Romancistas Essenciais - Franklin Távora

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From the series: Romancistas Essenciais #19
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IX

PROFUNDA revolução se havia operado durante uma noite no íntimo do bandido.

Quando ele chegou ao couto, estava já resolvido o assalto à família de Liberato, a qual por se achar mais próxima do que qualquer outra, estava no caso de merecer as honras da prioridade na provação.

Cabeleira não deu mostras de que aprovava, ou reprovava semelhante resolução.

Seu ânimo, ordinariamente prestes para toda sorte de temeridades e investidas, mostrava-se agora frio diante do assentado acontecimento. Viração suavíssima passara por cima do férvido charco das suas paixões, e deixara, se não purificadas, decerto quietas as águas que aí se enovelavam turvas e lodosas. Essas águas nunca jamais viriam a ter a limpidez do regato que se desliza em manhã de verão, por cima de prateadas areias; podiam, porém, perder o lodo e os vermes que se geram e alimentam em pútridos pântanos; podiam tornar-se mansas, como as dos lagos, azuis como as dos golfos.

A princípio os companheiros do bandido atribuíram o seu silêncio, a sua tristeza e a sua abstração aos ferimentos recebidos na luta.

Mas mudaram de opinião tanto que o viram pegar da viola, seu instrumento querido que, não só a ele, mas também a todos os do couto proporcionava, nas mãos do inspirado tocador, momentos de prazer e consolação.

Era de tarde. Os bandidos tomaram por uma vereda que ia ter à borda da grota aonde chegava levemente a aragem do tabuleiro, donde se descortinava o vasto sertão opresso e abrasado.

Aos sons da viola puseram-se uns a cantar, outros a dançar, como brincam saltando as crianças nas campinas.

De repente Manuel Corisco fez sinal para que se calassem.

— Estou vendo ali embaixo um homem que vem na direção da grota, disse ele aos camaradas.

— Você não se engana, Manuel. Ele vem tomando chegada tão gacheiro e amedrontado, que não pode ser amigo nosso.

Os salteadores tinham razão, porque o desconhecido era Matias.

Um deles quis imediatamente estendê-lo por terra com um tiro do seu bacamarte. Assentaram porém ocultar-se a fim de verem primeiramente o que pretendia.

Quando Matias desapareceu por um lado, segundo já dissemos os malfeitores sumiram-se pelo lado oposto, pé ante pé, na embocadura do profundo abismo.

Tinha o Cabeleira avançado já alguns passos após os companheiros, quando uma idéia súbita, atuando sobre sua vontade por modo irresistível, o fez sobressaltar-se. Ele se lembrara de que se os companheiros conseguissem apoderar-se do desconhecido, não o deixariam com vida. Mas o bandido sentia-se naquele momento tão pouco disposto a contribuir para a morte de um homem que não pôde acabar consigo que voltasse à beira da grota.

— Se eu quisesse, esse desconhecido não morreria, disse de si para si. Mas não. Se não vou ajudar os outros a lhe tirarem a vida, também não o irei salvar.

O lodo tinha já desaparecido da superfície do charco imundo que ele trazia no coração; restava, porém, ainda no fundo, como se vê, a vasa corruta e pestilencial.

Para que Matias declarasse o fim que o levava àquele ponto, preciso foi primeiro que o ligassem com cipós a um tronco, e batessem nele sem piedade. Suplício atroz e covarde que o índio sofreu com estóica resignação característica de sua raça.

— Então dizes, ou não dizes a que vieste, Veado do inferno? perguntara Joaquim.

— Vim em procura daqueles que ali estão para os urubus comerem, respondera o velho.

— Até que enfim deste com a língua nos dentes.

— Quiseste primeiramente provar o cipó de rego.

— Mas não nos dirás quem foi que te mandou a isso?

— Quem me mandou! Tive pena daquelas mulheres que choravam por seus maridos, e larguei-me a ver se os encontrava.

— Tiveste pena das mulheres, hem? Maganão! Havemos de lá ir hoje de noite para também termos pena como tu tiveste.

— Elas não serão tão tolas que apareçam a qualquer que lá chegue, retorquiu Matias com segunda tenção.

— Mas a ti abriram elas a porta, velho mandingueiro.

— Para mim hão de ter sempre franca a sua casa, porque sabem que eu sou incapaz de as ofender.

— Então, se lá formos, não nos deixarão entrar? perguntou Joaquim.

Matias, depois de um momento de reflexão, respondeu:

— Só se forem comigo.

— Pois está dito. Iremos contigo, disse o Mulatinho.

— Mas tu irás amarrado, bem amarrado, jia de lagoa, acrescentou José Trovão.

— Como quiserem, contanto que não me matem no caminho.

— Se nos facilitares a entrada, podes ter por certo que não haverá quem se atreva a tocar-te em um cabelo sequer.

— Bem sabes que não precisamos do auxílio de pessoa alguma para tomarmos conta de uma casa onde só há mulheres choronas, observou Joaquim. Mas sempre é melhor entrar sem fazer barulho para não dar que falar à vizinhança.

Era quase noite, e já a lua espargia a luz suave por sobre a solidão, quando se acharam novamente na beira do despenhadeiro. Segundo um plano assentado entre eles, quatro seguiram com Matias pelo lado por onde havia descido, enquanto os outros, subindo pelo lado oposto, se dirigiram ao esconderijo a fim de se proverem dos instrumentos necessários para o assalto. Os primeiros esperariam pelos últimos na boca da mata para, reunidos, seguirem a seu destino.

No momento em que os malfeitores tomaram a direção da engenhoca, um cavalheiro que entrara na mata por secretos atalhos, fora dar com o Cabeleira em seu retiro. Era o Teodósio.

— Arrumem as trouxas, e mudem de acampamento.

Foram estas as suas primeiras palavras.

— Donde vens tu? Que diabo tens, Teodósio?

— Vêm aí soldados que nem terra.

— Quem te contou semelhante coisa?

— Eu que sei. O governador está comendo fogo pelo que fizemos na noite da procissão.

— Ora!... Pois que venham. Hão de saber para quanto presto. Nunca torci a cara a homem nenhum, e não morro de careta, como sagüi.

— Eu também não tenho medo deles, disse o cabra. Mas é bom a gente estar prevenido para não cair no mundéu como bicho do mato.

O Teodósio unicamente suspeitava o que dizia estar para acontecer. Fino, matreiro, como era, facilmente previra que não ficaria sem punição o crime que haviam eles cometido na vila.

— Ora, Teodósio! redargüiu José com mostras de fazer pouco do que lhe dizia o camarada. Eu, por ser bicho do mato, é que não hei de cair no mundéu. Olha tu: enquanto houver mata virgem por esse mundão de meu Deus, podem eles mandar contra mim os soldados que quiserem, que não me apanham, ainda que sejam tantos como formigas. Não me hão de ver nem a fumaça.

— Não digo menos disso, respondeu Teodósio.

— Eu sou cabra mesmo danado — prosseguiu Cabeleira. Quem se engana comigo é porque quer. Meto a unha no chão, e entro no oco do mundo para nunca mais ninguém me pôr o olho em cima. As matas de Serinhaém, Água Preta, Goitá, Goiana, Paraíba, Rio Grande aí estão bem fresquinhas para esconderem em seu seio a onça pintada. É bom que não me assanhem. Se o governador duvidar do meu sério, sou capaz de me largar daqui, pi, pi, até à vila, e lá mesmo vou mostrar-lhe com quantos paus se faz jangada.

— Pois afia bem a tua faca, e escorva de novo o teu bacamarte, que o trovão não tarda a roncar.

— Eu nunca deixei de trazer a. faca e o bacamarte prontinhos para o serviço. Quem quiser venha ver.

— Está bom. Até já, disse o Teodósio, despedindo-se para sair.

— Aonde vais? perguntou-lhe o Cabeleira.

— Tenho cá uma idéia. Vou passar pela porta do capitão-mor.

— O capitão-mor está na vila, disse José.

Não, senhor, está aí. Veio antes de mim, que não me escapou. Vou passar-me pela porta, e tirar conversa com algum soldado bisonho que aí se ache de serviço a fim de ver se pesco notícia que nos oriente.

— Não é mau o que queres fazer. Mas olha bem, não caias em alguma ratoeira.

— Macaco velho não mete mão em cumbuca, respondeu Teodósio, preparando-se para montar novamente.

— Faço-te companhia até o cercado da engenhoca do defunto Liberato, acudiu Cabeleira.

E saltou sobre a garupa do cavalo que Teodósio pôs a passo pela vereda secreta que ia dar na via pública.

— Uê! exclamou Teodósio, voltando-se para o companheiro a fim de melhor saber dele a verdade. Pois morreu o Liberato, tão bom amigo nosso, que nunca nos faltou com jerimum, canas e criação?

— Ele era camarada, é verdade. Mas meteu-se-lhe na cabeça que havia de tirar-nos o couro, e há três dias veio bulir conosco.

— Que estás dizendo?

— Não só ele, mas também os filhos e o bom do genro.

— Foi a sua derradeira deles, hem?

— É verdade. O Zé Rufino, que o negro fora convidar para o ajudar na tragédia que tinha ideado contra nós, correu logo a dar-nos parte de tudo ainda em tempo. Quando os cabras apareceram, encontraram gente. Fizemos o bonito em poucas horas. Estão todos dentro do grotão.

— E que vais tu ver à engenhoca?

— Vou reunir-me com os outros que lá estão fazendo uma das suas. Mas onde arranjaste tu este quartau passeiro e passarinheiro que se vai derretendo na estrada depois da grande caminhada que traz da vila?

— Falta aí engenho onde se vá buscar um animalzinho fora de horas para a gente fazer sua viagem?

— Pois então vai logo pondo de olho alguns outros para fazermos a nossa mudança se a tropa vier perseguir-nos.

— Amanhã pela manhã teremos um lote, e poderemos meter terra em meio antes que o tropão bata por cá.

Tinham deixado a vereda, e achando-se já na estrada que, fazendo pouco adiante um ângulo, seguia em linha mais ou menos reta até o povoado.

 

Ao passarem por baixo de uma pitombeira que no ângulo apontado agitava no ar a sua copa gigantesca, súbito ruído espantou o cavalo que por um triz não tirou o cabresto da mão do Teodósio. Com o violento arranco, partiu-se a cilha da cangalha, e os dois cavaleiros vieram à terra.

— Diabo! exclamou o Teodósio contrariado e perturbado. Foi alguma coruja que abalou da pitombeira.

Não se havia partido só a cilha, mas também a armação da cangalha.

— Sabes que mais, Teødósio? Acho melhor, que não vás ao povoado.

— Por que não?

— A cilha partida, a cangalha arrebentada, tudo me parece aviso para que não faças a viagem, disse o Cabeleira.

— Estou já em outro acordo. Deixo-te o cavalo e vou a pé. Este cavalo é quem me está encaiporando.

Enquanto o Teodósio seguia pela beira do rio, o Cabeleira, que havia tomado a direção da engenhoca, dava a volta do caminho, e descobria a casa envolta em chamas cujo clarão sinistro iluminava a estendida solidão. Em breves instantes achava-se entre os companheiros, e cortava, como vimos, a porfia do Trovão e do Mulatinho sobre a posse de Luísa.

— Luisinha! exclamou o bandido. Tu me pertences.

— Que dizes, Zé Gomes? interrogou Joaquim sem poder bem compreender o que ouvira ao filho, que lhe pareceu alucinado.

— Digo o que é. Houve tempo em que juramos, eu e ela, pertencer-nos na mocidade. Chegou a ocasião.

— Atreves-te a falar-me em juramento! Não sabes o que estas dizendo. Esta mulher é minha, e quem for homem que se meta a vir tomar-ma.

Ainda bem não havia proferido estas palavras quando o Cabeleira puxava da faca dando mostras de querer ferir com ela o seu interlocutor.

— Zé Gomes! Gritou este. Já te esqueceste de que sou teu pai?

— Não tenho pai; só tenho mãe que me ensinou o caminho do bem; pai nunca tive nem tenho. Não é meu pai aquele que só me ensinou a roubar e a matar.

— Zé Gomes, olha bem o que dizes! redargüiu de novo Joaquim, medindo o filho com olhar ameaçador e terrível.

— Já lhe disse, retorquiu o mancebo sobreexcitado pela oposição do velho, ao qual se atirou com fúria brutal para lhe arrancar das mãos os pulsos de Luísa afogada em prantos e soluços.

Joaquim resistiu. Os outros malfeitores reuniram-se em torno daquelas duas hienas que ameaçavam despedaçar-se mutuamente. Mas não houve um só dentre tantos que tentasse compor os discordes.

Cabeleira brandiu enfim a faca contra o velho.

Neste momento voz chorosa e soluçada ressoou na solidão. Foi a voz de Luísa.

— Cabeleira, disse ela, terás ânimo para ferir teu pai?!

O braço do bandido descaiu incontinente como se aquela voz lhe tivesse cortado os músculos atléticos.

— Meu pai! exclamou o desgraçado. Um pai não toma a mulher de seu filho. Mas já que o queres, fica-te com ela, acrescentou voltando-se para Joaquim. Cabeleira vai desaparecer para sempre, e sem o seu auxílio hão de cair nas mãos da justiça todos os que me cercam. A tropa aí vem.

— A tropa! gritaram os malfeitores sobressaltados, olhando uns para os outros, e todos para a solidão que, ao declinar do incêndio, retomava seu aspecto equívoco e medonho.

Tendo assim falado, Cabeleira deu o andar na direção da estrada. Seu espírito estava abatido, seu coração despedaçado pelo golpe cruel que lhe havia vibrado a desgraça.

Então Luísa, vendo assim perdido o último raio de esperanças, que ainda a guiava no meio das trevas do seu infortúnio, exclamou:

— Meu Deus, meu Deus, que será de mim?

Joaquim entretanto tinha-se atravessado diante do Cabeleira. Todo assassino é covarde.

— Por que nos queres deixar? perguntou ele ao filho. No momento em que mais precisamos de ti, é que tu nos desamparas? Não sejas mau, Zé Gomes. Eu te perdôo a desobediência, e te restituo a mulher. Fujamos todos.

Cabeleira atirou-se a Luísa, e tomou-a nos braços com frenesi de alucinado.

Volvendo um instante depois os olhos ao redor, não viu um só sequer dos companheiros. Penetrados de pânico terror, todos tinham corrido, sem exceção de Joaquim, a ocultar-se na mata.

— Vamos, Luisinha, disse o bandido à moça, com ternura. Ninguém a ofenderá, ninguém.

— E minha mãe?! soluçou Luísa caindo que a eternidade se ia meter entre ela e Florinda, e que sobre a Terra estava tudo acabado para ela.

O bandido conchegou-a ao peito e abafou-lhe as últimas palavras com um beijo.

X

QUE valeu a Luísa ter-se libertado das mãos de Joaquim, se o Cabeleira a prendia em seus braços possantes e atléticos.

— Solte-me, solte-me — disse a moça ao bandido.

— Quer ficar aqui? Não a deixarei só.

— Não se importe comigo. Siga seu pai, que eu irei para minha casa. Não preciso da companhia de ninguém.

Com esforços sobre-humanos Luísa tentou libertar-se das suas prisões. Foram inúteis esses esforços.

— Se não me soltar, há de ver-me cair morta a seus pés.

Ela tinha podido apoderar-se do facão do malfeitor, e o voltava contra si mesma.

O Cabeleira parou, e soltou-a.

— Que pretende você fazer, Luisinha? Não tem pai, não tem mãe, não tem quem por si olhe. Para onde quer ir?

— Quero matar-me aos pés de minha mãe.

— Isso nunca.

Sem esforço nem luta ele a desarmou em um momento.

Depois perguntou, com a voz mais branda do mundo:

— Matar-se por quê, Luisinha? Não se lembra que me prometeu ser minha mulher quando um dia nos encontrássemos?

— Eu fiz esta promessa com uma condição, que você não cumpriu.

— Pois bem. Estou pronto a cumpri-la agora — tornou ele com ternura.

— Quer enganar-me, José? Para que eu acreditasse em suas palavras fora preciso não o ter visto levantar há pouco a faca para seu pai.

— É verdade; assim foi. Eu estava fora de mim — respondeu com ar pesaroso que indicava remorso, vergonha e arrependimento do feio ato que tinha praticado. Mas que importa isso? continuou ele. O tanto matar já me aborrece, e eu quero mudar de vida.

— Não creio, não posso crer no que você diz — observou Luísa.

— Nem se eu jurar?

— Eu sei!...

— Que razão tem para duvidar tanto de mim, Luisinha? Estou vendo que você nunca me quis bem.

— Eu é que posso dizer isso de você.

— Se eu não lhe quisesse bem, não a tinha deixado livre como está. Se eu só a quisesse lograr como fazem com as outras, quem me poderia impedir de realizar a minha vontade? Ninguém.

— Podia, e pode ainda matar-me, mas fazer isso, nunca, nunca. Só depois de me haver tirado a vida.

— Como se engana! Assim o quisesse eu; mas não quero. Eu sei que você me quer bem, e por isso não me vexo nem apresso.

Com os braços trêmulos o Cabeleira apertou Luísa novamente contra o peito onde lhe ardia o coração em chamas de entranhado amor.

— Deixe-me, José. Aquela que você ofendeu, aquela que você arrancou dentre os meus braços, dali o está vendo e amaldiçoando.

— Perdoe-me, não me odeie, Luisinha, por sua bondade, e pelo muito que nos queremos nos primeiros anos. Se eu a privei de sua mãe, estou pronto a protegê-la de agora por diante. Pelo corpo de sua mãe, juro que farei isso, Luisinha.

— Jurará também que não há de tirar mais a vida de ninguém, ainda que seja de um passarinho?

O bandido refletiu um momento.

— E se me quiserem matar? perguntou depois.

— Fugirá — respondeu Luísa.

— E se não puder fugir?

— Eu quero que você jure, Cabeleira, que em caso nenhum derramará mais sangue sobre a Terra, ouviu? Se não for assim, tudo estará acabado entre nós.

— Pois bem, Luisinha. Eu juro. O malvado será de hoje em diante homem de bem.

Luísa fitou-o como um anjo deve fitar um demônio que promete ser anjo. O Cabeleira, porém, não lhe deu tempo para grande contemplação, porque de chofre a tomou pela terceira vez nos braços febris, e desapareceu com ela no meio da escuridão.

Saltar ao cavalo, vencer o vasto pátio, galgar a cerca e, em vez de ir em demanda da mata, voltar ao rio e descer pela margem esquerda na direção do norte, foi obra de um instante para o destemido sicário. Luísa deixou-se conduzir em silêncio ao meio do fatal desconhecido.

Ainda bem não tinham vencido uma milha na veloz corrida, quando o Cabeleira descobria uma cinta escura que se desenhava e movia, como nuvem de tormenta, no confuso horizonte.

Seu primeiro cuidado, ao ver aquela visão aterradora, foi afastar-se da margem, e meter-se em um alagadiço que ficava a alguma distância do rio. Com a grande seca o brejo estava em pó, e a poderosa vegetação aquática reduzida a raras touças que mal encobriam uma pessoa sentada.

— Esperemos aqui, Luisinha, que passe a tropa que vai para o povoado.

Luísa conheceu que estavam em perigo, e não fez a menor oposição. Atravessando o cavalo diante de si, acomodaram-se ambos de pé, do melhor modo que puderam, Luísa a rezar como costumava nos momentos arriscados, Cabeleira observando em profundo silêncio, através da escuridão da noite, a mata que aparecia, como gigantesca e estendida mole, do lado oposto da planície deserta e medonha.

O mancebo não se enganara. Era de feito uma tropa que vinha em busca dos salteadores.

Os pelotões encaminharam-se para as embocaduras das veredas. Não havia mais que duvidar. O segredo da encoberta estava no poder da justiça.

— Estão perdidos, disse o Cabeleira comovido. Se foram tomadas as saídas que ficam do lado do poente, nenhum se salvará.

Como impelido por força irresistível, o Cabeleira deu o andar para o mato.

— Que vai você fazer? Perguntou-lhe a moça com inquietação, atravessando-se na frente dele.

— Não se assuste, Luisinha. Vou defendê-los.

— Diga antes que vai morrer.

— Não, o que eu vou fazer é matar gente sem piedade, acudiu o bandido.

— Matar gente! repetiu Luísa. Que valeu então o juramento que fez há pouco?

— Ah! disse ele, caindo em si. É verdade, Luisinha. Mas que quer que eu faça? Pois não hei de ir ajudar os meus a saírem da tribulação em que se acham?

— Eles são muitos e valentes, respondeu Luísa; podem bem dispensar o seu adjutório. Demais, você não pertence mais a eles, mas a mim, a mim só; ouviu José?

— Sim, eu sou seu, Luisinha; eu pertenço a você pelo coração, pelo amor.

Ouvindo estas palavras, ela inclinou ao chão seus olhos mais belos que as estrelas que brilhavam no céu.

— Mas, você fez bem em lembrar o juramento que há pouco fiz, prosseguiu o Cabeleira. Eu não podia ver meus companheiros em perigo sem correr para junto deles a defendê-los. Se não fosse você, Luisinha, eu já não estava aqui. Mas agora me lembro: saiamos sem demora, que talvez seja ainda tempo de os salvar por outro meio.

Em menos de um instante acharam-se montados no cavalo que o bandido pôs a galope em direitura ao rio.

— Para onde vamos nós? perguntou Luísa, agarrando-se, sobressaltada, ao destemido matador. Aonde me leva você, José?

— Não fale, Luisinha, não fale, que pelas suas palavras podem vir sobre nós.

Nesse momento a detonação de alguns tiros e as vozes de um clarim, pregoeiro de não sei que operação militar, indicaram que a força tinha dado com os bandidos, e que qualquer aviso para que fugissem seria inútil.

— É tarde, disse o Cabeleira. Já não é possível a salvação. Mas hão de ter-me ao pé de si na sua derradeira, exclamou, saltando do cavalo abaixo e dando mostras de querer correr ao lugar do perigo.

— Cabeleira! exclamou Luísa penetrada de terror. Você terá ânimo de desamparar-me neste deserto? Não, não há de fazer isso comigo. Veja que eu sou hoje só no mundo.

O bandido parou incontinente. Estas palavras foram grilhões que o prenderam aos pés da adolescêntula.

— Tem razão, Luisinha.

— Fujamos sem perda de tempo, acrescentou ela.

Nesse momento uma das escoltas saía da mata.

Grande vitória tinha sido ganha pelas armas reais contra os destruidores da propriedade, honra e vida de inofensivas povoações.

Inúmeras partidas militares já tinham sido expedidas contra os malfeitores sem resultado.

Pouco depois do canibalismo perpetrado no primeiro domingo de dezembro de 1773 na ponte do Recife, o governador Manuel da Cunha de Meneses fizera seguir contra eles uma força considerável.

 

Esta força chegou a Afogados alguns minutos depois da retirada dos autores da desordem; e daí não passou, por não ter sido possível, apesar das mais minuciosas indagações, saber o rumo que haviam tomado os criminosos.

O Timóteo, cuja taverna foi varejada, declarou unicamente que eles tinham de feito estanciado aí, mas que se haviam retirado sem lhe dizerem para onde. Não houve promessas nem ameaças bastantes a obter dele declaração mais formal e menos lacônica do que esta.

Tempos depois novas partidas foram mandadas a ver se se conseguia o fim desejado.

Tanto a que seguiu ao norte, como a que seguiu ao sul bateram matos, atravessaram rios cheios, empregaram enfim os maiores esforços inutilmente. Em mais de um lugar, ou de um pouso encontraram vestígios da recente passagem dos bandidos, ou da sua ação destruidora e fatal, mas nunca lhes foi possível dar com os três personagens, tipos legendários que todos conheciam pelos seus tristes feitos, que todos tinham visto, a quem quase todos tinham pago pesado tributo, mas que iludiam a vigilância e zombavam dos esforços de todos, sem exceção do poder público. Nuvem miraculosa envolvia-os, ocultava-os, aos olhos da justiça e da. lei, que tem em toda a parte vistas penetrantes e perscrutadoras a que ninguém se encobre por muito tempo. Nos seus tenebrosos antros saboreavam o corrosivo prazer que proporciona o roubo, e a impunidade. Esta animava-os à prática de novos crimes, e expunha ao público descrédito a administração menos digna de temer-se, ao parecer deles, do que o particular que muitas vezes resistia, defendendo a sua propriedade, e na defesa e resistência os feria, embora. tivesse de cair aos golpes descarregados por eles com tal firmeza que nunca deixou de ser fatal.

Cunha de Meneses, convicto da ineficácia dos seus esforços contra os quais se levantava, além da audácia e cinismo dos malfeitores, um tríplice embaraço que mais do que estes contrastava aqueles esforços, — a falta de população, de tropas e de estradas, embaraço que era favorecido indiretamente pela indiferença dos mais fortes, e diretamente pelo temor da maior parte dos moradores, renunciou ao empenho, que por muito tempo alimentou de reivindicar os foros da administração assim afrontados diária e ostensivamente pelos sobreditos malfeitores.

Com esta mudança de resolução coincidiu a sua promoção ao lugar de governador da Bahia. Em 31 de agosto de 1774 entregava ele a José César de Meneses, a quem já nos referimos, as rédeas do governo de Pernambuco, então, como ainda hoje, difíceis de sopesar.

José César teve de voltar a sua atenção para a guerra com a Espanha; e quatro meses depois de haver tomado conta do governo, fez partir para a Colônia do Sacramento, então novamente em poder dos espanhóis, bem como os fortes brasileiros de S. Miguel, Santa Teresa e S. Pedro do Rio Grande do Sul, um regimento de infantaria.

Em 1776 tinham seguido do Recife para aquela colônia cerca de 1 100 pernambucanos.

À guerra seguiu-se a peste, e à peste a fome como vimos.

Quando se achava assim a braços com este tríplice flagelo, teve ciência de que diferentes ambulâncias que, em parte às custas do régio erário, e em parte às custas dos negociantes mais ricos da vila haviam sido expedidas por ordem sua para os pontos onde o mal se manifestava com maior intensidade, tinham caído nas mãos dos salteadores.

O governador mal pôde dominar a sua cólera, e na prática íntima com os que tinham muito lugar diante dele, declarou que daquele momento em diante o principal empenho do governo ficava sendo dar cabo dos criminosos que devastavam a província.

Desgraçadamente faleciam-lhe gente e dinheiro para pôr por obra este louvável empenho.

A terrível epidemia tinha desolado povoações inteiras.

A fome continuava a gerar os males que em toda a parte são seus companheiros naturais e inevitáveis.

A seca devastava ainda o interior da província como chama que irrompe do seio da terra, e tudo abrasa e destrói.

Mas José César era ativo, enérgico, esforçado e de grandes espíritos. Confiava no poder da autoridade, e tinha por certo que havia de restaurar a tranqüilidade e a segurança privadas, e restabelecer o domínio das leis.

Enfim, depois de haver pensado com madureza sobre o grave assunto, deu ordem a seu secretário para que expedisse em seu nome aos capitães-mores de Iguaraçu, ltamaracá, Várzea, S. Lourenço, Santo Antão, Tracunhaém, Nossa Senhora da Luz, Jaboatão, Muribeca, Cabo, Ipojuca e Serinhaém a circular seguinte:

«Ordena o Sr. Governador e capitão-general que, para um negócio que entende altamente com a paz pública, se ache vm. no dia 8 do corrente mês, pelas nove horas da manhã, neste palácio, onde se há de celebrar junta a fim de tratar-se do mesmo negócio.

Vm. fará igual aviso aos coronéis das ordenanças que houver em seu distrito».

No dia designado acharam-se presentes onze capitães-mores e outros tantos coronéis.

Depois do almoço, durante o qual lhes disse, explicou e particularizou todo o seu pensamento, convidou-os o governador a chegarem até aos paços do senado da câmara de Olinda.

Uma galeota, que estava às ordens em uma das rampas do palácio, os recebeu e os conduziu à capital ilustre.

A sessão da junta foi secreta.

Todos presumiram que a fome e a peste eram os motivos principais da reunião, mas dificilmente conciliaram esses motivos, que estavam no público domínio, com o sigilo que se guardou durante a sessão, e continuou a ser mantido depois do seu encerramento.

Seguiram-se, como é fácil imaginar, diferentes versões e fizeram-se longos e variados comentários.

Falou-se de guerra no exterior, de geral recrutamento, e novos impostos.

Veio logo a pêlo lembrar igual ajuntamento que se verificou em 1727, sob o governo de Duarte Sodré Pereira, e o imposto decretado nessa ocasião pelo dito ajuntamento, imposto calculado em um milhão e cinqüenta mil cruzados, que se tornou efetivo em vinte anos, e foi destinado a ocorrer aos gastos com o casamento dos príncipes de Portugal.

Cuidou-se em opor à forçada contribuição, caso viesse a verificar-se, a resistência que naquele tempo apresentaram os povos da ribeira de S. Francisco.

Mas passaram-se dias e semanas sem que ato algum, público, oficial, ou simples revelação particular viesse confirmar as suspeitas. A deliberação continuou trancada debaixo dos selos do mais rigoroso segredo.

Uma manhã um batalhão de infantaria, devidamente municiado, moveu-se, e pôs-se em ordem de marcha na direção do sul.

Este batalhão fez alto em Afogados.

— Temos guerra, gritaram os meticulosos pelos ângulos da vila.

Alguns parasitas, plantas conhecidas e existentes em todas as regiões, mas muito mais abundantes nas regiões oficiais, ou governativas, correram ao palácio a verem se podiam, pelos meios que sabe a astúcia pérfida e servil, inferir das palavras de José César, ditas na intimidade, o destino a que se dirigia a coluna militar, inesperadamente posta em armas e a caminho. O semblante do governador, porém, semelhava uma superfície plana; não apresentava uma só ruga que pudesse trair oculto desgosto, ou indicar grave apreensão. Se da fronte passavam a estudar as palavras de José César, não descobriam no sentido destas menos discrição e reserva do que tinham encontrado na expressão daquela. Os lábios do governador guardavam com a severidade da disciplina militar e das práticas do governo naqueles tempos silêncio absoluto a respeito do acontecimento que preocupava os grandes e o popular.

A curiosidade pública mostrou-se dentro em pouco ainda mais excitada com certas notícias trazidas do interior pelos boiadeiros, almocreves e estafetas. Em todos os distritos, por ordem dos respectivos capitães-mores, de acordo com os coronéis de ordenanças, se tinham levantado milícias locais que evidentemente se aprestavam para um fim de importância, a julgar pelas aparências.

Das sedes de alguns desses distritos já os destacamentos haviam marchado para certos e determinados pontos que os informantes não sabiam dizer.

Enfim, tendo reunido todos estes elementos de duvidar e de decidir, e os tendo pesado na balança da crítica, arte ou ciência comum a todas as sociedades ainda as que se acham no estado mais rudimentar, julgou-se o público autorizado a afirmar que se tratava de efetuar uma diligência de alta monta, para a qual tinham de concorrer simultaneamente as diferentes forças locais, de combinação com algum destacamento da capital.

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