talvez me enlouquecessem! Quem lhe diria então que havia uma Italia? Quem lhe diria que tinhamos uma patria a vingar e a tornar livre?

Ninguem!

Fomos educados e crescemos como judeus, isto é, na crença de que a vida não tem senão um fim – fazer fortuna.

Em quanto olhava alegre para o navio em que ia embarcar, minha mãe preparava, chorando, a minha bagagem.

A minha vocação era a vida aventureira do mar. Meu pae fez todo o possivel para me tirar similhante idéa, a sua vontade era que eu seguisse, uma carreira pacifica e sem perigos; que fosse padre, advogado ou medico. Mas a minha persistencia o fez desistir, e o seu amor cedeu á minha juvenil obstinação. Embarquei então na Constanza de que era capitão Angelo Pesante o mais atrevido maritimo que tenho conhecido. Se a nossa marinha tivesse tomado as proporções que se podiam esperar, o capitão Pesante teria direito ao commando de um dos nossos navios de guerra, e ninguem o teria excedido. Pesante nunca commandou uma esquadra, mas que se dirijam a elle, e em breve tempo já terá arranjado uma, desde as barcas até ás naus de tres pontos. Se elle algum dia obtivesse uma tal commissão, posso assegurar que haveria proveito e gloria para a patria.

 

Fiz a minha primeira viagem a Odessa. Estas viagens tornaram-se depois tão communs e faceis que é inutil descrevel-as.

A minha segunda viagem foi a Roma, mas na companhia de meu pae que tendo na minha primeira ausencia soffrido mortaes inquietações, se tinha resolvido visto eu não querer ceder da minha teima, a acompanhar-me.

Fizemos a viagem na sua tartana a Santa Reparata.

A Roma! Com que alegria eu partia! Já disse como pelos conselhos de meu irmão e pelos cuidados do meu digno professor havia estudado, a historia romana. Roma era para mim, admirador da antiguidade, a capital do mundo. É verdade que se achava destruida, mas as suas ruinas eram immensas, gigantescas e d'ellas sae a memoria de tudo quanto é bello e grandioso. Roma foi não só a capital do mundo, mas o berço d'essa religião santa que quebrou a cadêa dos escravos, que ennobreceu a humanidade, d'essa religião de que os primeiros apostolos foram os instituidores das nações, os emancipadores dos povos, mas de que infelizmente os successores degenerados teem sido o flagello da Italia, vendendo sua mãe, ou antes nossa mãe, aos estrangeiros! Não! não! a Roma que eu via nos sonhos da minha mocidade não era só a Roma do passado, mas tambem a do futuro, abrigando em seu seio a idéa regeneradora de um povo perseguido pela inveja das outras nações, porque nasceu grande e porque tem sempre marchado á frente dos povos, guiados por ella á civilisação.

Roma! quando penso na sua desgraça, no seu abatimento, no seu martyrio, parece-me superior a todo o mundo. Amava-a com todas as forças da minha alma, não só nos combates soberbos da sua grandeza durante tres seculos; mas até nos mais pequenos successos que eu recolhia no meu coração como um precioso deposito.

O meu amor em logar de diminuir, tem augmentado com o desterro. Muitas vezes, no outro lado dos mares, a tres mil leguas de distancia, pedia ao Senhor como uma graça especial o tornar a vêl-a. Finalmente, Roma era para mim a Italia, porque eu não vejo a Italia senão na reunião dos seus membros dispersos, e Roma é para mim o symbolo da unidade italiana.

IV
AS MINHAS PRIMEIRAS AVENTURAS

Durante algum tempo naveguei na companhia de meu pae; depois fui a Cagliari no bergantim Etna, de que era capitão José Gervino.

N'esta viagem presenciei uma horrivel catastrophe que me deixou uma eterna recordação. Vindo de Cagliari, na altura do cabo Noli, navegavamos na companhia de alguns navios, entre os quaes se achava uma encantadora falua catalã. Depois de gosarmos dois ou tres dias de um bello tempo, começámos a sentir algumas rajadas d'esse vento a que os nossos marinheiros chamam Libieno, por que antes de chegar ao Mediterraneo passa pelo deserto de Lybia. Impellido por elle o mar não tardou a enfurecer-se, e tão furiosamente que nos arrastou para Vado.

A falua de que já fallei sustentou-se admiravelmente no começo da tormenta, e não duvido dizer que todos nós receiando que a tempestade augmentasse, desejavamos antes estar a bordo da falua, do que dos nossos navios. Infelizmente a desgraçada embarcação estava destinada a offerecer-nos um doloroso espectaculo: uma vaga horrivel a cobriu, e em bem poucos instantes todos aquelles desgraçados foram submergidos. A catastrophe tinha logar á nossa direita, e por isso nos era absolutamente impossivel soccorrel-os. Os outros navios que nos acompanhavam tambem se achavam na mesma impossibilidade. Nove pessoas da mesma familia morreram á nossa vista, sem lhe podermos prestar o mais leve soccorro. Algumas lagrimas appareceram nos olhos dos mais endurecidos dos nossos marinheiros, mas o perigo proprio era tal que ellas bem depressa seccaram. A tempestade abrandou, como se estivesse satisfeita por haver immolado estas victimas; e chegamos a Vado sem incídente.

De Vado parti para Genova, e de Genova voltei a Niza.

Então comecei uma serie de viagens ao Levante, durante as quaes fomos tres vezes tomados e roubados pelos piratas. Duas vezes o fomos na mesma viagem, o que tornou os segundos piratas mui furiosos, visto que não nos encontravam cousa alguma para roubar. Foi n'estes ataques que comecei a familiarisar-me com o perigo, e a vêr que sem ser Nelson, podia como elle perguntar: – O que é o medo?

Foi n'uma destas viagens, no bergantim Cortese, capitão Barlasemeria, que fiquei doente em Constantinopla. O navio foi obrigado a fazer-se de véla, e prolongando-se a minha doença mais do que eu tinha julgado, achei-me muito falto de recursos.

Como em todas as situações desgraçadas em que me tenho achado, sempre encontrei alguma alma caridosa que me soccorresse, nunca pensei muito na falta de dinheiro.

Entre essas almas caridosas encontrei uma que nunca esquecerei: é a excellente senhora Luiza Sauvaigo, de Niza, que me fez convencer de que as duas mulheres mais perfeitas do mundo, eram minha mãe e ella.

Luiza fazia a felicidade de um marido, excellente homem, e tratava com uma admiravel intelligencia da educação de seus filhos.

Porque razão fallei agora de Luiza? É porque escrevendo para satisfazer uma necessidade do coração, ella me dictou o que acabo de lançar ao papel.

A guerra então existente entre a Porta Ottomana e a Russia contribuiu a prolongar a minha estada na capital do imperio turco. Durante este tempo e ignorando ainda como poderia alcançar recursos para viver, fui admittido como preceptor em casa da viuva Timoni. Este emprego foi-me dado sob recommendação de M. Diego, doutor em medicina, e a quem dou aqui um voto de agradecimento pelo serviço que me prestou. Estava, pois, preceptor de tres meninos. Assim fiquei muitos mezes, até que a vontade de navegar vindo de novo, me embarquei no bergantim Notre-Dame-de-Grace, de que tinha sido capitão Casanova.

Foi este o primeiro navio em que embarquei como capitão.

Não fatigarei o leitor fallando nas minhas viagens, em que nada de extraordinario me succedeu, direi unicamente que atormentado sempre por um profundo patriotismo, nunca cessei de perguntar noticias sobre a ressurreição de Italia, mas infelizmente até á edade de vinte e quatro annos todo o trabalho foi inutil.

Emfim, n'uma viagem a Taganrog veiu a bordo do meu navio um patriota italiano, que me deu algumas noticias sob a maneira porque marchavam os negocios de Italia.

Havia alguma esperança para o nosso desgraçado paiz.

Christovão Colombo, não foi mais feliz, quando perdido no meio do Atlantico, e ameaçado pelos seus companheiros a quem havia pedido só tres dias, ouviu gritar: «Terra», do que eu quando ouvi pronunciar a palavra patria, e vi no horisonte o primeiro pharol preparado pela revolução franceza de 1830.

Havia então homens que se occupavam da redempção da Italia!

Em outra viagem, transportei no Clorinde, a Constantinopla alguns Simoniacos, conduzidos por Emilio Parrault.

Tinha ouvido fallar pouco na seita de «Saint-Simon»; sabia unicamente que estes homens eram os apostolos perseguidos de uma nova religião.

Vendo em Parrault um patriota italiano, dei-lhe parte de todos os meus pensamentos. Então durante essas noutes transparentes do Oriente, que, como diz Chateaubriand, não são as trevas, mas unicamente a ausencia do dia, debaixo d'esse ceu marchetado de estrellas, sobre esse mar de que a brisa parecia cheia de inspirações generosas, discutimos, não só as mesquinhas questões de nacionalidade nas quaes havia pensado muito, questões restrictas á Italia, e a cada provincia – mas até a grande questão da humanidade.

Este apostolo provou-me que o homem que defende a sua patria, ou que ataca a dos outros, é no primeiro caso um soldado piedoso; injusto no segundo, – mas o homem que tornando-se cosmopolita, adopta a todas por patria e vae offerecer a sua espada e o seu sangue ao povo que lucta contra a tyrannia, é mais que um soldado – é um heroe.

Teve então logar no meu espirito uma mudança repentina. Pareceu-me vêr em um navio não o vehiculo encarregado de transportar mercadorias entre os diversos paizes, mas o mensageiro do Senhor. Havia partido avido de emoções, e curioso por vêr cousas novas, e a mim mesmo perguntava se esta idéa irresistivel que me perseguia não tinha horisontes mais dilatados e por descobrir. Via esses horisontes atravez o longiquo véo do futuro.

V
OS ACONTECIMENTOS DE S. JULIÃO

O navio em que desta vez voltei do Oriente destinava-se a Marselha.

Chegando a esta cidade soube da revolução suffocada no Piemonte e dos fuzilamentos de Chambéry, Alexandria e Genova.

Em Marselha travei relações intimas com Covi, que me apresentou a Mazzini.

Então estava longe de suspeitar a grande communidade de principios que um dia me uniria a Mazzini. Ninguem conhecia ainda o persistente e obstinado pensador, que nem a propria ingratidão tem feito desistir da grande obra que emprehendeu. Quando soube da morte de Vocchieri, Mazzini tinha dado um verdadeiro grito de guerra.

Escreveu na sua Joven Italia: «Italianos, é tempo de nos juntarmos, se queremos ficar dignos do nosso nome; e derramar o nosso sangue amalgamando-o com o dos martyres piemontezes.»

Mas em França, em 1833, não se diziam impunemente d'estas cousas. Algum tempo depois de lhe haver sido apresentado, e de lhe ter dito que podia contar comigo, Mazzini, o eterno proscripto, era obrigado a deixar a França e a retirar-se a Genova.

N'esta occasião o partido republicano parecia completamente morto na França. Era um anno apenas decorrido: estavamos a 5 de junho, – alguns mezes depois do processo dos combatentes do claustro Saint-Merry.

Mazzini havia escolhido este momento para fazer uma nova tentativa.

Os patriotas tinham respondido que estavam promptos, mas pediam um chefe.

Pensaram em Romarino, ainda coberto de louros por causa das suas luctas na Polonia.

Mazzini não approvava esta escolha, o seu espirito activo e profundo prevenia-o contra os grandes nomes; mas a maioria queria Romarino, e então Mazzini cedeu.

Chamado a Genova, Romarino acceitou o commando da expedição. Na primeira conferencia com Mazzini foi convencionado que duas columnas republicanas se deviam dirigir ao Piemonte, uma pela Saboia outra por Genova.

Romarino recebeu quarenta mil francos para fazer face ás primeiras despezas, e partiu com um secretario de Mazzini que ia encarregado de o vigiar.3

Todos estes acontecimentos tiveram logar em setembro de 1833; a expedição devia ter logar em outubro.

Mas Romarino conduziu tudo de tal modo que a expedição não estava prompta senão em janeiro de 1834.

Mazzini não obstante todas as tergivergencias do general tinha-se mostrado firme.

Em fim a 31 de janeiro, Ramorino collocado na ultima extremidade por Mazzini reuniu-se a elle em Genova, com dois outros generaes e um ajudante de campo.

A conferencia foi triste, e mal annunciada por pessimos agouros. Mazzini propoz que se occupasse militarmente a villa de S. Julião, onde se achavam reunidos os patriotas saboyanos e os republicanos francezes, que haviam adherido ao movimento.

Era em S. Julião que se devia levantar o grito de rebellião.

Ramorino era da opinião de Mazzini. As duas columnas deviam pôr-se em marcha no mesmo dia: uma partiria de Caronge, e a outra de Nyon, devendo esta atravessar o lago para se reunir á primeira na estrada de S. Julião.

Ramorino ficava com o commando da primeira columna: a segunda estava debaixo das ordens de Graboky.

O governo genovez receioso de se indispor, por um lado com a França, por outro com o Piemonte, viu com maus olhos este movimento. Quiz oppor-se á partida da columna de Caronge commandada por Romarino, mas o povo sublevou-se, e o governo foi forçado a deixal-a marchar.

Não succedeu o mesmo com a que devia partir de Nyon.

Dous barcos se haviam feito de véla, levando um soldados, e o outro armas.

Mandaram em sua perseguição um navio de guerra a vapor, que trouxe as armas e aprisionou os soldados.

Ramorino não vendo chegar a tropa que se lhe devia juntar, em logar de proseguir na sua marcha sobre S. Julião, começou a costear o lago.

 

Muito tempo se passou sem saber aonde iam. Não se conheciam as intenções do general: o frio era intenso, e os caminhos estavam em um estado deploravel.

Exceptuando alguns polacos, a columna era composta de voluntarios italianos, impacientes pela hora do combate, mas que cançavam facilmente pela extensão e difficuldade do caminho.

A bandeira italiana atravessou algumas pobres villas, nenhuma voz amiga a saudou, não encontrando por toda a parte senão curiosos ou indifferentes.

Fatigado pelos seus largos trabalhos, Mazzini que tinha trocado a penna pela espingarda, seguia a columna: soffrendo uma febre ardente, arrastava-se por aquelles asperos caminhos com a dôr escripta na fronte.

Já por varias vezes tinha perguntado a Ramorino quaes eram as suas intenções, e que caminho seguia.

As respostas do general nunca o haviam satisfeito.

Chegaram a Carra e detiveram-se para ahi passar a noite; Mazzini e Ramorino achavam-se na mesma camara.

Ramorino estava embrulhado na sua capa; Mazzini fixava sobre elle o seu olhar sombrio desconfiado.

– Não é seguindo este caminho, disse elle com a sua voz sonora, tornada mais vibrante pela febre, que temos a esperança de encontrar o inimigo. Devemos ir ao seu encontro, e se a victoria é impossivel, provemos ao menos á Italia que sabemos morrer.

– Não nos faltará nem o tempo, nem a occasião, respondeu o general, para affrontar perigos inuteis: considero como um crime o expôr inutilmente a flôr da mocidade italiana.

– Não ha religião sem martyres, respondeu Mazzini, fundemos a nossa, ainda que seja com o nosso sangue.

Mal acabava de pronunciar estas palavras, que o estrondo da fuzilaria se ouviu.

Ramorino deu um salto. Mazzini pegou n'uma carabina, agradecendo a Deus o ter-lhe feito encontrar o inimigo. Mas este era o ultimo esforço da sua energia: a febre devorava-o; os seus companheiros correndo de noite pareciam-lhe fantasmas, a fronte escaldava-lhe, e a terra tremia-lhe debaixo dos pés. Depois de alguns minutos de afflicção caíu desmaiado.

Quando voltou a si achou-se na Suissa, aonde os seus companheiros o tinham conduzido com grande trabalho: a fuzilaria de Carra tinha sido um rebate falso.

Ramorino declarou então que tudo estava perdido: recusou-se a ir mais longe e ordenou a retirada.

Durante este tempo uma columna de cem homens, da qual faziam parte um certo numero de republicanos francezes, partiu para Grenoble, e atravessou a fronteira da Saboya.

O perfeito francez preveniu as auctoridades sardas: os republicanos foram attacados de noute e de improviso, ao pé das grutas de Cobellos, e dispersos depois d'um combate que durou uma hora.

N'este combate os soldados sardos fizeram dois prisioneiros. Angelo Volantieri e José Borrel: conduzidos voluntariamente a Chamberg e condemnados á morte, foram fuzilados na mesma terra aonde ainda estava fumegante o sangue de Elfico Tolla.

Por este modo terminou aquella expedição.

3Estes successos que tinham logar em um ponto aonde não estava Garibaldi, são aqui referidos unicamente para explicação historica, sendo extrahidos de Angelo Brofferio.